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sexta-feira, 18 de maio de 2012

O Infiltrado

  Tela de Mário Eloy Pereira


Fazia um calor opressivo e irrespirável em Chicago naquele verão. Quem conhecia o inverno dali não podia imaginar um calor daqueles. Os bares ferviam com seus blues. Mas as coisas não andavam bem entre os dois chefões que dominavam os negócios ilícitos do lugar. Eles eram Dom Corleoni Bellagamba e Dom Gaetano de Lampeduzza, dois mafiosos da Sicília que tinham se instalado em Chicago, e dividiram a cidade.

Dom Corleoni era o manda chuva que dominava toda a jogatina do lado sul da cidade. Era dono de mais de vinte casas de apostas. Dom Gaetano controlava a prostituição de todo o norte. Tudo estava dividido, de forma que nenhum se metia com o outro. Isso até os dois resolverem cair de boca no negócio dos assaltos a banco. Foi aí que o bicho pegou.

Antonello Gambetta, o Toni, braço direito de Dom Corleoni, estava, numa tarde, tomando uma cerveja no bar do Billy Caolho, quando viu, do outro lado da rua, um sujeitinho franzino, baixinho, que mais parecia um moleque de recados, dar um safanão em dois capangas de Dom Gaetano, que estavam aos cochichos. Foi tudo tão rápido, que, se Toni não estivesse de olho comprido naqueles dois, teria perdido a cena. Toni era muito esperto, sabia reconhecer confusão a quilômetros de distancia.

Toni viu quando o rapazinho se jogou contra os dois capangas, que estavam parados conversando na calçada, e surrupiou um envelope do bolso de um deles. A ação foi tão rápida, que o capanga só foi perceber minutos depois.

Toni, só de olho na cena, viu quando o ladrãozinho entrou numa Ford Pick Up verde, que já estava a postos esperando por ele, e saiu chispando, queimando os pneus na maior velocidade.

No mesmo instante, Toni deu um pulo da cadeira e se atirou num salto fenomenal para dentro de sua Ferrari conversível, vermelha, que estava estacionada em frente ao bar. Ligou o carro e deu asas a ele, voando na direção do furgão.

Rodaram um bom tempo. Toni sempre disfarçando para que eles não percebessem que estavam sendo seguidos. Mas eles eram muito espertos, e pelas vezes que viraram no mesmo lugar, sabiam da perseguição. Pararam numa casa de tijolinhos aparente e janelas com cortinas lilases. Toni reconheceu o lugar imediatamente. Era um puteiro decadente chamado “Borboletas Lilases”. Ali só tinha meninas caipiras, vindas de outros estados, expulsas ou fugidas de casa. A dona do estabelecimento era um verdadeiro canhão, chamada Waleska. Uma mulher feia, de nariz largo e boca grande, com os cabelos sempre mal tingidos, mas com bom coração. Aceitava as coitadas que apareciam em sua casa, sem fazer muitas perguntas.

Toni deu uma volta pelo quarteirão analisando o local, só para ver se pescava algum movimento estranho. Como os dois rapazes não saiam da casa, resolveu entrar. Perguntou sobre o dono do Ford verde estacionado em frente a casa, e uma das moças lhe disse que estavam num quarto com algumas meninas e, de lá, só sairiam bem mais tarde. Então, Toni resolveu voltar no começo da noite, e foi embora.

O que, exatamente, Toni estava querendo com aquela investigação? Ele tinha faro para achar bons capangas para Dom Corleoni. Não era à toa que tinha ganhado a Ferrari do chefe, no dia do seu aniversário. Naquela tarde, tinha vislumbrado no magrelo a pessoa certa para executar uma missão que estavam planejando já há algum tempo.

À noitinha, ele despencou no ‘Borboletas’. Nem bem chegou, deu de cara com o rapazote, que estava encostado na porta de entrada, fumando uma cigarrilha mentolada. Toni aproximou-se dele, como quem não quer nada, mas tomou um susto, pois, sem mais nem menos, ele jogou o cigarro do lado e foi peitando Toni na maior valentia. Disse ao Toni, todo nervosinho:
- O que é que tá pegando, hein almofadinha?
- Hei, calma lá, meu brother!
- Brother o cacete! Não venha botar banca para cima de mim. Não se faça de besta! Você se acha muito esperto, não? E eu não te vi na maior perseguição, hoje à tarde? Deixe de fazer cera e desembuche, carrapato!

Toni estava atônito, por aquela ele não esperava, o frangote era valente mesmo. Encarou-o e disse:
- Menino, você é melhor que a encomenda.
- Encomenda? O que você sabe da encomenda de hoje à tarde?
- Calma aí, possuído! Nada sei daquela encomenda que você surrupiou na mão leve daqueles dois capangas.
- Dois otários, isso sim! Acontece que aqueles dois filhos de uma égua estavam querendo me passar para trás, com uma encomenda que era minha por direito, mas acabaram dançando, porque comigo não, violão.



Toni apresentou o magricela a Dom Corleoni. Seu nome era Baby Strombolli. Apesar dele aparentar uns vinte anos, tinha na verdade trinta e cinco. Era, simplesmente, o melhor e mais esperto capanga de Dom Gaetano. Além de esperto, era um bocado ambicioso, por isso não foi difícil convencê-lo a aceitar o serviço de “entregador”. Ele, em troca, levaria dois lingotes de ouro.

Quando Baby viu o futuro pagamento nas mãos do capo, deu um salto da cadeira, como se tivesse sido espetado por uma agulha. Ele já tinha projetos para aqueles lingotes, e não os perderia por nada. Para ganhar essa bolada, ele sabia que tinha que ser muito esperto, mas ele se garantia, sabia que era um macaco velho no negócio da contravenção. O trato era o seguinte:

Na Penitenciária do Estado, estava um capanga de Dom Corleoni, que havia feito um mapa, todo detalhado, do Banco de Investimento de Chicago. Esse sujeito mofava na cadeia, justamente por ter tentado assaltar esse banco e não ter conseguido. Ele sabia tudo do local, pois havia trabalhado lá como segurança. Dom Corleoni achava que, agora com esse mapa, conseguiria entrar e sair desse banco sem problemas. Seria um dos maiores assaltos que faria. Depois disso, poderia expandir seus negócios.

Pegar esse mapa não era nada fácil. Já tinham tentado vários contatos com esse capanga, mas ele era extremamente vigiado. Todas as tentativas de retirar esse mapa haviam falhado. Tentariam agora com o Baby que, se por acaso caísse nas mãos dos meganhas, pensariam que era mais uma das tramóias de Dom Gaetano, já que Baby, realmente, fazia parte da turma de carcamanos rivais.

Dom Corleoni ainda perguntou ao Toni se o Baby era mesmo de confiança, se na última hora, não ia mijar para trás. E Toni respondeu:
- Não o subestime, capo. Baby é o melhor para esse serviço!
- Espero não me arrepender, Toni. Você sabe que eu prezo demais a confiança que lhe deposito.

E foi assim que Baby Strombolli entrou para o caminho de mão dupla, servindo a dois senhores. Agora ele era um infiltrado.

No dia marcado para visitas, Toni e Baby estavam a postos em frente a penitenciária. Combinaram que, logo depois da visita ao carcamano que estava preso, se encontrariam no bar Quatro Olhos, que ficava a duas quadras do local. O tempo foi passando, a hora da visita já tinha se findado há mais de meia hora, e nem sinal do Baby.

Um suor gelado começara a se instalar na testa de Toni. A barriga já dava sinais de um transtorno eminente. Sua reputação estava em jogo. O capo Dom Corleoni tinha confiado nele, dado total carta branca naquele caso. Ele sabia que, se falhasse, deixaria de ser o braço direito da máfia. Desde os seus quinze anos, ele tinha as costas quentes com Dom Corleoni. Seu pai tinha sido como um irmão para o capo. Ele  morreu se atirando em frente ao corpo de Dom Corleoni, numa emboscada feita pelos policiais, num assalto a uma joalheria. Antes de morrer, o pai de Toni fez Dom Corleoni prometer que cuidaria do seu bambino.

Agora Toni estava com as calças nas mãos esperando aquele frangote. Sabia que todos entrariam numa bufunfa lascada, tinha que manter a calma. Era só ficar de antena ligada, que tudo daria certo.

Toni já estava começando a desconfiar da demora do Baby. Pensou: Esse magricela ainda vai queimar o meu filme com o capo. Ele que não seja besta, porque eu acabo comendo seu fígado num hambúrguer.

De repente, Toni ouviu um barulho vindo da calçada. Olhou pelo espelho retrovisor e viu um cegueta, velho e capenga, vindo na direção da Ferrari. Batia com força uma bengala no chão, fazendo o maior estardalhaço. Ele estacou em frente a porta do passageiro e falou:
- Missão cumprida! Vamos embora.
Toni, que já estava tremendo, prestes a ter que sair correndo para visitar um banheiro gritou:
- Caramba! É você mesmo, malandro? E não é que o frangote conseguiu? Como foi que você fez?
- Nada que uma bengala oca e um bom disfarce não resolva.
Entrou no carro, bateu nas costa de Toni, e saíram, queimando os pneus, rindo pela avenida.

sexta-feira, 4 de maio de 2012

O Tempero Secreto (memórias de uma menina-moça)


Tela de Alexei Alexeivich Harlamoff

Quando foi inaugurado o Grande Hotel, meu pai e eu estávamos trabalhando nas vindimas do Alentejo, a maior província de Portugal, na Herdade da Malhadinha Nova, perto de Albernoa. Trabalho duro e cansativo, que era a do apanho dos bagos para depois pisá-los nos lagares. Um dia, meu pai recebeu uma carta de um primo, que trabalhava no Hotel Herdade dos Mouros como jardineiro. Dizia que estavam precisando de um faz-tudo, e, como sabia das habilidades de meu pai em consertar coisas, pedia a ele que aceitasse, pois seria um bom lugar para nós. Senti pelos olhos brilhantes de meu pai que iríamos; e foi assim que nós nos instalamos numa casinha de pedras com varanda, dois quartinhos, uma grande cozinha, que também fazia lugar de sala.

Aquele convite tinha caído do céu para nós dois. Deixamos a Herdade da Malhadinha para trás, sem muitas saudades. Uma semana depois, já nos sentíamos em casa. Realmente, meu pai tinha muitas coisas para consertar naquele hotel. Eu, além de cuidar do nosso novo lar, ia para a cozinha do hotel ajudar na arrumação das louças. Aos poucos, fui percebendo o desenrolar do fluxo daquele lugar tão encantador.

Com o passar dos dias, fui conhecendo cada canto daquele hotel tão singular. Todos os funcionários estavam familiarizados com a minha presença. Eu era, portanto, uma grata figura que estava ali para ajudá-los no que precisassem. A única pessoa que eu tinha um certo receio de chegar perto era o cozinheiro. Não era medo, era um sentimento de precaução. Talvez por nunca ter visto um homem tão bonito em minha vida. Ele era alto e magro, mas com músculos por baixo da camisa. Sua pele morena, e seus olhos negros que nadavam num mar branco de longos cílios entregavam sua origem árabe. Confesso que me escondia, todas as vezes que ele chegava, para orquestrar seus ajudantes de cozinha, que era feita de varias salas. A dos peixes e frutos do mar, das carnes, das aves, das saladas, e das sobremesas. Em cada uma delas, eram resolvidos os delicados manejos dos primorosos pratos que faziam o delírio dos hóspedes. A comida era coroada com um molho, desenvolvido pelo charmoso cozinheiro árabe. Uma receita guardada a sete chaves, e ninguém, além dele, tinha acesso a esse segredo. Todas as refeições eram regadas com os melhores vinhos alentejanos, vinhos que eu e meu pai já conhecíamos.

O único lugar que ninguém podia chegar perto era a adega. Somente o sommelier e o cozinheiro árabe, tinham o poder naquele reino etílico.

A cidade tinha ficado famosa por conta dos artistas que começaram a fazer dela um point de encontros e eventos. O Hotel Herdade dos Mouros seguiu a onda do sucesso, tornando-se um lugar de extremo bom gosto, procurado por todos os que moravam nas redondezas para almoços e jantares e por turistas do mundo inteiro.

A paz que aquele lugar trazia inflamava o espírito, fazendo você querer estar ali para sempre. Andar pelas alamedas dos jardins compensava todos os dissabores de uma vida. Tudo ali era feito para emocionar. Cada quarto surpreendia por sua originalidade. Cada suíte era de uma cor: lilases, foscos, densos tons azuis, e verdes que flutuavam ramos de flores coloridas. Madeira aparente decorava quase todos os ambientes. Armários, cômodas e camas de época. Os metais antigos no banheiro brilhavam. A banheira de hidromassagem era iluminada por luz natural que se filtrava através da vegetação e da transparência dos vidros. Os quartos todos eram voltados para uma montanha, que tinha incrustado como um medalhão, uma cachoeira. Ao redor da montanha, um rio negro que refletia os ciprestes e serpenteava toda a encosta que separava o jardim do hotel.

Meus primeiros seis meses foram dedicados ao aprendizado das coisas que me cabiam, e um pouco além delas.

Um dia, quando a cozinha estava quieta, naquela hora morta, depois da arrumação do jantar, quando todos os empregados já estavam recolhidos em seus aposentos, eu resolvi ir até a geladeira pegar uma sobremesa que tinha reservado para comer. Era a sobremesa preferida do cozinheiro árabe, Pêssego Melba.

Quando fechava a geladeira, vi um vulto se esgueirando para aos lados da adega. Estatelei do lado da parede, onde havia um nicho, para não ser descoberta em meu delito - o pecado da gula. Meu coração batia, retumbando como um tambor de soldadinho assustado, porque aquele não era um território livre. Enquanto dava ordens ao meu coração para que fizesse o favor de parar com aquele batuque, pensei se ganharia algum crédito de confiança em descobrir quem estaria entrando na adega àquela hora da noite.

O sommelier não morava no hotel, portanto, já deveria estar bem longe dali. Do cozinheiro eu não sabia nada, era o sujeito mais estranho que eu já tinha visto. Uma vez demos um encontrão num dos corredores do hotel. Minha cabeça bateu bem no meio de seu largo peito e fiquei sem ação quando aqueles olhos de um brilho estranho e misterioso me cercaram querendo descobrir algo. Suas mãos me alcançaram numa curva desfeita que tentei refazer para me desviar de seu corpo e nessa hora pude observá-las. Não tinham manchas ou ossos salientes. Eram morenas e sem pêlos, como as mãos de uma mulher, se não fossem tão grandes. Como tinha cabelos compridos, ele os prendia com um lenço verde escuro. Quem não o conhecia, diria se tratar de um corsário, ladrão de corações.

Segui minha intuição, tirei meus sapatos para conservar o silêncio sobre controle, e fui atrás do gatuno da adega.
A adega era pequena, tinha quatro fileiras com prateleiras cheias de garrafas de vinho. Todas as paredes tinham estantes com garrafas. Fiquei do lado de fora, encostada à porta para tentar ouvir algum som suspeito. Tudo estava no maior silêncio. Foi quando ouvi passinhos, vindo em direção à cozinha. Eram duas hóspedes que riam abraçadas e iam direto à geladeira. Quando viram a taça de Pêssego Melba, fizeram o maior carnaval, comendo tudo ali mesmo. Eu não acreditei naquela mancada que eu tinha dado por não ter levado a taça dali, como tinha planejado. Não, eu tinha que bancar a detetive. Como eu não tinha conseguido nem o Melba nem o gatuno, fui para a minha casa dormir.

Meu pai já tinha pegado no sono, perto da lareira, e nem percebeu a minha entrada. Sonhei com a adega a noite inteira. Havia taças de Pêssegos Melba em todas as prateleiras e as duas hóspedes estavam embriagadas de tanto comer das taças. Acordei aos sobressaltos e fui até a varanda. Vi nascer uma lenta e pálida aurora que espalhava as brumas sobre as flores do jasminzeiro que derramava seu perfume pelo ar.

Daquele dia em diante fiquei em alerta. Ninguém passava por mim sem que eu acionasse meu sistema de alarme. Aquele ano, o hotel estava mais alegre do que nunca, todo os quartos estavam alugados, e o almoço e jantar eram disputadíssimos por gente que aparecia de não sei onde.

Nos dias claros e de alta temperatura, o almoço era servido num caramanchão, rodeado por glicínias lilases. Grupos de amigos se contorciam nas mesinhas de madeira entalhadas em marchetaria, que formavam flores. Abriam-se grandes guarda-sóis para essas mesas que ficavam longe do caramanchão. A festa começava quando chegavam as saladas e seus espessos molhos deslizavam nas folhas, muitas vezes servidas pelo próprio cozinheiro árabe. Depois das refeições, fluía um ar encrespado, um inquieto contentamento, como se todos estivessem num estado de frenesi. No jantar, esse estado de espírito era mais óbvio. Eu não sei se por causa da luz de velas e do perfume do jardim que entrava pelas janelas abertas, ou se pela música suave e envolvente que sempre tocava, só sei que tudo respirava erotismo.
Aquilo tudo era um tanto estranho para mim que começava a imaginar “coisas” em relação ao sexo.

Uma noite, quando tudo se aquietara no hotel, fui dar um passeio pela geladeira. Não era os Pêssegos Melba que eu procurava, mas o vulto da adega. Fiquei bem atrás da geladeira, só na espera. Queria saber como alguém podia entrar ali e desaparecer, se não havia nenhuma porta ou escada. Entrei na adega e fiquei encolhida entre uma das estantes perto da porta de entrada. Mal respirava. Imóvel e tentando ser invisível fiquei ali uns dez minutos, quando ouvi passos sorrateiros se aproximando.

Como a adega estava em penumbra, ficou impossível ver o rosto da pessoa, mas pelo tamanho, vi que era um homem. Ele girou uma garrafa e a estante de vinhos que ficava numa das paredes, se mexeu, abrindo uma passagem estreita que se fechou imediatamente. O vulto desapareceu. Fiquei sem ar e de pernas bambas por uns instantes. Aquilo de passagem secreta, só tinha visto uma vez, num filme. Marquei muito bem o lugar contando as garrafas, para saber qual abriria a porta, pois voltaria na noite seguinte.

Foi o dia mais longo de minha vida. Antes do jantar, aconteceu algo na cozinha e eu fui chamada às pressas. Pediram que eu ajudasse na preparação das saladas, pois a moça que fazia esse serviço tinha faltado. Disseram que sua irmã gêmea tinha desaparecido e ela teve que ficar com os pais que estavam desesperados. Na cozinha, cochichavam pelos cantos, comentando sobre a extrema beleza das irmãs e o desaparecimento da mocinha. O único que se mantinha impassível e inalterado era o cozinheiro árabe. Naquela noite tensa e cheia de aflição, eu vi quando o olhar do cozinheiro desceu discretamente de meus seios até os meus pés. Disfarcei e sai correndo para a casinha de pedras, mas no meio do caminho voltei novamente para a cozinha me sentindo uma boba por não aguentar o olhar de um homem.

Tomei uma decisão naquele instante. Fui até a adega, uma hora mais cedo do que o vulto costumava chegar. Girei a garrafa e vi a portinha se abrindo. Não sabia se entrava ou saia correndo dali e contava tudo ao meu pai. Decidi não contar nada, sem antes descobrir o que realmente existia ali. Desci os degraus que levavam a uma salinha sombria, que tinha sua penumbra quebrada por velas acesas por todos os cantos. Achei uma porta, logo atrás de uma cortina pesada, e entrei no maior silêncio, para uma outra sala. Esta era totalmente preta, com as paredes forradas de veludo. Parecia uma sala a prova de som, pois as paredes eram macias demais. Ali, bem no meio da sala, havia uma cama estranha, mais alta que as camas comuns. Do teto saiam duas correntes com argolas de aço nas extremidades. Nas laterais da cama havia correias de couro na altura das mãos e dos pés. Ao lado dessa cama maluca, ficava uma confortável poltrona de veludo vermelho, e junto dela, uma mesinha com rodinhas nos pés, cheia de toalhas brancas e tigelinhas de louça, iguais as da cozinha.

Eu tremia tanto e meu coração batia tão forte, que fiquei com medo de ser descoberta. Pensei em sair dali voando, em fugir como um ladrão da noite, mas me encolhi na minha invisibilidade. Tinha que exercer dali por diante o meu aprendizado sobre o silêncio e fiquei mais do que muda, virei sal. Foi quando alguém entrou na sala. Imediatamente eu me esgueirei por trás de uma cortina espessa que, felizmente, chegava até o chão, e pensei: - seja o que Deus quiser!- Ouvi alguém entrando na sala e tive que espiar. Dali para frente, o que vi foi um total desafio para mim.

Quem entrou naquela sala aveludada foi o cozinheiro árabe. Ele estava exatamente como veio ao mundo, nu. Como eu nunca tinha visto um homem nu, a não ser o meu vizinho de dois anos lá do Alentejo, aquilo foi um tremendo choque para mim. O cozinheiro entrava e saia trazendo coisas que eu não conseguia identificar, e as ia arrumando na mesinha. E então, ele entrou numa porta, que eu não tinha visto por estar escondida sob as cortinas, e de lá, voltou com uma moça nua nos braços. Era a Ana, a moça da cozinha, aquela que eu estava substituindo. Colocou-a sobre a cama preparada e puxou-a até o meio, abrindo suas pernas, tudo isso com a maior delicadeza. Amarrou seus tornozelos às correias e as mãos foram atadas às argolas do teto que se moviam num vai e vem, dando mobilidade ao seu corpo, fazendo com que pudesse subir ou descer. A cabeça ficou solta, e ela podia levantá-la e ver como seria o seu sacrifício.

O cozinheiro fazia tudo no maior silêncio. Eu não respirava mais. Ele ligou um aparelho de CD e uma música árabe deu o sinal. Ali, começaria um ritual de luxuria que me deixou tonta e sem chão. Primeiro ele derramou sob os seios de Ana um creme branco que não consegui identificar, mas parecia ser o creme do Pêssego Melba. Foi nessa hora que começou a tortura, não dela, mas minha. Ver aquele homem nu lambendo aquele creme, não estava me fazendo bem.

Ana se contorcia, abrindo e fechando a boca. Seus olhos ficaram semicerrados e marejados de lágrimas, enquanto ele despejava um cálice do creme em seu ventre, fazendo com que ela se contorcesse, levantando os quadris, parecendo querer se desprender das amarras.
O cozinheiro deu um salto subindo na cama, e com seu pênis duro, mergulhava-o no pote de creme passando-o no rosto e na boca de Ana. Ela gemia e se contorcia, quase como eu faria se estivesse no seu lugar.

O cozinheiro continuava aquela tortura de mestre. Quando alcançou a boca da mocinha, delicadamente foi introduzindo aquele membro duro e latejante, até que finalmente ela o estreitou inteiro em sua garganta. Eu não sabia se ela comia o creme ou sugava aquele corpo enlouquecido.

Quando ela começou a ficar ofegante e seus olhos se tornaram brilhantes, ele desceu até o seu ventre, e foi de língua em riste, contornando as curvas todas dos quadris, indo e vindo em círculos, até chegar num monte suave e trêmulo. Ela se sacudia toda, querendo aproximar-se cada vez mais daquela boca sedenta. Quando seu clitóris estava endurecido e rosado como um botão, ali naquele momento, ele mostrou a que veio. Com dois dedos, ele penetrou-a por trás. Eu nem sei se ela estava gostando, pois me pareceu que iria se dissolver naquela cama a qualquer momento.

Com a língua, como se estivesse lambendo um sorvete, ele sugava aquilo tudo, num vai e vem, com o mesmo ritmo dos dedos que brincavam por trás. Quando parecia que Ana ia virar uma cobra viva se sacudindo para tentar se soltar, ele parou tudo e penetrou-a com aquele símbolo fálico descomunal. Enquanto ela gemia por mais, ele entrava e saia, mordendo seus mamilos endurecidos e febris. Puxava seus cabelos para trás com as duas mãos e segurava sua cabeça, enfiando a língua em sua boca quente e úmida. E quando eles começaram a tremer de dor e prazer, por causa desse compasso alucinado, ele, de repente, parou tudo e se enfiou entre as coxas de Ana, que começou a subir e descer os quadris, em êxtase. Ele como um mestre enfiava-lhe dois dedos num ponto de seu ventre, fazendo-a sacudir tanto e a gritar e chorar, que quase saio correndo dali, mas como estava tão petrificada, como excitada, não me mexia nem por decreto.

Ana estava começando a se acalmar depois do tremendo espasmo alucinante, quando, pasmem, o cozinheiro recolheu na tigelinha de louça todo o líquido espesso que Ana vertia. Juro que eu não entendi o porquê daquilo. O cozinheiro, então, soltou as pernas e os braços da mocinha, e eles se abraçaram e se beijaram como nunca vi em lugar nenhum. Penetrou-a novamente de uma forma que parecia que a amava. Foi o que eu vi naquela noite inesquecível.

Daquela dia em diante, eu nunca mais seria a mesma. Amadureci uns dez anos. Descobri que a moça que eu pensei ser Ana, a ajudante da cozinha, era a sua irmã Nina, que estivera desaparecida. Ana nos disse que sua irmã havia aparecido depois de uma semana. Estava esgotada, e mais parecia um zumbi. Por mais que a família perguntasse o que tinha acontecido, a resposta era sempre a mesma. Junto com um sorrisinho maroto, dizia que não se lembrava de nada. Apenas que alguém tinha lhe enfiado um capuz na cabeça e lhe dado algo doce para tomar. Como se alguém pudesse esquecer daquilo tudo!

Descobri que o tempero secreto do cozinheiro árabe era, nada mais, nada menos, que fluídos orgásticos de mocinhas, mantidas por um tempo naquela masmorra do prazer. Era com “isso” que o cozinheiro árabe temperava os deliciosos molhos com gosto de maresia, que encantava a todos.

Naquele ano, a cozinha do Hotel da Herdade do Mouro foi agraciada pelo Guia Michelin, com cinco estrelas por conta de sua “jóia rara”: o molho especial batizado de “MAR ADENTRO”.

Aquele quarto de veludo negro recebeu muitas mocinhas que perderam a memória completamente ou quiseram perdê-la. Eu ainda guardo na lembrança como era doce o Pêssego Melba do cozinheiro árabe do inesquecível Hotel da Herdade do Mouro.