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sexta-feira, 18 de maio de 2012

O Infiltrado

  Tela de Mário Eloy Pereira


Fazia um calor opressivo e irrespirável em Chicago naquele verão. Quem conhecia o inverno dali não podia imaginar um calor daqueles. Os bares ferviam com seus blues. Mas as coisas não andavam bem entre os dois chefões que dominavam os negócios ilícitos do lugar. Eles eram Dom Corleoni Bellagamba e Dom Gaetano de Lampeduzza, dois mafiosos da Sicília que tinham se instalado em Chicago, e dividiram a cidade.

Dom Corleoni era o manda chuva que dominava toda a jogatina do lado sul da cidade. Era dono de mais de vinte casas de apostas. Dom Gaetano controlava a prostituição de todo o norte. Tudo estava dividido, de forma que nenhum se metia com o outro. Isso até os dois resolverem cair de boca no negócio dos assaltos a banco. Foi aí que o bicho pegou.

Antonello Gambetta, o Toni, braço direito de Dom Corleoni, estava, numa tarde, tomando uma cerveja no bar do Billy Caolho, quando viu, do outro lado da rua, um sujeitinho franzino, baixinho, que mais parecia um moleque de recados, dar um safanão em dois capangas de Dom Gaetano, que estavam aos cochichos. Foi tudo tão rápido, que, se Toni não estivesse de olho comprido naqueles dois, teria perdido a cena. Toni era muito esperto, sabia reconhecer confusão a quilômetros de distancia.

Toni viu quando o rapazinho se jogou contra os dois capangas, que estavam parados conversando na calçada, e surrupiou um envelope do bolso de um deles. A ação foi tão rápida, que o capanga só foi perceber minutos depois.

Toni, só de olho na cena, viu quando o ladrãozinho entrou numa Ford Pick Up verde, que já estava a postos esperando por ele, e saiu chispando, queimando os pneus na maior velocidade.

No mesmo instante, Toni deu um pulo da cadeira e se atirou num salto fenomenal para dentro de sua Ferrari conversível, vermelha, que estava estacionada em frente ao bar. Ligou o carro e deu asas a ele, voando na direção do furgão.

Rodaram um bom tempo. Toni sempre disfarçando para que eles não percebessem que estavam sendo seguidos. Mas eles eram muito espertos, e pelas vezes que viraram no mesmo lugar, sabiam da perseguição. Pararam numa casa de tijolinhos aparente e janelas com cortinas lilases. Toni reconheceu o lugar imediatamente. Era um puteiro decadente chamado “Borboletas Lilases”. Ali só tinha meninas caipiras, vindas de outros estados, expulsas ou fugidas de casa. A dona do estabelecimento era um verdadeiro canhão, chamada Waleska. Uma mulher feia, de nariz largo e boca grande, com os cabelos sempre mal tingidos, mas com bom coração. Aceitava as coitadas que apareciam em sua casa, sem fazer muitas perguntas.

Toni deu uma volta pelo quarteirão analisando o local, só para ver se pescava algum movimento estranho. Como os dois rapazes não saiam da casa, resolveu entrar. Perguntou sobre o dono do Ford verde estacionado em frente a casa, e uma das moças lhe disse que estavam num quarto com algumas meninas e, de lá, só sairiam bem mais tarde. Então, Toni resolveu voltar no começo da noite, e foi embora.

O que, exatamente, Toni estava querendo com aquela investigação? Ele tinha faro para achar bons capangas para Dom Corleoni. Não era à toa que tinha ganhado a Ferrari do chefe, no dia do seu aniversário. Naquela tarde, tinha vislumbrado no magrelo a pessoa certa para executar uma missão que estavam planejando já há algum tempo.

À noitinha, ele despencou no ‘Borboletas’. Nem bem chegou, deu de cara com o rapazote, que estava encostado na porta de entrada, fumando uma cigarrilha mentolada. Toni aproximou-se dele, como quem não quer nada, mas tomou um susto, pois, sem mais nem menos, ele jogou o cigarro do lado e foi peitando Toni na maior valentia. Disse ao Toni, todo nervosinho:
- O que é que tá pegando, hein almofadinha?
- Hei, calma lá, meu brother!
- Brother o cacete! Não venha botar banca para cima de mim. Não se faça de besta! Você se acha muito esperto, não? E eu não te vi na maior perseguição, hoje à tarde? Deixe de fazer cera e desembuche, carrapato!

Toni estava atônito, por aquela ele não esperava, o frangote era valente mesmo. Encarou-o e disse:
- Menino, você é melhor que a encomenda.
- Encomenda? O que você sabe da encomenda de hoje à tarde?
- Calma aí, possuído! Nada sei daquela encomenda que você surrupiou na mão leve daqueles dois capangas.
- Dois otários, isso sim! Acontece que aqueles dois filhos de uma égua estavam querendo me passar para trás, com uma encomenda que era minha por direito, mas acabaram dançando, porque comigo não, violão.



Toni apresentou o magricela a Dom Corleoni. Seu nome era Baby Strombolli. Apesar dele aparentar uns vinte anos, tinha na verdade trinta e cinco. Era, simplesmente, o melhor e mais esperto capanga de Dom Gaetano. Além de esperto, era um bocado ambicioso, por isso não foi difícil convencê-lo a aceitar o serviço de “entregador”. Ele, em troca, levaria dois lingotes de ouro.

Quando Baby viu o futuro pagamento nas mãos do capo, deu um salto da cadeira, como se tivesse sido espetado por uma agulha. Ele já tinha projetos para aqueles lingotes, e não os perderia por nada. Para ganhar essa bolada, ele sabia que tinha que ser muito esperto, mas ele se garantia, sabia que era um macaco velho no negócio da contravenção. O trato era o seguinte:

Na Penitenciária do Estado, estava um capanga de Dom Corleoni, que havia feito um mapa, todo detalhado, do Banco de Investimento de Chicago. Esse sujeito mofava na cadeia, justamente por ter tentado assaltar esse banco e não ter conseguido. Ele sabia tudo do local, pois havia trabalhado lá como segurança. Dom Corleoni achava que, agora com esse mapa, conseguiria entrar e sair desse banco sem problemas. Seria um dos maiores assaltos que faria. Depois disso, poderia expandir seus negócios.

Pegar esse mapa não era nada fácil. Já tinham tentado vários contatos com esse capanga, mas ele era extremamente vigiado. Todas as tentativas de retirar esse mapa haviam falhado. Tentariam agora com o Baby que, se por acaso caísse nas mãos dos meganhas, pensariam que era mais uma das tramóias de Dom Gaetano, já que Baby, realmente, fazia parte da turma de carcamanos rivais.

Dom Corleoni ainda perguntou ao Toni se o Baby era mesmo de confiança, se na última hora, não ia mijar para trás. E Toni respondeu:
- Não o subestime, capo. Baby é o melhor para esse serviço!
- Espero não me arrepender, Toni. Você sabe que eu prezo demais a confiança que lhe deposito.

E foi assim que Baby Strombolli entrou para o caminho de mão dupla, servindo a dois senhores. Agora ele era um infiltrado.

No dia marcado para visitas, Toni e Baby estavam a postos em frente a penitenciária. Combinaram que, logo depois da visita ao carcamano que estava preso, se encontrariam no bar Quatro Olhos, que ficava a duas quadras do local. O tempo foi passando, a hora da visita já tinha se findado há mais de meia hora, e nem sinal do Baby.

Um suor gelado começara a se instalar na testa de Toni. A barriga já dava sinais de um transtorno eminente. Sua reputação estava em jogo. O capo Dom Corleoni tinha confiado nele, dado total carta branca naquele caso. Ele sabia que, se falhasse, deixaria de ser o braço direito da máfia. Desde os seus quinze anos, ele tinha as costas quentes com Dom Corleoni. Seu pai tinha sido como um irmão para o capo. Ele  morreu se atirando em frente ao corpo de Dom Corleoni, numa emboscada feita pelos policiais, num assalto a uma joalheria. Antes de morrer, o pai de Toni fez Dom Corleoni prometer que cuidaria do seu bambino.

Agora Toni estava com as calças nas mãos esperando aquele frangote. Sabia que todos entrariam numa bufunfa lascada, tinha que manter a calma. Era só ficar de antena ligada, que tudo daria certo.

Toni já estava começando a desconfiar da demora do Baby. Pensou: Esse magricela ainda vai queimar o meu filme com o capo. Ele que não seja besta, porque eu acabo comendo seu fígado num hambúrguer.

De repente, Toni ouviu um barulho vindo da calçada. Olhou pelo espelho retrovisor e viu um cegueta, velho e capenga, vindo na direção da Ferrari. Batia com força uma bengala no chão, fazendo o maior estardalhaço. Ele estacou em frente a porta do passageiro e falou:
- Missão cumprida! Vamos embora.
Toni, que já estava tremendo, prestes a ter que sair correndo para visitar um banheiro gritou:
- Caramba! É você mesmo, malandro? E não é que o frangote conseguiu? Como foi que você fez?
- Nada que uma bengala oca e um bom disfarce não resolva.
Entrou no carro, bateu nas costa de Toni, e saíram, queimando os pneus, rindo pela avenida.

sexta-feira, 4 de maio de 2012

O Tempero Secreto (memórias de uma menina-moça)


Tela de Alexei Alexeivich Harlamoff

Quando foi inaugurado o Grande Hotel, meu pai e eu estávamos trabalhando nas vindimas do Alentejo, a maior província de Portugal, na Herdade da Malhadinha Nova, perto de Albernoa. Trabalho duro e cansativo, que era a do apanho dos bagos para depois pisá-los nos lagares. Um dia, meu pai recebeu uma carta de um primo, que trabalhava no Hotel Herdade dos Mouros como jardineiro. Dizia que estavam precisando de um faz-tudo, e, como sabia das habilidades de meu pai em consertar coisas, pedia a ele que aceitasse, pois seria um bom lugar para nós. Senti pelos olhos brilhantes de meu pai que iríamos; e foi assim que nós nos instalamos numa casinha de pedras com varanda, dois quartinhos, uma grande cozinha, que também fazia lugar de sala.

Aquele convite tinha caído do céu para nós dois. Deixamos a Herdade da Malhadinha para trás, sem muitas saudades. Uma semana depois, já nos sentíamos em casa. Realmente, meu pai tinha muitas coisas para consertar naquele hotel. Eu, além de cuidar do nosso novo lar, ia para a cozinha do hotel ajudar na arrumação das louças. Aos poucos, fui percebendo o desenrolar do fluxo daquele lugar tão encantador.

Com o passar dos dias, fui conhecendo cada canto daquele hotel tão singular. Todos os funcionários estavam familiarizados com a minha presença. Eu era, portanto, uma grata figura que estava ali para ajudá-los no que precisassem. A única pessoa que eu tinha um certo receio de chegar perto era o cozinheiro. Não era medo, era um sentimento de precaução. Talvez por nunca ter visto um homem tão bonito em minha vida. Ele era alto e magro, mas com músculos por baixo da camisa. Sua pele morena, e seus olhos negros que nadavam num mar branco de longos cílios entregavam sua origem árabe. Confesso que me escondia, todas as vezes que ele chegava, para orquestrar seus ajudantes de cozinha, que era feita de varias salas. A dos peixes e frutos do mar, das carnes, das aves, das saladas, e das sobremesas. Em cada uma delas, eram resolvidos os delicados manejos dos primorosos pratos que faziam o delírio dos hóspedes. A comida era coroada com um molho, desenvolvido pelo charmoso cozinheiro árabe. Uma receita guardada a sete chaves, e ninguém, além dele, tinha acesso a esse segredo. Todas as refeições eram regadas com os melhores vinhos alentejanos, vinhos que eu e meu pai já conhecíamos.

O único lugar que ninguém podia chegar perto era a adega. Somente o sommelier e o cozinheiro árabe, tinham o poder naquele reino etílico.

A cidade tinha ficado famosa por conta dos artistas que começaram a fazer dela um point de encontros e eventos. O Hotel Herdade dos Mouros seguiu a onda do sucesso, tornando-se um lugar de extremo bom gosto, procurado por todos os que moravam nas redondezas para almoços e jantares e por turistas do mundo inteiro.

A paz que aquele lugar trazia inflamava o espírito, fazendo você querer estar ali para sempre. Andar pelas alamedas dos jardins compensava todos os dissabores de uma vida. Tudo ali era feito para emocionar. Cada quarto surpreendia por sua originalidade. Cada suíte era de uma cor: lilases, foscos, densos tons azuis, e verdes que flutuavam ramos de flores coloridas. Madeira aparente decorava quase todos os ambientes. Armários, cômodas e camas de época. Os metais antigos no banheiro brilhavam. A banheira de hidromassagem era iluminada por luz natural que se filtrava através da vegetação e da transparência dos vidros. Os quartos todos eram voltados para uma montanha, que tinha incrustado como um medalhão, uma cachoeira. Ao redor da montanha, um rio negro que refletia os ciprestes e serpenteava toda a encosta que separava o jardim do hotel.

Meus primeiros seis meses foram dedicados ao aprendizado das coisas que me cabiam, e um pouco além delas.

Um dia, quando a cozinha estava quieta, naquela hora morta, depois da arrumação do jantar, quando todos os empregados já estavam recolhidos em seus aposentos, eu resolvi ir até a geladeira pegar uma sobremesa que tinha reservado para comer. Era a sobremesa preferida do cozinheiro árabe, Pêssego Melba.

Quando fechava a geladeira, vi um vulto se esgueirando para aos lados da adega. Estatelei do lado da parede, onde havia um nicho, para não ser descoberta em meu delito - o pecado da gula. Meu coração batia, retumbando como um tambor de soldadinho assustado, porque aquele não era um território livre. Enquanto dava ordens ao meu coração para que fizesse o favor de parar com aquele batuque, pensei se ganharia algum crédito de confiança em descobrir quem estaria entrando na adega àquela hora da noite.

O sommelier não morava no hotel, portanto, já deveria estar bem longe dali. Do cozinheiro eu não sabia nada, era o sujeito mais estranho que eu já tinha visto. Uma vez demos um encontrão num dos corredores do hotel. Minha cabeça bateu bem no meio de seu largo peito e fiquei sem ação quando aqueles olhos de um brilho estranho e misterioso me cercaram querendo descobrir algo. Suas mãos me alcançaram numa curva desfeita que tentei refazer para me desviar de seu corpo e nessa hora pude observá-las. Não tinham manchas ou ossos salientes. Eram morenas e sem pêlos, como as mãos de uma mulher, se não fossem tão grandes. Como tinha cabelos compridos, ele os prendia com um lenço verde escuro. Quem não o conhecia, diria se tratar de um corsário, ladrão de corações.

Segui minha intuição, tirei meus sapatos para conservar o silêncio sobre controle, e fui atrás do gatuno da adega.
A adega era pequena, tinha quatro fileiras com prateleiras cheias de garrafas de vinho. Todas as paredes tinham estantes com garrafas. Fiquei do lado de fora, encostada à porta para tentar ouvir algum som suspeito. Tudo estava no maior silêncio. Foi quando ouvi passinhos, vindo em direção à cozinha. Eram duas hóspedes que riam abraçadas e iam direto à geladeira. Quando viram a taça de Pêssego Melba, fizeram o maior carnaval, comendo tudo ali mesmo. Eu não acreditei naquela mancada que eu tinha dado por não ter levado a taça dali, como tinha planejado. Não, eu tinha que bancar a detetive. Como eu não tinha conseguido nem o Melba nem o gatuno, fui para a minha casa dormir.

Meu pai já tinha pegado no sono, perto da lareira, e nem percebeu a minha entrada. Sonhei com a adega a noite inteira. Havia taças de Pêssegos Melba em todas as prateleiras e as duas hóspedes estavam embriagadas de tanto comer das taças. Acordei aos sobressaltos e fui até a varanda. Vi nascer uma lenta e pálida aurora que espalhava as brumas sobre as flores do jasminzeiro que derramava seu perfume pelo ar.

Daquele dia em diante fiquei em alerta. Ninguém passava por mim sem que eu acionasse meu sistema de alarme. Aquele ano, o hotel estava mais alegre do que nunca, todo os quartos estavam alugados, e o almoço e jantar eram disputadíssimos por gente que aparecia de não sei onde.

Nos dias claros e de alta temperatura, o almoço era servido num caramanchão, rodeado por glicínias lilases. Grupos de amigos se contorciam nas mesinhas de madeira entalhadas em marchetaria, que formavam flores. Abriam-se grandes guarda-sóis para essas mesas que ficavam longe do caramanchão. A festa começava quando chegavam as saladas e seus espessos molhos deslizavam nas folhas, muitas vezes servidas pelo próprio cozinheiro árabe. Depois das refeições, fluía um ar encrespado, um inquieto contentamento, como se todos estivessem num estado de frenesi. No jantar, esse estado de espírito era mais óbvio. Eu não sei se por causa da luz de velas e do perfume do jardim que entrava pelas janelas abertas, ou se pela música suave e envolvente que sempre tocava, só sei que tudo respirava erotismo.
Aquilo tudo era um tanto estranho para mim que começava a imaginar “coisas” em relação ao sexo.

Uma noite, quando tudo se aquietara no hotel, fui dar um passeio pela geladeira. Não era os Pêssegos Melba que eu procurava, mas o vulto da adega. Fiquei bem atrás da geladeira, só na espera. Queria saber como alguém podia entrar ali e desaparecer, se não havia nenhuma porta ou escada. Entrei na adega e fiquei encolhida entre uma das estantes perto da porta de entrada. Mal respirava. Imóvel e tentando ser invisível fiquei ali uns dez minutos, quando ouvi passos sorrateiros se aproximando.

Como a adega estava em penumbra, ficou impossível ver o rosto da pessoa, mas pelo tamanho, vi que era um homem. Ele girou uma garrafa e a estante de vinhos que ficava numa das paredes, se mexeu, abrindo uma passagem estreita que se fechou imediatamente. O vulto desapareceu. Fiquei sem ar e de pernas bambas por uns instantes. Aquilo de passagem secreta, só tinha visto uma vez, num filme. Marquei muito bem o lugar contando as garrafas, para saber qual abriria a porta, pois voltaria na noite seguinte.

Foi o dia mais longo de minha vida. Antes do jantar, aconteceu algo na cozinha e eu fui chamada às pressas. Pediram que eu ajudasse na preparação das saladas, pois a moça que fazia esse serviço tinha faltado. Disseram que sua irmã gêmea tinha desaparecido e ela teve que ficar com os pais que estavam desesperados. Na cozinha, cochichavam pelos cantos, comentando sobre a extrema beleza das irmãs e o desaparecimento da mocinha. O único que se mantinha impassível e inalterado era o cozinheiro árabe. Naquela noite tensa e cheia de aflição, eu vi quando o olhar do cozinheiro desceu discretamente de meus seios até os meus pés. Disfarcei e sai correndo para a casinha de pedras, mas no meio do caminho voltei novamente para a cozinha me sentindo uma boba por não aguentar o olhar de um homem.

Tomei uma decisão naquele instante. Fui até a adega, uma hora mais cedo do que o vulto costumava chegar. Girei a garrafa e vi a portinha se abrindo. Não sabia se entrava ou saia correndo dali e contava tudo ao meu pai. Decidi não contar nada, sem antes descobrir o que realmente existia ali. Desci os degraus que levavam a uma salinha sombria, que tinha sua penumbra quebrada por velas acesas por todos os cantos. Achei uma porta, logo atrás de uma cortina pesada, e entrei no maior silêncio, para uma outra sala. Esta era totalmente preta, com as paredes forradas de veludo. Parecia uma sala a prova de som, pois as paredes eram macias demais. Ali, bem no meio da sala, havia uma cama estranha, mais alta que as camas comuns. Do teto saiam duas correntes com argolas de aço nas extremidades. Nas laterais da cama havia correias de couro na altura das mãos e dos pés. Ao lado dessa cama maluca, ficava uma confortável poltrona de veludo vermelho, e junto dela, uma mesinha com rodinhas nos pés, cheia de toalhas brancas e tigelinhas de louça, iguais as da cozinha.

Eu tremia tanto e meu coração batia tão forte, que fiquei com medo de ser descoberta. Pensei em sair dali voando, em fugir como um ladrão da noite, mas me encolhi na minha invisibilidade. Tinha que exercer dali por diante o meu aprendizado sobre o silêncio e fiquei mais do que muda, virei sal. Foi quando alguém entrou na sala. Imediatamente eu me esgueirei por trás de uma cortina espessa que, felizmente, chegava até o chão, e pensei: - seja o que Deus quiser!- Ouvi alguém entrando na sala e tive que espiar. Dali para frente, o que vi foi um total desafio para mim.

Quem entrou naquela sala aveludada foi o cozinheiro árabe. Ele estava exatamente como veio ao mundo, nu. Como eu nunca tinha visto um homem nu, a não ser o meu vizinho de dois anos lá do Alentejo, aquilo foi um tremendo choque para mim. O cozinheiro entrava e saia trazendo coisas que eu não conseguia identificar, e as ia arrumando na mesinha. E então, ele entrou numa porta, que eu não tinha visto por estar escondida sob as cortinas, e de lá, voltou com uma moça nua nos braços. Era a Ana, a moça da cozinha, aquela que eu estava substituindo. Colocou-a sobre a cama preparada e puxou-a até o meio, abrindo suas pernas, tudo isso com a maior delicadeza. Amarrou seus tornozelos às correias e as mãos foram atadas às argolas do teto que se moviam num vai e vem, dando mobilidade ao seu corpo, fazendo com que pudesse subir ou descer. A cabeça ficou solta, e ela podia levantá-la e ver como seria o seu sacrifício.

O cozinheiro fazia tudo no maior silêncio. Eu não respirava mais. Ele ligou um aparelho de CD e uma música árabe deu o sinal. Ali, começaria um ritual de luxuria que me deixou tonta e sem chão. Primeiro ele derramou sob os seios de Ana um creme branco que não consegui identificar, mas parecia ser o creme do Pêssego Melba. Foi nessa hora que começou a tortura, não dela, mas minha. Ver aquele homem nu lambendo aquele creme, não estava me fazendo bem.

Ana se contorcia, abrindo e fechando a boca. Seus olhos ficaram semicerrados e marejados de lágrimas, enquanto ele despejava um cálice do creme em seu ventre, fazendo com que ela se contorcesse, levantando os quadris, parecendo querer se desprender das amarras.
O cozinheiro deu um salto subindo na cama, e com seu pênis duro, mergulhava-o no pote de creme passando-o no rosto e na boca de Ana. Ela gemia e se contorcia, quase como eu faria se estivesse no seu lugar.

O cozinheiro continuava aquela tortura de mestre. Quando alcançou a boca da mocinha, delicadamente foi introduzindo aquele membro duro e latejante, até que finalmente ela o estreitou inteiro em sua garganta. Eu não sabia se ela comia o creme ou sugava aquele corpo enlouquecido.

Quando ela começou a ficar ofegante e seus olhos se tornaram brilhantes, ele desceu até o seu ventre, e foi de língua em riste, contornando as curvas todas dos quadris, indo e vindo em círculos, até chegar num monte suave e trêmulo. Ela se sacudia toda, querendo aproximar-se cada vez mais daquela boca sedenta. Quando seu clitóris estava endurecido e rosado como um botão, ali naquele momento, ele mostrou a que veio. Com dois dedos, ele penetrou-a por trás. Eu nem sei se ela estava gostando, pois me pareceu que iria se dissolver naquela cama a qualquer momento.

Com a língua, como se estivesse lambendo um sorvete, ele sugava aquilo tudo, num vai e vem, com o mesmo ritmo dos dedos que brincavam por trás. Quando parecia que Ana ia virar uma cobra viva se sacudindo para tentar se soltar, ele parou tudo e penetrou-a com aquele símbolo fálico descomunal. Enquanto ela gemia por mais, ele entrava e saia, mordendo seus mamilos endurecidos e febris. Puxava seus cabelos para trás com as duas mãos e segurava sua cabeça, enfiando a língua em sua boca quente e úmida. E quando eles começaram a tremer de dor e prazer, por causa desse compasso alucinado, ele, de repente, parou tudo e se enfiou entre as coxas de Ana, que começou a subir e descer os quadris, em êxtase. Ele como um mestre enfiava-lhe dois dedos num ponto de seu ventre, fazendo-a sacudir tanto e a gritar e chorar, que quase saio correndo dali, mas como estava tão petrificada, como excitada, não me mexia nem por decreto.

Ana estava começando a se acalmar depois do tremendo espasmo alucinante, quando, pasmem, o cozinheiro recolheu na tigelinha de louça todo o líquido espesso que Ana vertia. Juro que eu não entendi o porquê daquilo. O cozinheiro, então, soltou as pernas e os braços da mocinha, e eles se abraçaram e se beijaram como nunca vi em lugar nenhum. Penetrou-a novamente de uma forma que parecia que a amava. Foi o que eu vi naquela noite inesquecível.

Daquela dia em diante, eu nunca mais seria a mesma. Amadureci uns dez anos. Descobri que a moça que eu pensei ser Ana, a ajudante da cozinha, era a sua irmã Nina, que estivera desaparecida. Ana nos disse que sua irmã havia aparecido depois de uma semana. Estava esgotada, e mais parecia um zumbi. Por mais que a família perguntasse o que tinha acontecido, a resposta era sempre a mesma. Junto com um sorrisinho maroto, dizia que não se lembrava de nada. Apenas que alguém tinha lhe enfiado um capuz na cabeça e lhe dado algo doce para tomar. Como se alguém pudesse esquecer daquilo tudo!

Descobri que o tempero secreto do cozinheiro árabe era, nada mais, nada menos, que fluídos orgásticos de mocinhas, mantidas por um tempo naquela masmorra do prazer. Era com “isso” que o cozinheiro árabe temperava os deliciosos molhos com gosto de maresia, que encantava a todos.

Naquele ano, a cozinha do Hotel da Herdade do Mouro foi agraciada pelo Guia Michelin, com cinco estrelas por conta de sua “jóia rara”: o molho especial batizado de “MAR ADENTRO”.

Aquele quarto de veludo negro recebeu muitas mocinhas que perderam a memória completamente ou quiseram perdê-la. Eu ainda guardo na lembrança como era doce o Pêssego Melba do cozinheiro árabe do inesquecível Hotel da Herdade do Mouro.

quinta-feira, 8 de março de 2012

O Filho


 Tela de Oleg Duryagen



Ia a galope, trincando de frio e impaciência. Tinha recebido a missão do próprio General Tibério - atocaiar o bando de Claudionor e pôr fim nas atrocidades causadas pelos facínoras, que estavam pondo de ponta cabeça a província de Castro Cascudo. O recado do general era bem claro: acabar com o bando, mas principalmente, com um tal guri marmoteiro, que valia mais de trezentos diabos. Eu dava graças a Deus por meu filho estar protegido, estudando com os padres. Ele era o meu xodó. Menino valente que só se vendo. Teimava em ser soldado, mas não deixei não. Soldado bastava eu na família. Internei-o a contra gosto no colégio dos padres. Pelo menos, ali, ele estaria estudando e seria, quem sabe, um doutor.


Eu já era um caso perdido. Entrei para o exército porque meu pai fazia gosto. Eu mesmo detestei cada dia passado com aqueles brutamontes.
Nunca necessitei mostrar valentia. Gostava de ficar no acampamento, longe das pelejas. Que se esfolassem sem mim, pensava. Bravura é para quem quer se mostrar, e tem que garantir exemplo para os que tremem dentro das calças. Digo aos meus camaradas que a morte é uma sujeitinha desgraçada, e que te ronda o tempo inteiro. Principalmente, quando tua espada te resguarda dos desafios dos outros.

Eles, os soldados da minha guarda, foram advertidos para tomar tenência a menor poeira levantada pelos encapetados do Claudionor.
Não passou muito tempo, o olheiro, que eu tinha escalado pra ficar de vigia no descampado em que se mocozava o inimigo, desembestou pelo acampamento aos berros.  O Claudionor levantava acampamento rumo à província. Sob a proteção de Padre Cícero juntei minha gente e  rumamos para a tocaia desse desafeto do governo.

Matar é algo que transcende a nossa vontade. Tu te tornas Deus, e nada mais pesa em tuas mãos, a não ser o júbilo. A espada brilha enquanto cabeças são atiradas ao vento, como pássaros do inferno. A vida no campo de batalha é fugaz. Os deuses estão sentados, vigiando os cadáveres que seguem em fila, fatigados e transpassados de medo, buscando a porta para o desfecho do juízo final.

No meio da gritaria e bater de espadas, a sangueira derramava. Eu procurava o tal guri endiabrado, que fazia questão de deixar bem claro  que era mau, azedo e esfolador. Todos se pareciam no meio daquele tropel desgovernado. Porém, no meio dos gritos de fúria da gentalha que se engalfinhava comendo pó e gravetos, vi, através de um clarão entre o véu de poeira, um rosto de menino, sujo e lambuzado de sangue quente.  Eu estava atiçado de ódio e vaidades de homem bruto. Imaginava que, só pelo fato de matar aquele menino destemperado, me tornaria o manda chuva do General Tebério, talvez, quem sabe, divinizado como valentão e como premio receberia uma gorda aposentadoria.

No meio da correria e dos solavancos que vinham por todos os lados, eu vi o meu futuro, como uma revelação. O que veio pela frente me transformou para sempre, em alguém cheio de horror e impotência, mostrando que minha maneira de ser - modesto, comedido, sempre me esquivando das guerrilhas - nada mais era, do que um jeito de esconder meu lado mau de lobo sanguinário.

O bando de Claudionor era conhecido por abarcar homens destemidos e valentes. Lutavam por justiça e uma vida digna para o povo. Eu estava do outro lado, apoiando a causa do governo, mas sabia que, mais dia, menos dia, eu teria que medir com mais apuro as minhas ideias sobre o que era certo e errado naquela província escravizada pelos coronéis, donos das terras.

Eu te digo que aquele último homem que matei escureceu a minha existência. Vi, em seus olhos de menino, o sonho das conquistas, e, em mim, a derradeira recordação de um ato sem tradução. Seu sorriso sereno e calmo me alcançou antes que minha espada lhe arrancasse a cabeça do corpo. Ele veio ao meu encontro expressando confiança, e antes de articular a palavra pai, a eternidade o havia alcançado.


quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Como num Sonho

Tela de Magritte




Há dias, tenho visto sombras incompreensíveis se erguerem ao meu lado. Finjo não as ver, mas sinto uma melancolia tão grande, tão profunda, que o meu sangue chega a gelar. Digo a mim mesmo que isso não significa coisa alguma, que é apenas mais uma das artimanhas de minha imaginação.

A cada dia, sinto minha alma sendo soprada por uma solidão abismal. Coisas inexplicáveis têm me acontecido ultimamente. Agora mesmo, estou nessa loja de departamentos. Há mais de uma hora, encostado nesse balcão, tentando achar uma gravata para ir ao casamento de minha irmã, e ninguém se dirigiu a mim perguntando se preciso de ajuda. No mês passado, quando vim comprar cuecas, a atendente veio cheia de sorrisos e gentilezas, e me mostrou a loja inteira.

Sinto-me perdido, como se estivesse vagando num deserto. À noite, ouço os mais sutis sons do mundo. Invoco aos anjos, uma proteção, e sinto meu sangue se inflamar, tenso. Nada acontece, só a escuridão permanece inalterável.

Ontem, sonhei que entrava num bosque de árvores antigas, e atrás de cada uma delas, havia uma pessoa me observando. O chão era transparente e eu podia ver pessoas vivendo lá embaixo, como num vendaval. As árvores desapareceram e só ficou um campo gramado,  cheio de sapatos perdidos. Acordei com alguém me chamando. Parecia a voz de minha mãe. Depois a ouvi chorando, enquanto rezava. Para dizer a verdade, tenho a impressão de estar o tempo inteiro dentro de um sonho.

Hoje estive naquele restaurante chinês, que fica aqui em frente ao meu prédio. Enquanto esperava a minha vez de ser atendido, fui literalmente  ignorado. Estava me sentindo um idiota. A velha chinesa, dona do lugar, gesticulava com o cozinheiro dando ordens e ordens, sem se importar comigo, ali parado, esperando. Nervoso, me virei, de repente, para sair do lugar e esbarrei num arranjo de flores, que foi de uma ponta a outra da mesa. As pessoas que estavam nas mesas em torno, olharam com espanto. Pedi desculpas e sai do restaurante bem chateado. Fui para o meu apartamento esquentar uma pizza congelada.

Quando entrei na sala, levei o maior susto. Costumo deixar as minhas coisas em desordem enquanto trabalho tudo esparramado pelo chão, e em cima da mesa. É o meu jeito de encontrar o que eu preciso, sem ter que ficar vasculhando pilhas de papeis com anotações. Bem, a sala estava completamente limpa e organizada, como nunca esteve. Até o pó foi aspirado e as cortinas, que sempre ficam fechadas, agora estavam abertas. Pensei que, talvez, a minha irmã tivesse estado ali, e com sua mania de limpeza, havia feito a festa. Até flores num vaso ela deixou. Senti-me ilegal dentro de minha própria casa.

Começo a desconfiar de todos agora. O porteiro, que sempre foi gentil comigo, quando saí do prédio, fingiu não me ver quando passei pela portaria. Vi minha irmã entrando num táxi e gritei seu nome. Queria agradecer a arrumação do apartamento, mas ela entrou no carro sem ouvir os meus gritos. Ou ela ficou surda, ou não sei mais de nada.

Às vezes, penso em dormir e nunca mais acordar. Tenho sentido um frio aterrador, principalmente à noite. Deixo o aquecedor ligado, mas de nada adianta. Devo ter pegado uma virose fenomenal. Amanhã vou ao meu médico ver isso.

O que mais me impressiona é esse silêncio a minha volta. Não tenho escutado nada, nenhum ruído. Às vezes penso estar ouvindo uma canção, mas sinto que é só dentro de minha cabeça. Estou doente, essa é a questão.

Agora mesmo, quando entrava no hall de meu apartamento, ouvi perfeitamente um grito de dor e desespero. Parecia a voz de minha mãe me chamando. Entrei aos tropeções pela sala e você não vai acreditar. Não havia viva alma ali. Silêncio absoluto. De repente um nevoeiro saiu da porta de meu quarto, me cobrindo. Ouvi vozes abafadas e acho que desmaiei. Na queda bati com a cabeça na mesinha de mármore. Por incrível que pareça, quando acordei do desmaio, passei a mão na cabeça procurando o galo, e nada, nem galo, nem dor. Começo a rir de mim mesmo. Acho que estou ficando doido.

Tentei marcar uma hora com o meu médico, mas, por mais que eu articulasse as palavras, a maldita assistente dizia que não estava conseguindo me ouvir. Desisti do telefone e resolvi ir sem marcar hora. Sempre tem desistência e eu pediria um encaixe. Chegando ao consultório subi correndo os dois lances de escada. Cumprimentei a assistente e pedi, se possível, que o doutor me atendesse com urgência, pois estava me sentindo muito mal. Ela olhava para mim com a cara mais lavada do mundo. Não mexeu um dedo sequer para discar para avisar que eu estava ali. Somente quando eu me sentei e peguei uma revista da mesinha, ela deu sinal de vida e saiu quase correndo para a sala do médico.

Ouvi-os discutindo. Pensei: “Ela deve estar tentando me encaixar, é isso”. Mas, que nada. O que aconteceu foi que os dois saíram da sala com os olhos arregalados. Olharam-se, depois foram até o corredor, espiaram, foram até o banheiro, a cozinha, em seguida, cada um voltou a seus postos. Imaginei que seria chamado em seguida. Tinha que ter paciência. Peguei outra revista e como já a havia lido, joguei-a sobre a mesinha. A assistente deu um pulo, pegou a sua bolsa e saiu correndo para a rua. Isso me deixou bem nervoso. Nunca vi tanta falta de respeito para com um paciente.

Esperei mais um pouco, e já bem chateado com a demora, bati na porta e fui entrando. Ele estava escrevendo em uma ficha e nem se dignou a me olhar. Esse estado de surdez das pessoas devia ser um surto mesmo. Pelo jeito, eu teria de ficar ali plantado por um longo tempo, pois ele estava mais interessado naquela ficha.

Mesmo sabendo que ele não estava prestando atenção em mim comecei a falar dos problemas que me afligiam. Eu falava e falava e ele totalmente indiferente. Não suportei mais e me sentei na cadeira giratória em frente a sua mesa. Quase fora de mim falei bem alterado: “Mas o quê é que está havendo por aqui, posso saber? Sempre fui bem atendido, e agora isso. Nem sequer me olham na cara. Sua assistente endoidou lá na recepção. Acaba de descer as escadas, acho que pelo corrimão. E o senhor, francamente, parece que se alienou por completo nessas fichas”.

Ele continuava mudo. Devia ser de propósito. Só para me irritar. Não aguentei mais e dei um murro na mesa, o que fez o porta-lápis voar longe se espatifando na estante de livros. Bem, posso te garantir que foi um susto e tanto que eu dei a ele, pois pulou da cadeira e foi se esquivando de costas, completamente apavorado. Eu fiquei ali, sem saber o que fazer. Esperei um pouco para ver se ele retornava e enquanto esperava dei uma espiada na maldita ficha que ele tanto olhava.

Era uma ficha de paciente, com todos os dados de todas as consultas. Um resumo das doenças, coisa e tal. O que me deixou sem chão foi ler o meu nome na ficha com o motivo de minha morte.

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

O Fusquinha Amarelo


 Tela de Nicoletta Tomas Caravia



Uma vez, apareceu no meu bairro, no silêncio da tarde, um fusquinha amarelo dirigido por um sujeito estranho. Ele costumava fazer suas aparições na saída das escolas, aterrorizando tudo que tivesse perna e andasse mostrando sua genitália, que era nada mais, nada menos, que algo parecido com um taco de beisebol. Não tinha mulher no pedaço que não tremia, só de ouvir falar sobre o fusquinha amarelo. Ele atacava desde menina donzela à velha com aranha na telha, e até menino com feições delicadas. Numa dessas aparições sinistras, em que a baratinha amarela rodava pelo bairro, despencou uma tremenda tempestade, justamente na hora em que as mães saíam para buscar os filhos nas escolas. Foi nessa bendita hora, em que Maria Imaculada subia a ladeira, na direção à escola, que o fusquinha surgiu de repente.

Ela já estava com a saia toda molhada e a blusa branca mostrava os bicos dos seios durinhos de frio. Corria tropeçando na calçada, procurando andar rente aos muros, para não se molhar ainda mais. Foi quando ela teve a surpresa da tarde. Quem ela vê?  Um fusquinha amarelo parado no acostamento. Bem, acontece que a Ritinha, sua amiga e vizinha, também tinha um fusca amarelo (acho que era a cor do ano, pois as mulheres estavam enlouquecidas por essa cor. “Graças a Deus!” pensou ela e  foi batendo na janela do fusca freneticamente. Olhava para dentro do carro tentando ver a Ritinha, mas com vidro todo embaçado, não enxergava nada. Então, esperou que a porta se abrisse.  Assim que isso se deu, despencou para dentro do carrinho. Foi logo dizendo: Que chuva amiga! Olhou pelo canto do olho e endureceu-se toda, como se tivesse recebido um choque elétrico.

Claro que não era a amiga, e sim tarado do fusquinha amarelo. Ela pensou: “Ai meu deus do céu, é o taco de beisebal”. Ele, magrinho, branco como sulfite novo, agarrou a mão da Maria Imaculada e meteu-a no endurecido taco. Ela pensou em desmaiar, em gritar, mas quem disse que a voz lhe saia. Os olhos não desgrudavam daquilo tudo. Foi quando ele lhe pediu desculpas por tudo aquilo e implorando, quase chorando, segurou a mão dela e foi, bem devagar. se masturbando. A mão dela em baixo e a dele em cima. A Maria Imaculada  estava paralisada, é claro! Se respirava? Acho que de vez em quando! Aquilo durou uns dez minutos. Enquanto ia tomando fôlego, pensava: “Acalme-se Maria Imaculada, você já fez isso em seu marido e não foi uma e nem duas vezes, porque vai ter chilique, justo agora que Deus coloca em suas mãos um monumento desse tamanho?” O marido que a desculpasse, mas um dia ela teria que saber que o taquinho dele iria ser confrontado.

 E ela foi ficando, ficando, até que acabou gostando daquele vai e vem. Tomando gosto pela coisa, se entusiasmou e quis mostrar a ele como é que se podia tirar proveito de um taco tão grande e caiu de boca no divino.  Eu diria que aquilo virou uma apoteose, totalmente descontrolada. A situação esquentou de tal maneira que nem o sutiã e a calcinha, depois que as coisas se acalmaram, se achavam naquele fusquinha amarelo. Maria Imaculada estava desfraldada, mas completamente feliz.

Acabaram marcando um encontro num lugar mais reservado. Dai para frente, ela não me contou mais nada. Acho que não quis dividir aquele sorriso que estampava na cara com mais ninguém.
Anos mais tarde, eu soube que ela estava casada com o taco de beisebol. Perguntei-lhe se não teve medo daquele momento. Ela me disse que, a princípio sim, mas depois, vendo o desespero do rapaz que, com aquela ferramenta enorme, não conseguia manter relacionamento sexual com ninguém, se deu em sacrifício.

domingo, 9 de outubro de 2011

Rádio Triângulo dos Mineiros


 Tela de Guido Vedovado



Prezados ouvintes, aqui estamos mais uma vez com o programa preferido das suas tardes, “Pedacinhos do Céu”, sempre às 16 horas em ponto.

Está no ar nossa ouvinte convidada, dona Arlete, da cidade de Camanducaia.

- Alô dona Arlete! Como vai a senhora?
- Agora estou bem, sim senhor.
- Conte-nos sua história, por favor. Os nossos ouvintes estão ansiosos para ouví-la.

(Abaixa o som)

- Pois é, tudo aconteceu num sábado, dia em que tenho folga lá do colégio onde trabalho. Sou professora, graças a Deus, sim senhor. Pois bem, eu e minha mana Arlinda, e o seu afilhado, o Alex, fomos ao Parque Nacional de Monte Verde, aquele que fica na reserva florestal. Chegamos por volta das 14 horas, não tinha muita gente entrando naquele momento. Pagamos a entrada, e a Arlinda achou um absurdo cobrarem vinte reais só pra ver mato e passarinho, mas acabou pagando. No caminho, que era uma trilha de cascalho e um bambuzal de cada lado, vimos um armazém, desses que vendem de tudo um pouco, até sela para cavalo tinha. A Arlinda falou que queria comprar umas coisinhas pra comer e beber antes da gente seguir para o nosso passeio. Eu fiquei tirando fotos do local, enquanto ela e o Alex foram às compras.

Quando dei por mim, já tinha se passado mais de quarenta minutos, e eles não tinham voltado. Guardei a máquina fotográfica e fui atrás deles. Entrei no armazém, e não vi ninguém. Chamei pelo dono batendo palmas. Apareceu um senhor de barbas brancas e macacão jeans, todo surrado, limpando o bigode sujo de açúcar mascavo. Perguntei-lhe se uma moça parecida comigo e um menino de uns seis anos, bem queimadinho, tinha vindo comprar petiscos. Ele confirmou, mas disse que já tinham ido embora há uma meia hora. Levei um susto e disse com cara de espanto: “Meia hora?” E ele disse me olhando já preocupado: “Não marquei o tempo”. Insisti perguntando: “Será que estão no toalete?”, e ele disse que não, pois não tinha dado a chave, pois que o banheiro ficava sempre trancado. Saí de lá, mas fiquei parada na frente do estabelecimento, olhando pra tudo que era lado, pra ver se os via em algum lugar. Minha irmã sempre teve essa mania besta de se esconder, e deixar a gente procurando por ela. Não sabia pra que lado ir, e pensava: Onde a esperta da Arlinda tinha se metido? Nisso, se passaram mais uns vinte minutos. Voltei ao armazém, o que assustou o senhor, que já estava sem jeito com tantas perguntas. Perguntei se ele tinha atendido mais alguém além da minha irmã, e ele disse que não, que naquele horário não vinha quase ninguém, porque era o horário do almoço. Saí novamente, mas antes de colocar o pé na calçada, ele me chamou, dizendo: “Acabo de me lembrar que o único que esteve aqui, na mesma hora, foi o Chicão, o rapaz que vem buscar restos de comida para dar aos porcos. Ele tem um chiqueiro enorme perto do rio”.
Apontou com o dedo a direção do rio e entrou. Tive um mau pressentimento quando olhei para o dedo dele, apontando o chiqueiro no ar. Ele entrou, e eu fui à direção apontada por ele. Nem sei porque fiz isso, mas alguma coisa me empurrava para lá. Andei uns quinhentos metros por uma estradinha de terra batida, quando avistei, ao longe, uma casa de madeira e um enorme galpão, que deveria ser o tal chiqueiro.

Não fiz nenhum barulho para chegar perto da casa. Dei a volta, sorrateiramente, e espiei pela janela da frente. Vi um homem reclinado num sofá imundo. Estava com um boné sobre os olhos, descansando. Com muito cuidado, dei a volta e fui até o galpão, rodeando pelos fundos, para que ele não percebesse nenhum barulho e nem pudesse me ver. Tinha uma pequena janela. Abri a veneziana com cuidado e pulei pra dentro do galpão. O cheiro era insuportável. Tinha lixo por todos os lados, muitas caixas com restos de comida, que cheiravam azedo. Atrás de uma pilha de caixotes, encontrei o chiqueiro. Várias fileiras de engradados, cada uma com uns vinte porcos. Todos grunhindo a espera de comida. De repente, entrou uma pessoa carregando um enorme balde com restos de comida. Vocês não podem imaginar o que eu vi. (começa a chorar e a locução é interrompida).

- Caros ouvintes, como podem perceber, o momento é de grande emoção, por isso faremos uma pausa e pedimos os comerciais, enquanto nossa ouvinte convidada possa se recompor.

Nossos patrocinadores, o Chocolate Monte Verde, que amadurece na boca, e a Malharia Gato Malhado, a mais quente moda em tricô do mercado, agradecem a preferência.


- Caríssimos ouvintes da Rádio Triângulo dos Mineiros, estamos de volta com mais uma história emocionante, desta vez, com dona Arlete e sua irmã Arlinda.

(música abaixando)

- Música para ela sonoplastia!
(música de fundo) http://www.youtube.com/watch?v=G6dLjcSSAjY&NR=1

- Então, dona Arlete, o que foi que a senhora viu chegando no chiqueiro que a deixou tão transtornada?
- Vi a minha irmã, Arlinda. Estava só de calcinha, e mais nada.
- Minha nossa, dona Arlete! E aí?
- Aí que, além de estar só de calcinha, estava com uma corrente prendendo os tornozelos. Ela andava com muita dificuldade. Quando me viu, arregalou os olhos e fez um sinal para que eu ficasse em silêncio. Estava com um enorme balde nas mãos, cheio de restos de comida que levava para os porcos. Ela me chamou num canto e disse rapidamente, entre sussurros, que o homem era completamente doido. Quando ela saiu do armazém com as compras, ele a abordou dizendo que estava com a esposa no caminhão e precisava de uma ajudinha pra tirá-la da cadeira de rodas. Ela foi sem pensar duas vezes. Quando chegou perto da porta do caminhão, ele pôs um lenço com alguma coisa estranha, que a fez ficar tonta. Acordou na casa dele, já sem roupa, e viu a Alex deitado num canto, com as mãos amarradas, e os olhos e a boca vendados. Ele disse que ela ia ser bem boazinha com ele, senão ele jogaria o menino aos porcos. Ela ia ajudá-lo a alimentar os porcos até a mulher dele ficar boa, mas ela achava que não existia mulher nenhuma, que o cara era completamente pirado. Eu fiquei perplexa, e olhava para todos os lados, procurando um jeito de tirá-la dali. Ela disse, quase chorando: “Não saio daqui sem o Alex!”. Acalmei-a e disse que iria até o armazém pedir socorro.


Pulei a janela de volta e fui me esgueirando por trás da casa. Quando cheguei à estradinha, corri, corri como uma alucinada. Entrei no armazém, já derrubando uma pilha de latas de sardinhas. O velho saiu de trás do balcão com uma espingarda apontada para mim, dizendo: “Eu sabia que a senhora era encrenca! O que foi agora? Tem incêndio na floresta?”. Eu estava sem fôlego de tanto que tinha corrido. Queria falar, mas não conseguia, aí ele abaixou a espingarda e me deu um copo com água. Eu pedi desculpas pela bagunça, e disse que precisava chamar a policia imediatamente. Ele me olhou assustado e correu para o telefone. Nem perguntou porque, e chamou a Guarda Florestal, porque estavam mais perto. Enquanto os guardas não chegavam, eu contei rapidamente sobre o Chicão, e o que ele tinha feito. Ele deu um tapa na cabeça e disse: “Eu sabia que esse cara um dia endoidava de vez. O pai dele era um carrasco e bateu nele desde quando ele era um molequinho. A mãe morreu de parto, e ele cresceu sozinho com o doido do pai. Depois que o pai morreu, ele se casou, mas não deu certo. A mulher, um dia, passou por aqui correndo. Estava só de calcinhas, a coitada. Minha mulher deu a ela um vestido velho e um chinelo. Ela chamou um táxi e se mandou, nunca mais apareceu. Vai saber o que acontecia por lá, não é? Eu respondi: “Agora sabemos”.

Não deu dez minutos e os guardas chegaram. Eram três, e foram logo perguntando: O que foi amigo? O que houve? O vendeiro foi dizendo tudo o que eu tinha contado, mesmo porque eu tremia tanto, que nem conseguia falar direito. Percebendo a gravidade da situação, pediram ao velho que chamasse a policia da cidade e uma ambulância. Enquanto isso, eles iriam dar uma batida no local da ocorrência. O velho disse: “Tenho uma ideia melhor para não despertar desconfiança do Chicão. Ele é muito esperto, e pode perceber que vocês estão lá por causa da moça e do menino, e fazer alguma besteira. Eu vou junto com a desculpa de levar mais comida aos porcos, e ele, que eu saiba, confia em mim, e nem vai se dar conta da armadilha. Minha velha pode muito bem chamar a policia e a ambulância”. E saiu para providenciar a comida e falar com a mulher, que ficava lá dentro, nos fundos do armazém.

Na verdade, ele não tinha restos de comida, e sim a comida da geladeira que iria jantar com a mulher, mas deu o seu jeito. Encheu um latão com jornais, quase até a boca, em seguida, a comida. Disse: “Perfeito!”, e entrou na viatura dos guardas, que era uma Rural camuflada. “Vamos, vamos, antes que aquele esmorfético acabe por fazer uma besteira maior ainda”. Quando chegamos, ficamos escondidos no meio do mato, enquanto o velho batia na porta da frente da casa, carregando o latão de comida. Ele fingia que estava muito pesado quando o colocou no chão para bater palmas. O Chicão apareceu à porta ainda assonado, esfregando os olhos e ajeitando o boné, e perguntou o que estava acontecendo. O velho, mais que depressa, disse que não era nada, apenas tinha se esquecido de mais um latão de comida, e como era sábado e só abriria na segunda, aquilo tudo ia azedar. e dava dó. Só isso mesmo! O Chicão olhou o velho, coçou o queixo e abaixou pra pegar o latão. Nessa hora, ele foi dominado pelos guardas. Ficou se debatendo que nem um doido. Dizia que era um homem honesto, que nunca havia feito mal a ninguém, e choramingava para que o soltassem.

Eu, enquanto acontecia à prisão do Chico, corri, e entrei na sala da casa e achei o Alex todo encolhidinho. Desamarrei o coitadinho e tirei o pano da boca e olhos. As roupas de minha irmã estavam jogadas num canto. Juntei tudo e corremos, eu e o menino, para o chiqueiro. Um dos guardas nos seguiu e não acreditou quando viu minha irmã naquele estado. Ele quebrou a corrente e eu vesti a Arlinda, que estava em estado de choque. Saímos de lá para a nossa casa, abraçadas ao Alex. Depois, eu soube que a mulher dele tinha fugido, porque ele queria fazer com ela exatamente o que tinha feito com a Arlinda. Os porcos ficaram para o velho vender no armazém, e o Chicão, vai amargar uma boa temporada na cadeia. Essa é a minha história.

Caros ouvintes da Rádio Triângulo dos Mineiros, acabamos de ouvir nossa ouvinte convidada, dona Arlete, com seu fantástico relato. Amanhã, não percam mais uma história da vida real. Um homem que se casou, sem saber, com a própria filha.


- Até o próximo encontro, caríssimos ouvintes da Rádio Triângulo dos Mineiros. Quem vos fala, todas às tardes, é esse mineiro já cheio de saudades, Salomão do Reisado, ao seu dispor.

(Entram os patrocinadores)

Condenados à Felicidade


Ilustração de Kael Kasabian



- Sabe a Clarinha, irmã da Dulce, que se matou o ano passado?
- Sim, me lembro! Aquela que tomou remédio pra dormir e enfiou um saco de plástico na cabeça?
- Essa mesmo. Você acredita que ela vai se casar com o filho do pastor Hans?
- Não me diga uma coisa dessas, menina! E eu que estava arrastando uma asa pra ele. E foi assim, de repente?
- De repente uma ova! Eles estavam num “lovi” desde aquele passeio de jovens, da Congregação de Fiéis do Sétimo Raio Celeste.
- E o pastor já sabe que o Elizelzinho e a Clarinha estão juntos? Você sabe que o pastor alemão não vai com os bofes da Clara, não sabe?
- Sim, sei, mas aconteceu!
- E como foi? Você sabe?
- Nem lhe conto nega, foi amor a primeira mordida! O Elizeuzinho e a Clarinha, no dia do passeio que, aliás, foi um fiasco, se afastaram do acampamento e se mocozaram perto da cachoeira. Você sabe como o pastor é obcecado em separar os sexos nesses encontros de jovens. O cara vê maldade em tudo. Quer ver o filho casando virgem. Depois que a dona Bavária, mulher dele, fugiu com o sacristão Edmundo, ele endureceu na criação do menino.
- E os pombinhos?
- Bem, eles não foram parar na cachoeira pra tomar banho, isso é que não! Foram pros finalmentes, isso é que sim! Acontece que um dos tutores, o Lindalvo surtou.  Acho que você conhece o figurinha?
- Aquele pitbull? Conheço sim. Odeio aquele cara dissimulado!
- Pois o desgraçado foi atrás dos dois! Ao invés de chamá-los e alertá-los, ficou de tocaia, anotando tudo.
- Que nada, ele deve ter ficado é se masturbando, aquele tarado. O cara tem vinte dedos nas mãos e duas línguas. Esqueça essa múmia e conte dos pombinhos.
- Bem, antes de lhe falar dos ‘pombetos’, quero contar outra muito boa. Sabe o Carlinhos, o gorducho, filho da dona Alzira, a cartomante?
- Sei.
- O filho da mãe seguiu o Lindalvo e ficou escondido atrás de uma árvore, e pôde ver tudo o que se passava. Como você acha que eu fiquei sabendo de toda essa história?
- Ah, foi o fofoqueiro do Carlinhos? Só podia ser ele mesmo! Termine de contar a cena da cachoeira.

- Eles se atracaram, nus como duas enguias alucinadas, e fizeram um amor tão espetacular, que deixou o Lindalvo se mordendo todo. O danado ficou com tanta inveja, que saiu correndo pra contar ao pastor Hans.
- Puxa saco invejoso! E aí, e o pastor?
- Ficou sabendo, é claro, e, em seguida, saiu desembestado para a cachoeira, atrás do Elizeuzinho. Ele e o cabeçudo do Pitbull Lindalvo. Chegando lá, os encontraram galopando como dois selvagens. Dava pra ver a baba escorrer da boca do pastor, de tanto ódio, ao ver o filho subindo e descendo da potranca.
- O pastor deve ter sentido é inveja daquilo tudo, isso sim. Tudo isso é de arrepiar.
- Arrepiar? Eles estavam paralisados com a cena. Ver o casal gemendo e se contorcendo dava desespero. A Clarinha, toda achatada, asfixiada pelo Elizeu, gemia: “Ah, entra em mim! Mais fundo, isso, mais fundo!”. Ele agarrava as coxas dela com força, agradecendo por ser o primeiro. Ela delirava sentindo o sêmen quente e ácido, se esparramando dentro do seu ventre úmido e quente. As línguas se sugando num espantoso encontro e as mãos dela agarrando o pênis sólido e do tamanho exato de seu desejo, estrelas transfiguravam seus rostos em êxtase.
- Para, para, que eu já estou excitada! Essa última parte aí, você deve ter lido em algum conto da Rachel Moraes, não é?
- Mais ou menos... Fiz uma adaptação. Pois saiba que foi assim, excitados, que ficaram o pastor alemão e o pitbull Lindauvo.
- Não se esqueça do Carlinhos atrás da árvore!
- Que nada! Ele estava firme, só anotando o desempenho daquilo tudo. Não sabia se olhava pros pombos ou pros cachorros loucos. Os dois homens olharam-se totalmente descontrolados, e sem saber nem como, nem por quê, se atracaram ali mesmo como duas feras, numa fúria bestial. Os dois, com um só pensamento: ‘de que só se vive uma vez’. Numa fração de segundos, suas roupas foram arrancadas, e ali no meio dos gravetos, o Lindauvo se ajoelhou para receber as estocadas no rabo. O pastor gritava de prazer: “Glória Deus nas alturas!”.  Aqueles dois gemiam mais do que o coral das pastorinhas. “É o murmúrio do sangue, louvado seja Deus!”, dizia o pastor e socava o rabo do Lindalvo.
- Essa parte você deve ter tirado do Nelson Rodrigues, né amiga?
- Você não perde nada, hein? Bem, foi nessa luxúria desenfreada de gritos de prazer do pastor e de dor do Lindalvo, que os pombinhos ouviram e vieram ver a inenarrável e dantesca cena do pastor alemão comendo o pitbull.
- Você está de brincadeira, né?
- De jeito nenhum, amiga, é a pura realidade.
- E como eles ficam?
- Oras, ficando! Aquilo se espalhou como o vento pela boquinha santa do Carlinhos. Eles não tiveram vergonha de confirmar. Assumiram tudo.
- Quem diria, hein? O pastor, cheio de hipocrisias, provou do próprio veneno.
- O pastor e o Lindalvo estão vivendo agora na maior felicidade.
- E os pombinhos?
- Se casam agora em setembro. Todos da igreja estão convidados.
- Amiga, eu custo a acreditar!
- Pois acredite, a vida é assim, cheia de surpresas. O pastor disse ao filho que sua vida estava sem oxigênio. Agora não, tudo eram nuvens de algodão. Tudo certo, a não ser pelos telefonemas que eles andam recebendo de madrugada.
- Quais telefonemas?
- Eles não sabem. O Elizeu comentou com a Clarinha, e ela me contou que, todas as madrugadas, o telefone toca na casa deles, e só se ouve uma respiração atormentada, que mais parece uma briga de cachorro louco.