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quinta-feira, 8 de novembro de 2007

A Porta Fechada

Tela de Jamie Wieth


Quando o pai de Rose morreu, ela iria completar nove anos. Por muitos dias, sua mãe e ela falaram entre monossílabos, como se estivessem em um santuário. Inconscientemente, elas se deixaram levar para um lugar no tempo onde as coisas ficavam mais fáceis quando faladas entre sussurros. A mãe, cheia de carinhos e atenção, fazia com que a filha não sentisse tanto a falta que o pai fazia.

Este estado durou até o dia em que sua mãe rompeu aquela cortina mágica e apareceu com a novidade. Iria se casar novamente.
Quando começou a lhe contar sobre o homem maravilhoso que havia conhecido, Rose viu as palavras saírem da boca da mãe e se tornarem pássaros negros. Esses pássaros palavras gritavam de forma tão estridente que Rose, não aguentando mais, correu para bem longe, para não os ouvir mais. Fechou-se em seu quarto, adivinhando um tempo escuro e difícil que teria de suportar.

A mãe de Rose já não era a mesma. Vivia num mundo paralelo ao da filha. A casa toda passou a ser palco de sorrisos e conversas abafadas entre o casal. Rose flutuava, sem saber o que fazer para ter a atenção da mãe novamente, ela tentava trazer a mãe àquele lugar de aconchego do passado, mas a mãe estava entorpecida pelo intruso.

Rose não entendia o que poderia haver de tão especial no novo marido de sua mãe. Achava-o exagerado em tudo. Por baixo dos panos, Rose sentia aqueles abraços cheios de malícia, os beijos úmidos que ele lhe dava quando não havia ninguém por perto. Todo aquele carinho lhe fazia sentir asco, mas não podia fazer nada, pois sua mãe parecia não perceber nada. Ele se movia de lá para cá, fingindo sempre ter que partir, mas voltando lascivo e rouco para ela, encarando-a com uma intimidade irritante e insistente. Aquilo tudo era o martírio de Rose.

Esse intruso sabia manipular as pessoas, fazendo com que não soubessem o que exatamente se passava por baixo daquela capa de bom pai. Rose criara a sua volta uma maneira de fazer com que ele ficasse afastado. Era fria e distante, mas, por mais que fizesse para que ele entendesse que não queria sua presença, ele continuava rondando perto abanando sua calda de lobo.

Sua mãe se mantinha imperturbável quando os via a sós. Sentia-se inundada por tal estado de amor, que parecia deixá-la cega para entender o que se passava nas entrelinhas daquele carinho paternal. Pequenos incidentes insignificantes entre Rose e seu novo pai passavam despercebidos ao olhar apaixonado da mãe. Quando ela entrava no quarto de Rose e ele estava lá para o seu “boa noite carinhoso”, não percebia o olhar destilado e filtrado, que escondia uma estranha forma de querer. Não via nos olhos de Rose aquele chamado urgente de socorro, aquela mão que abanava freneticamente pedindo atenção. A mãe saia do quarto, dizendo que só ele sabia contar histórias e acalmar sua menininha.

Aquele homem estranho e infantil precipitava-se em carinhos, mesmo sabendo da barreira levantada pelo medo de Rose. Trazia para perto dela um desejo pegajoso e impregnante que transparecia no suor de seu rosto, transfigurado em puro deleite.

No fundo de sua alma, ele dizia: “Chega! Basta!”, mas no outro dia, esquecia essa voz interior e continuava.

Para Rose, as doces palavras dele pareciam cair num fosso de águas negras. Elas iam formando desenhos que se entrelaçavam, mostrando o seu próprio rosto tentando gritar um pedido de socorro.

Não suportava aquela cara imensa, todas as noites, colada em seu rosto. Podia sentir o respingar de saliva, os pelos duros da barba, suas mãos enormes dentro de sua camisola, descendo e subindo em suas pernas nuas num carinho dispensável. Nesta hora, Rose parava de respirar, tamanho o terror que a invadia. E ele, quase histericamente, a abraçava, tremendo e gemendo, se imaginando já dentro dela. Depois a soltava, pegava o travesseiro e, como se quisesse sufocá-la, apertava em seu rosto. E de repente, num ímpeto, saía do quarto, deixando a porta fechada.

A cada dia, Rose ficava mais calada. Sua mãe estava tão feliz que não percebia e nem entendia o por quê de sua filha estar tão impenetrável. Não via a escuridão do quarto nem a espessura do silêncio, que sutilmente começava a vazar pelas frinchas da porta.

Rose começou a apresentar uma dor e uma febre que mudaria o seu corpo. Sutil penugem surgia em seu sexo. Gotas orvalhadas brotavam de seus poros e o sangue manchando o lençol diziam que tinha se tornado mulherzinha. Nada disse a sua mãe, apenas chorou, se culpando. Imaginava ser esse maldito intruso o real motivo de tal desgraça.

Aquele acontecimento, que passou a ocultar de si mesma, se estreitava dentro do peito, como um anel de ferro, sufocando-a. Percorria sozinha a extensão da sala ao seu quarto, sempre correndo. Ia tão compenetrada e assustada, querendo fugir de um encontro com esse “pai”, que jamais percebeu a sombra que a espreitava, escondida embaixo da escada.

Durante muitos dias, ela queimou num inferno silencioso e mortal, por pressentir que o seu quarto seria palco do seu mais profundo pavor. O intruso, no entanto, sabia que não poderia mais suportar aquela pele elástica e fina entre os seus dedos sem tentar, ao menos uma vez, invadi-la, como um ladrão.

O verão tinha chegado quente e preguiçoso, e a mãe de Rose propôs irem para a praia por uns dias. Combinaram alugar um chalé no litoral ainda no dia seguinte. O marido lhe disse que teria de trabalhar mais um dia, e que ela poderia ir na frente para acertar os detalhes do aluguel e dos mantimentos. Ele pegaria Rose na escola e seguiriam juntos no dia seguinte, logo de manhã cedo.

Rose estremeceu sentindo a pesada mão em seu ombro, descendo lentamente por suas costas, longe do olhar de sua mãe. A noite se aproximava. Rose sabia que algo iria lhe acontecer. Algo mais secreto do que tudo o que vivera até aquele dia. Pensava em como poderia desaparecer, em como fazer para se dissolver, deixando de ter a forma humana.

Riscou, com um giz branco, um círculo a sua volta no chão do quarto e começou a pedir, a suplicar, que alguém a arrancasse dali, que se tornasse invisível. Queria se transformar num pássaro e voar dali para sempre, ganhando o céu e a liberdade. Pediu que sua mãe tivesse um poder de visão e a salvasse para sempre daquele destino amordaçado.

Seu coração batia, no mesmo compasso dos passos que ouvia, vindos da escada. A porta se abriu, e um vulto poderoso e sinistro a fechou  com um pontapé. O intruso avançou para ela com o sorriso de um animal no cio. Logo a seguir, a porta se abriu como se uma lufada de vento tivesse se formado. O estrondo da porta contra a parede fez com que o predador parasse. Rose abriu os braços a sua mãe, que no mesmo instante a resgatou daquele círculo de medo.
 
Anos mais tarde, Rose soube o que tinha acontecido com elas. Sua mãe descobriu o véu espesso que encobria a verdade, numa noite em que achou um frasco de soníferos numa gaveta de fundo falso, que ele mantinha secretamente. Descobriu o por quê daquele estado sonolento que a deixava tonta quase todas as noites. No dia seguinte da descoberta, marcou a falsa viagem à praia. Ela esperou que a noite chegasse e, no momento certo, buscou um poder que jamais pensou ter, e seguiu o homem que amava. Ele, nu, sem saber que era seguido, subia as escadas.

Rose foi resgatada no tempo do desespero, mas foi acolhida por braços que a cingiram para sempre, protegendo-a do maior relâmpago que viria em sua vida.

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