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sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

O Espectro

Ilustração de Chris Appelhans


Meu pai queria morar em uma casa grande, mas como ele não tinha todo o dinheiro para tocar a obra de uma só vez, fez um anexo, que mais tarde seria à garagem e o quarto da empregada. Ali morávamos eu, minha irmã mais nova e meus pais.

Acontece que eu queria um lugar sossegado para estudar e esse lugar era na casa grande, semi-acabada. No andar de cima, havia três quartos, um banheiro e um terraço. Num dos quartos, minha mãe tinha colocado uma penteadeira antiga, dessas com espelho e uma banqueta para que eu pudesse estudar.

Um dia eu estou subindo as escadas, quando escuto risadinhas histéricas, vindo de um dos quarto que ficava bem defronte ao que eu costumava estudar. Apurei meus ouvidos para escutar quem estaria ali na nossa casa. O que eu ouvi, não foi nada agradável. Meus dois primos e mais três colegas estavam planejando um golpe contra mim.

Eu ouvi cada detalhe da traminha que eles estavam arquitetando. Fiquei por uns instantes me corroendo de raiva, mas tive uma idéia e articulei a melhor forma de fazê-la.

Desci correndo para o anexo onde morava e lá, me aprontei, vestindo-me de forma que ficasse com a cara de um espectro. Vesti um paletó velho do meu pai que em mim ficara enorme. Amarrei um trapo preto no pescoço e dei voltas até cobrir parcialmente a cabeça. Tirei tufos de cabelo pelas brechas que o trapo fazia e deixei-os emaranhados. Passei carvão no rosto. Os olhos esbugalhados e o branco que restava deles, mais os dentes arreganhados, arrematou o monstro, fiquei horrível mesmo. Como não dava tempo de pensar nas calças, me enrolei com um pano preto que servia para cobria umas caixas e assim, com pinta de Mandrak que morreu atropelado, corri para o meu quarto de estudos. Silenciosamente fiquei esperando pelo que eles haviam combinado.

Não demorou muito para que eu ouvisse um arrastar de correntes na escada. Fiquei com a cabeça abaixada, até que a porta foi se abrindo devagar e eu vi pelo espelho, um dos meus primos aparecer, vestindo um lençol branco, imitando um fantasma.

Acontece que neste exato momento, eu levanto minha cara negra e sinistra, virando-me lentamente, encarando o fantasminha de forma tétrica... nem precisei falar nada. Ele começou a tremer e de repente, deu um sonoro grito, foi escorregando, escorregando e... ploft! Despencou no chão. A debandada foi geral. Grandes amigos! Nem para socorrer o pobre fantasma serviram.

Eu, mais que depressa, desapareci dali. Retirei num piscar de olhos toda aquela parafernália do meu corpo. Lavei o rosto preto de carvão com o coração na boca.

Voltei para a casa grande como quem não sabe de nada e vi a confusão armada. Minha tia, minha mãe e algumas vizinhas tinham sido acionada. Aquilo estava uma beleza. Os meninos da pesada, estavam sem fala, brancos de dar dó. O coitado do meu primo fantasma, tinha voltado do desmaio e tentava explicar o ocorrido para aquele bando de matracas apavoradas.

Gaguejando e falando baixinho, acho que de medo de voltar a ver o que tinha visto, contava a todos que tinha aberto a porta do quarto para me chamar para brincar. - verdadeiro cara de pau - e viu o mais pavoroso demônio com chifres, uma corcunda enorme, cabelos vermelhos e um olho enorme no meio da testa. E assim ele foi descrevendo um ser diabólico que eu jamais podia imaginar ter feito igual. Fiquei de boca aberta com tanta imaginação.

Levaram o coitado carregado nas costas para que descansasse do susto. À noite quando o meu pai chegou do trabalho e estava à mesa jantando conosco, perguntou a minha mãe:

-Você pode me explicar que coisa foi essa de nossa casa ter sido invadida por uma horda horripilante de capetas?

Fiquei impressionada com o desenrolar de um caso.

Desde aquele dia sinistro pude estudar ali na casa grande sem nenhum problema de, de repente, topar com fantasmas arrastando correntes.

sábado, 23 de fevereiro de 2008

A Música dos Anjos

Tela de Michael Whelan



Ana Paula Roquesttelle era musicista erudita e causava grande influência em seus alunos. Era adorada por eles por sua delicadeza e doçura. Tinha um método peculiar de ensino que fazia com que seus pupilos gostassem da música clássica e nunca mais quisessem ouvir outra coisa que não fosse os grandes mestres. Ela era dona do renomado Conservatório de Música Erudita Roquesttelle. Era uma das professoras mais bem pagas, não por ser a dona, mas por competência e quantidade de alunos. Todos queriam ter aulas pelo novo método dessa mestra. Eu mesma tive o prazer de aprender violino com essa fantástica musicista. Uma vez, em uma das festas que o Conservatório promovia para divulgação das músicas interpretadas pelos alunos avançados e que eu também fazia parte, conheci um senhor de nome Geronimus que, soube mais tarde, tinha cento e cinco anos. Ele era da mesma cidade italiana da mestra Ana Paula e me disse em surdina conhecer o seu grande segredo.

Quando ele me falou a palavra segredo, imediatamente pressenti algo como um redemoinho passando pelo meu corpo. Sabe, quando sentimos um arrepio na espinha dorsal? Pois é, foi isso o que eu senti. Fiquei gelada. Ele, gentilmente, me convidou para visitá-lo em sua mansão. Naturalmente eu aceitei e, no dia marcado, bati naquele portão de ferro, forjado com esmero, na mais fina criação Art Nouveau. Ali, entre bétulas e ciprestes, sentamo-nos num jardim de sonho, onde ele mandou preparar uma mesa com deliciosos petiscos. Disse-me que era sempre um bom pretexto, convidar alguém para essas visitas, pois só assim, sua filha Amarantha, simpática e charmosa velhinha, permitia que ele provasse das iguarias proibidas pelo médico.

Geronimus era uma figura espetacular. Muito sábio, profundo conhecedor do ocultismo e, pelo que entendi, era membro da Ordem Rosa Cruz. Ele não quis me falar dessa Ordem; nesse dia, o que ele queria, realmente, era me falar de Ana Paula e sua música. Apesar dos seus cento e cinco anos, Geronimus tinha uma voz límpida e sonora, fazendo com que nosso encontro fosse muito agradável. Fiquei à vontade para comer, enquanto ele me falava da arquitetura de sua casa e do seu esplendoroso jardim. Depois do delicioso lanche, nos mudamos para uma sala íntima, onde pude sentir o aroma do cedro dos móveis e sândalo do incenso que perfumava o ambiente. Ali eu ouvi Geronimus contar sobre o inacreditável segredo de Ana Paula Roquesttelle.

-Conheço Ana Paula há muitos anos, já perdi a conta deles. Ela não foi sempre assim tão plácida. Por muitos anos ela se deixou transformar numa figura gótica, sombria e sozinha.

Ela já foi casada e teve um filho. Filho este era o seu sol na terra. O casal, junto com o filho, gostava de viajar nas férias. Íam sempre para a Ilha de Lampedusa, onde tinham uma casa de pedras, à beira da praia. Fabrianno era o nome do filho que, na época do acontecido, tinha quinze anos. Contra a vontade do marido, o famoso conde Fabrizzio de Roquesttelle, Ana Paula queria visitar uma pequena ilha desabitada, próxima a Lampedusa, que se chamava Ilha de Lampione. É uma ilha que tem somente um farol, por isso esse nome Lampione. Fabrizzio não concordava com a mudança de planos, pois sabia que esta ilha era infestada por ferozes tubarões cinza. Então, combinou com Ana e o filho que faria primeiro uma visita pelas redondezas da ilhota e se achasse que tudo estaria bem, com certeza iriam acampar por lá. No dia seguinte ao combinado, o conde Fabrizzio contratou um barqueiro para levá-los a ilha. Foi tudo fácil, num instante, estavam em alto mar, rumo à ilhota. Tudo estava bem, o mar estava tranqüilo e a temperatura amena. Foi quando o pai, deu com o filho, escondido atrás da cabine do barco. Naturalmente não gostou da proeza, mas para não começarem uma conversa de desentendimento ali, na frente do barqueiro, ficou calado, aceitando o companheiro de viagem.

Quando chegaram perto da ilha, perceberam os tubarões rondando o barco. O barqueiro tranqüilizou os dois que olhavam a ilha se aproximando. Era uma pequena montanha de rara beleza que se formava no horizonte. Ela estava sendo preservada pelo governo que proibia qualquer tipo de caça predatória no local. Sobrevoavam o barco muitos pássaros exuberantes. Estavam maravilhados. Fabrizzio dizia ao filho o quanto sua mãe gostaria daquele lugar. Enquanto ele falava, o barco bateu em alguma coisa dura. Eles se curvaram para saber o que seria, quando Fabrianno gritou ao pai: “Estamos afundando! Batemos nos corais.”

Um longo fio de corais amarelo e rosa rodeavam toda a orla da ilha como um colar de deusa. Dessas deusas ciumentas, que querem os homens a seus pés. O barco, danificado por um grande rombo no casco, encheu-se de água e desapareceu no fundo do oceano. E foi o que a deusa dos corais teve: três homens que desapareceram, ali ao lado da majestosa ilha, devorados pelos tubarões.

Nessa hora do relato eu não me contive e falei:

- Meu Deus, morreram!

- Sim, morreram! Não foi fácil para Ana Paula. Aquela notícia acabou com os seus sonhos. Quando se casou com o conde, ficou sabendo das dificuldades que teria para engravidar. Esperaram muitos anos para que fossem contemplados com aquele bebezinho com carinha de anjo. Era um menino calmo e doce que encheu a vida deles de luz.

Depois da tragédia, ela se afundou num abismo de trevas e por um longo tempo viveu ali, escondida de todos e de si. Trancou-se em sua casa, recebendo somente os entregadores das compras que fazia por telefone e/ou internet. Completamente isolada, foi ficando sombria e muda. Um dia, estava no jardim da mansão, quando viu uma sombra se esgueirando pelas árvores. Correu atrás para enxotar quem quer que fosse, dali. Parou, de repente, quando viu, no fim do jardim, o seu filho que lhe acenava com um sorriso. Correu até onde ele estava, mas sua imagem se dissolveu no ar.

Desse dia em diante não teve mais sossego. Queria fazer contato novamente com Fabrianno. Passou a estar no jardim dia e noite. Procurava aquela imagem irreal tão querida que lhe trouxe o mais doce dos sorrisos, para depois deixá-la completamente desvairada e sem sossego... Uma manhã, toma uma decisão: iria até a Ilha de Lampione!

Contratou o filho mais velho do barqueiro que havia morrido na tragédia para levá-la àquele lugar de morte. Marcaram para chegar à ilha quando a maré estivesse baixa. O rapaz dizia: “Só assim poderemos ver o colar de corais que envolve todo o lugar.”

O rapaz parecia conhecer muito bem da arte da navegação. Ana Paula ficou totalmente confiante nas mãos do jovem barqueiro, pois ele também tinha interesse em prestar uma homenagem ao seu querido pai, morto pelos tubarões. Tinha com ele, arpão com muitos dardos, caso tivesse que enfrentar aquelas feras marinhas.

Ana Paula sabia que estava indo para um lugar completamente desconhecido. Tinha consciência do perigo que corria, mas uma força estranha impulsionava seu corpo, sua mente e seu espírito, para aquela pequena ilha.

Viram os tubarões rodeando o barco, mas eles nada fizeram a não ser, dar umas voltas e depois se afastar. Era como se estivessem dando permissão a eles de visitar a ilha. Os corais foram avistados por causa da maré baixa; portanto, navegaram em segurança pelas brechas livres que os corais faziam e atracaram numa praia de areia branca e fina que irradiava uma luz fascinante. Quando o rapaz estava puxando o barco para que não fosse arrastado pela maré, Ana Paula sentiu que algo começava a se modificar ao seu redor.

-Como assim? - perguntei.

-Ela viu que a atmosfera se tornou palpável. Podia alcançar todas as coisas. Podia tocar as nuvens, o céu. É difícil descrever tudo o que ela sentiu com meras palavras, mas ela estava numa dimensão diferente. Todas as coisas ficaram muito mais nítidas. Era como se pudesse ver o espírito de todos os elementos. Havia no ar uma música tão bela que irradiava cores, e ela pode sentir, neste momento, a presença de Deus fluindo em todas as coisas. Todo o seu corpo foi invadido por um amor extremo tão forte que a fazia tremer em êxtase. E esse estado de amor supremo foi o fio que trouxe à sua presença o seu filho amado, Fabrianno.

Ali, naquela ilha estranha e mágica, pôde estar em comunhão com ele numa alegria infinita que emanava de todos os lugares para onde olhasse. Uma força angelical atravessou o céu, num tubo espiritual, ligando-se à terra. E desse canal de luz foi saindo anjos da música trazendo, cada um, uma dádiva a ela que, nesse momento, foi completamente transformada em luz. Um dos anjos, chamado Anael, beijou suas mãos e lhe deu toda essa sua inspiração, para que ensinasse aos homens a música dos anjos. Essa é a estória de Ana Paula. Depois vim a saber, que o anjo Anael é o Arcanjo de Vênus, que rege a beleza, a arte e a música.

-Que estória impressionante, caro Geronimus!

-Realmente é impressionante, querida, mas você não imagina a minha idade quando soube de tudo isso.

-Não vá me matar de curiosidade, por favor! Conte-me tudo.

-Eu era amigo de Fabrianno, estudávamos juntos quando tudo isso aconteceu.

-Quer dizer que...espere aí! O senhor tinha quantos anos afinal?

- Eu tinha quinze anos.

-E a Ana Paula devia ter uns trinta?

-Trinta e dois anos exatos.

-Mas, como pode ser isto, se ela parece ter trinta e dois agora?

-O que eu sei é que ela foi abençoada por um anjo naquela ilha. E o seu filho teve parte nisso tudo, pois foi ele que acionou o tubo espiritual recebendo os anjos. Essa incrível metodologia que ela usa para ensinar, com certeza, vem de um plano divino. Sua beleza eterna deve fazer parte dessa conspiração angélica.

-Mas por que o senhor quis contar essa história para mim?

-Porque naquele dia, no conservatório, quando ouvíamos aqueles estudantes, inclusive você com o seu violino, eu vi ao seu lado, o reflexo de Fabrianno, inebriado por sua música.

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008

O Cemitério

Tela de Marc Chagall


Caminhava pelas alamedas do cemitério em silêncio, rezando um mantra de paz. Minha mãe querida, que já fez a grande e misteriosa viagem, é quem me ensinou esse mantra da consolação. Venho todas as manhãs ao cemitério não por me sentir deprimida, mas para fazer minha caminhada matinal. Gosto de caminhar sozinha, pois assim não perco o pique da respiração. O mantra me ajuda a limpar aqueles pensamentos desnecessários que só fazem nos deixar pra baixo. Quando estava na quarta e última volta, eis que vejo um homem ajoelhado em um túmulo, em prantos.

Aquele homem enorme, ajoelhado, causava pena. Fiquei sem saber se intervinha, se dava uma volta ou se me aproximava para lhe oferecer ajuda. Mas, que ajuda alguém como ele, bem vestido, de boa aparência, poderia querer?

De repente, num rompante, o homem retira de sua maleta um revólver. Ergue aquela arma para a sua fronte e eu, estupefata, vejo o reflexo do sol nela, no exato momento em que ele dispara contra si.

Virei-me para sair correndo dali, quando vi que, de sua maleta, começaram a voar uns papéis. Não podia deixá-los sair ao léu, com o vento. Corri até a maleta e fui recolhendo as folhas todas. Quando já as tinha nas mãos, eis que o zelador do cemitério chega correndo. Coloca as duas mãos na cabeça e diz: “Eu sabia que um dia isso iria acontecer!”

Eu olhei para ele arregalando meus olhos e ele, falando com dificuldade, me disse: “Esse sujeito estranho veio três vezes hoje chorar neste túmulo. Era do pai dele; coisa mais esquisita de se ver. Ele, às vezes, esmurrava a lápide e gritava: - ‘Por quê? Por quê?’ Depois saia cambaleando que nem um trapo humano, pegava o carro e saia em disparada. Numa das vezes, quase que me atropela. Agora, isso! Vou ter que telefonar para a administração. Seria demais se eu pedisse a senhorita que ficasse aqui por um instante? Só para o caso de alguém mais querer se aproximar.”

Eu, que estava sem chão, concordei. Sentei-me num banco de jardim que estava por perto e olhei mais uma vez para o rosto do homem que tinha uma perfuração na fronte e um filete de sangue escorrendo na face. Pensava comigo o que poderia ter levado aquele infeliz a se matar naquele lugar e, pior, no túmulo do pai!

Foi quando olhei para os papeis que estavam em minhas mãos. Eu os tinha apertado tanto, que algumas folhas estavam começando a se rasgar.

Olhei a primeira folha que dizia:

-“Querida Klaris, o que tenho para te revelar é o mais ignóbil e sórdido relato de uma vida.”

Respirei fundo quando percebi que aquela carta era uma confissão. Neste momento, vejo uma jovem e uma senhora correndo em direção ao corpo. Não sei porque tive aquela reação, mas juntei as folhas e enfiei entre a calça e o agasalho.

Fiquei por ali, respirando aquele ar de mistério. A polícia foi acionada, pois eu já ouvia o som da sirene. Algumas pessoas, que passavam por ali, começaram a fazer uma rodinha de fofocas. A senhora, que parecia ser a mãe do finado, ajoelhada sobre o corpo, chorava o choro mais sentido que alguém pode chorar. A moça, de pé, estava lívida, branca como uma folha de papel. Percebi que ela estava para despencar a qualquer instante. Confesso que queria sumir daquela tragédia.

Ainda tinha que terminar um artigo que escrevia para o jornal em que trabalho. Vi que a moça começou a dobrar os joelhos para desmaiar. Corri para segurá-la e foi por um triz que ela não se “estabacou” na relva. Pedi ajuda a um rapazinho que estava xeretando o acontecido e levamos a moça até uma salinha, dessas que o cemitério oferece para os velórios. O rapaz se afastou bem depressa, pois era muito mais interessante ver um defunto baleado que uma moça desmaiada.

Fiquei ali sem saber exatamente o que diria, quando ela recobrasse os sentidos. Pensei comigo: “Dane-se o artigo do jornal”. Mas, pensando bem, liguei para minha parceira de encrencas jornalísticas (na verdade, uma cobre a outra, nessas situações, de impossibilidade de entrega de textos para o jornal). Falei: “Bianca, querida, tem que me salvar hoje”. Ela que já se acostumou com o meu jeito, falou: “Que venha a bomba dona Grazzi!” Passei as coordenadas do artigo para ela e fiquei sossegada para saber sobre a tragédia do cemitério.

Ficamos lá na sala, ela desfalecida e eu de olho nela, mas louca para ler a confissão do falecido. Pensei em entregar logo de uma vez os papéis a moça, mas, alguma coisa me dizia para verificar antes o terreno. E aquele parecia um terreno alagadiço, talvez um pântano.

Quando ela abriu aqueles olhos de água, senti pena da menina. Era de uma fragilidade tão grande, que tive medo de perguntar qualquer coisa que fosse. Mas ela estava ali, envolta naquele ar de mistério e eu não podia deixar passar essa chance. Dei-lhe água do filtro comunitário e ela segurou minha mão em agradecimento. Não falou nada por um bom tempo. Ficamos ali na sala, às escuras. A sombra das árvores não deixava entrar a luz da manhã. Foi até melhor, pois assim na penumbra, ela pode falar sem receio:

-O Klaus é meu - quer dizer - era meu noivo. Estávamos passando por um momento de terríveis decisões. Desculpe-me estar falando isso com a senhora...

Tentei acalmá-la e disse:

-Por favor, não me chame de senhora, pois temos a mesma idade, acho. Pode desabafar, só vai te fazer bem, e eu tenho todo o tempo do mundo!

-Tudo bem, eu agradeço, não tenho ninguém para desabafar este fardo que carrego.

E continuou:

- Klaus é filho de alemães. Nós nos conhecemos e logo ficamos noivos, tamanha foi a atração que nos uniu. Combinávamos em tudo, gostávamos das mesmas coisas, até a cor das roupas eram iguais. Ríamos dessas coincidências e elas nos aproximavam cada vez mais. Um dia, quando voltava para casa depois do trabalho, fui violentamente agredida e estuprada por um homem que mais parecia um animal selvagem. Fiquei dois meses internada na UTI de um hospital. O Klaus ficou desesperado, chorava o tempo todo. Perdeu tanto peso que eu nem mais o reconhecia. Sua mãe estava sempre com ele nas visitas que me fazia e eu via no rosto dela, muita preocupação em relação a ele, muito mais que por mim. Quando sai do hospital tive a terrível notícia do meu estado. Os médicos nos chamaram para dizer que eu estava grávida em conseqüência do estupro. Sabíamos que era verdade, pois o Klaus sempre foi cuidadoso nesse sentido. Queríamos nos casar e só depois de uns dois anos planejaríamos ter nossos filhos. Como a maioria dos alemães, ele era metódico e conservador. Planejávamos nosso futuro com carinho. Então, aquilo caiu como uma bomba atômica, sobre as nossas cabeças. Como iríamos criar aquela criança, fruto daquele animal? Estávamos desesperados. Eu pensava no melhor caminho a seguir, quando recebi a notícia que o pai dele teve um infarto fulminante. Soube, por sua mãe, que foi logo depois de uma terrível discussão que teve com Klaus. Eles chegaram a se “pegar” aos socos no escritório. Enquanto o pai dele estava sendo levado ao necrotério ele se trancou no escritório e só queria escrever. Passou lá o dia e a noite fechado, escrevendo. Somente hoje cedo ele veio ao cemitério ver o túmulo de seu pai. Decerto, veio pedir perdão. Agora nem pai, nem filho para contar a história de tanto desentendimento. Eu aqui, sozinha com essa criança a crescer em mim, não tenho a mínima idéia do que fazer. A mãe dele, a essa hora, deve estar pensando em dar cabo da vida também.

Falando isso, caiu em prantos. Pude ver que seus lábios tremiam e tive muita pena da pequena. Ela, aos poucos, foi se recompondo e, sem jeito, me estendeu a mão num tímido cumprimento: “Meu nome é Klaris, não me pergunte a origem, pois também não sei, só sei que combinava com Klaus.”

Fui com ela ao enterro do noivo e depois desse momento de dor, prometi que nos veríamos dali a uma semana para um chá em sua casa.

Liguei para a Bianca que já deveria estar tonta de tanto me ligar e expliquei por alto a história tenebrosa do cemitério. Ela ficou sem fala por um longo tempo, depois disse:

- “Vade retro Satanás!”. Pode ficar tranqüila, amiga. O texto já foi pra redação e do resto cuido eu. Amanhã nos falamos, vai tomar um banho pra tirar essa “uruca” de cemitério e descanse.

Foi o que fiz. Depois de tomar um belo banho e fazer um lanchinho, fui direto para o meu quarto, e lá, debaixo das cobertas, descobri o segredo de Klaus.

Aquela “carta-confissão” foi se mostrando aos meus olhos atônitos. Nunca saberemos se conhecemos uma pessoa o suficiente, até que levantamos sua capa, e a vemos nua, sem o manto da mentira. Klaus descobriu do pior jeito, que o seu pai não era aquele que se dizia ser.

Depois da violência sofrida por Klaris, ele ficou transtornado, prometendo a si mesmo que não descansaria se não fizesse justiça com as próprias mãos. Sabia que no escritório do pai havia uma arma, e foi lá que descobriu a verdade que mancharia sua existência. No fundo da gaveta, onde o pai guardava peças de um jogo de xadrez, Klaus viu uma fita preta. Sem saber que era parte da peça que levantaria o fundo falso da gaveta, puxou-a. Viu, no fundo do esconderijo, uma porção de fotos e documentos. Imediatamente, fechou a porta do escritório à chave. Ai, então, sem medo de ser interrompido, levantou de uma vez, a tampa falsa, retirando de lá, papéis e fotos. A primeira coisa que abriu, foi uma certidão de nascimento com o nome de Klaris. Ali, naquele momento, o chão se abriu e ele caiu num abismo sem fim. Tudo à sua volta foi girando até que seu corpo não resistiu mais e despencou sobre o tapete. Klaris era sua irmã gêmea. Por isso, eram tão semelhantes. O destino, cheio de artimanhas, tinha dado um jeito de uni-los novamente. O pior foram as fotos, elas comprovavam pertencer à mesma pessoa. Ali tinha fotos de Klaris, tiradas durante toda a sua vida.

Klaus esperou o pai chegar em casa, para poder colocá-lo, contra a parede. Precisava ouvir sua explicação para tudo o que tinha visto. Trancou-se com ele no escritório, dizendo que
o que tinham para conversar ninguém precisava ficar bisbilhotando.

O pai de Klaus ficou acuado frente à gaveta aberta e todos aqueles documentos revirados. Sentou-se, ou melhor, despencou na cadeira. Estava ficando vermelho quando Klaus deu o primeiro berro: - “Não adianta fazer teatro, conheço muito bem esse seu perfil germânico!”

O pai foi esmorecendo, deixando os braços caírem. Ficou como se tivesse sentindo uma gangrena na alma. Tentou se levantar para sair da sala, mas Klaus, num salto, pôs-se a sua frente dizendo:

-Daqui o senhor não sai sem antes me explicar essa história da Klaris!

O peso da culpa era visível e transparecia no suor daquele rosto envelhecido. Não tendo como fugir da confissão, ele começou uma dissertação macabra. Era todo o drama de sua vida. Ouvir aquilo tudo foi tão nojento que Klaus vomitou na lata de lixo que estava ao lado da escrivaninha. Tudo revirava à sua volta, enquanto o pai confessava aquelas atrocidades:

-Antes de me casar com sua mãe, ter filhos não estava nos meus planos de vida. Quando ela ficou grávida, nossa vida de casal desmoronou. Ela não podia me ver que sentia náuseas. No dia que ela começou a sentir as dores do parto, quis que chamássemos uma parteira. Foi o que eu fiz. Foi um parto longo e difícil. Ela gritava de dor e sangrava muito. Você nasceu pequeno e azulado. Imediatamente, ressuscitado e limpo, foi para os braços de sua mãe. Quando a parteira voltou para limpá-la, eis que teve uma surpresa. Ali, toda encolhida, uma menina muito pequena tinha nascido sozinha, sem nem mesmo sua mãe perceber. A parteira pegou-a e sem falar nada, mostrou-a para mim, dizendo: “Acho que essa menina não vai vingar, talvez seja melhor não dizer nada à mãe agora, fraca como está, não vai suportar.” E foi o que eu fiz. Deixamos a menina no quarto ao lado, pensando que morreria a qualquer momento. Não foi o que aconteceu. Eu não podia imaginar minha vida com as duas crianças, ali, chorando dia e noite e sua mãe prostrada, sem forças para nada. A parteira me disse que conhecia um casal que queria adotar uma menina e ficaria com ela de bom grado.
Não pensei duas vezes. Aceitei, contanto que concordassem que ela levasse o meu sobrenome. Eles aceitaram, mas depois, soube que rebatizaram a menina em um cartório do interior como se fosse filha deles. Mantiveram somente o primeiro nome da menina, Klaris.
Por anos eu fiquei atormentado com esse segredo. Descobri o endereço dos pais adotivos e vendo que eles passavam dificuldades financeiras, comecei a ajudá-los e fazia visitas para estar com Klaris de vez em quando. Eles aceitaram, pois do contrário, passariam fome. Tirei fotos de Klaris, em todas as ocasiões que estive com ela. Acostumei-me com o seu lindo rosto de boneca. Ela sempre foi uma menina frágil e dependente. Chamava-me de tio querido. Eu não sei em que momento aquilo se deu, mas me apaixonei por ela. Não como um pai, mas como homem. Ela foi entrando em meus poros e não saiu mais. Quando você me disse que iria se casar com uma moça chamada Klaris, meu coração quis parar. Não podia ser a mesma pessoa, eu não resistiria ficar sem ela. O meu mundo começou a desmoronar quando tive a confirmação de minha suspeita. Klaris, jamais percebeu o meu sentimento por ela, nunca deixei que soubesse, mas agora era diferente, eu tinha que contar de uma vez por todas. Fui buscá-la no trabalho, contaria tudo e esperaria um sinal que me abrisse o céu, que fizesse com que ela também me amasse. Mas, não foi assim que as coisas se deram. Ela só falava de você, de seu grande amor, de tudo o que iriam fazer juntos, depois que se casassem. Aquilo foi me virando o estômago, fui ficando possesso, uma raiva de tudo, do mundo, de sua mãe, de você e por fim, de Klaris. Quando a deixei em casa, estava frio e sombrio. Ela me perguntou se estava me sentindo bem. E eu não respondi, sai dali querendo matar todo mundo. Antes de chegar na esquina, voltei para a casa de Klaris. Ela estava abrindo a porta, quando tapei sua boca e bati em seu rosto e em seu corpo, com toda a força que tenho. A minha vontade de possuí-la era tão grande que a arrastei até a garagem e ali, como um louco, rasguei suas roupas e bati tanto naquele corpo que jamais poderia ser meu e violentei-a de todas as maneiras. Ela não viu absolutamente nada, pois estava desacordada . Deixei-a numa poça de sangue, entregue à sorte, e fui embora dali engolindo o sangue dela que ficara em minha boca. Depois soube que ela estava na UTI do hospital entre a vida e a morte. Quase morri, revirando minha vida de merda, querendo voltar no tempo e consertar o mal que eu havia causado a tanta gente, mas não, agora eu tinha virado um monstro e o gosto daquele sangue era doce. Se ninguém me segurasse eu iria querer mais...

Depois de ouvir o pai, Klaus começa a ter um mal estar que sobe das entranhas e vai até a cabeça. Uma dor invade todo o seu corpo e, depois de tentar agarrar o ar que estava começando a arrefecer, diz ao pai que Klaris está grávida. Aquilo foi o golpe que faltava para dar cabo do desgraçado. Levando a mão ao coração, ele cai se contorcendo de dor. Grita ao filho que o ajude, mas Klaus espera pacientemente que o pai termine ali, gemendo de dor, sabendo que sua filha estava grávida dele.

Depois de ver o pai caído no tapete, mole e sem vida, chama a mãe. Ela grita e começa a chorar, mas isso não comove Klaus que se enoja da cena. O pai é retirado do chão e colocado no sofá da sala de estar. Chamam o médico da família que atesta o infarto fulminante. Klaus então começa a escrever a carta-confissão e conta toda a sórdida estória que envolve a sua miserável vida.

Depois de explicar a Klaris aquela coisa inenarrável, pede perdão à noiva, diz que talvez tenha tido por ela o mesmo amor que o pai teve. Sentia-se culpado pelo pai que a violentou e estava preste a cometer a mesma loucura como irmão. Implora que ela aborte aquele ser que está dentro dela. Que procure ser feliz com alguém que a mereça.

Quando eu terminei de ler toda aquela trama macabra, minhas mãos tremiam. Puxei as cobertas e fiquei ali, encolhida, pensando no que fazer com a carta. Não era minha e eu tinha que tomar uma decisão. Dormi uma noite de trevas, ouvindo o pai do Klaus gritando para o filho: - “Perdão, perdão!”. Ele segurava as minhas mãos implorando que eu transmitisse seu perdão a Klaris, que ela era o seu grande amor. Fui assustada a noite inteira por fantasmas. Acordei com um grito de dor pronunciado por Klaus que dizia: - “Aborte! Aborte!”

Quando acordei, estava completamente ensopada de suor. A carta estava espalhada pelo chão. Juntei as folhas e pensei em ligar para Klaris. Não estava nem um pouco a fins do passeio matinal, mas também não queria enfrentar a Bianca com todas as perguntas que eu sabia que ela faria. Quando já estava saindo pelo portão, dei de cara com Klaris que chegava me procurando. Visivelmente abatida me cumprimentou meio sem jeito:

-Bom dia! Desculpe-me chegar assim sem avisar, sei que combinamos para daqui há uma semana em minha casa, mas se eu não conversar com alguém acho que ficarei louca.

-Tudo bem, querida! Vamos entrar! Eu também preciso falar com você, mas primeiro, tomamos um lanche.

Enquanto preparava o lanche, pude observar que ela tremia e estava ser cor. Coloquei tudo sobre a mesa da cozinha e ali mesmo começamos uma conversa de vida e morte.

Ela me contou de sua vida com os pais que a adoraram, do tio alemão que sempre ia visitá-la e dos presentes que ganhava. Que era como se tivesse dois pais.

Eu pensava: “Que ironia do destino!”. Enquanto ela falava, revia a cena do cemitério, Klaus ali no túmulo do pai gritando “por quê?”, depois o tiro e os papéis espalhados.

Foi quando Klaris começou a chorar desabando nos meus braços. Seu corpo era violentamente chacoalhado pelos soluços. Deixei que ela destampasse a comporta daquela represa e deixasse o desespero sair. Aí, foi-se acalmando, até ficar com aquele olhar perdido, vago. Juntei as forças que tinha e mais um pouco para começar a falar-lhe da carta.

Falei a Klaris que Klaus teve um motivo para fazer o que fez. Ela olhou-me assustada. Tentei acalmá-la e disse que se não fosse forte, não poderia saber a verdade. Ela respirou fundo e falou com um fio de voz:

- Nada mais vai me abalar, depois do que aconteceu.

Pensei comigo: - “Será?” - e dei-lhe a carta.

Quando ela começou a ler aquelas letras de puro veneno, pensei que não agüentasse, mas não... foi, aos poucos, se acalmando, ficou em silêncio por um bom tempo para depois olhar para mim e dizer:

-Vou abortar! Não fico com o filho daquele crápula nem mais um dia. Não poderia olhar para essa criança no futuro e dizer que o seu pai era o seu avô e o homem que eu amei era o meu irmão. Vou arrancar de minha vida essa página e nunca mais quero saber dessa desgraça.

-E sua mãe verdadeira, você não gostaria de vê-la, saber dela? Afinal ela também foi uma vitima dessa trama toda!

-Ainda vou pensar, mas primeiro vou pensar em mim.

-Vou te ajudar em tudo o que precisar, apesar de ser contra ao aborto, mas nesse caso, eu tenho certeza de que Deus estará do seu lado.

Depois de um tempo, tudo estava andando novamente nos trilhos. Klaris realmente fez o aborto. Começou a fazer terapia e foi conhecer a mãe que pensava ser somente a de Klaus.
Ainda não conseguiu perdoar o pai alemão, mas tem certeza de que vai ser o próximo passo.

Permitiu que eu escrevesse a sua estória no jornal em que trabalho. Minha amiga Bianca, não se conforma com a minha sorte em arrumar as mais incríveis matérias. Depois de tudo, ainda fui promovida a chefe do setor de Grandes Reportagens. Agora não ando mais em cemitério, quem não sai de lá é Bianca que diz estar à procura de uma grande reportagem.

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2008

A Kombi do Gato

Tela de James Louis Steg

Nossa! Que sono! Outro daqueles dias. E esse tá com jeito de chuva. E com chuva eu não vendo nada. Vou ter que acordar a Latóya, se não ela vai perder aula de novo. Os peitinhos dela estão que nem ovo “estalado”. Já vi o “zoião” do pai pra cima dela. A mãe ainda não se ligou, mas quando ela sacar, qual é a do “velho”, vai ter chumbo grosso no barraco. – Acorda aí, minhoca defumada! Tem escola, caramba, não posso ficar aqui o dia inteiro pajeando a madame, portanto, fui. Tenho que correr, se não aqueles caras da boca de fumo invadem o meu canteiro e eu tenho que faturar hoje, pelo menos “déis real”. Nossa! Meu tênis tá furado, tô precisando de outro pra ontem. Olha só o belezinha aí na frente, todo arrumadinho, mochila preta, casaco de couro, porra, como eu queria ter um casaco de couro preto, e o tênis do cara, mó legal... tem amortecedor, do jeito que eu queria e é de marca. Quando eu fizer dezesseis, o “seo” Carlão vai me deixar “trampar” na padaria, diz ele que vou aprender a profissão, quero só ver a cara da mãe quando isso acontecer, ela morre de medo que eu me bandeie pra turma do “fumo”. Eu já disse pra ela ficar fria, mas ela nem quer saber, diz que me mata se eu morrer drogado, há!há!há!, essa é boa, aí eu já ia tá morto mesmo. Eu gosto quando dá pra pegar rabeira em caminhão, só assim eu chego cedo. Lá vem o “seo” Bigode com a água. Põe aí no chão... ali perto do semáforo. Assim eu posso vender pra quem atravessa e pra quem estiver nos carros, esperando o sinal abrir. Tudo bem, até as seis, é isso, dezoito horas. Até parece que ele não entendeu, só pra me deixar nervoso, ô cara besta. Ainda vou ter grana pra comprar água direto do depósito, aí não vou precisar dar a parte do leão pra esse “bosta”. Vou comprar uma Kombi e vou encher ela de água e sair por aí vendendo água pra deus e o diabo. Vou arrumar uma porção de pivetes lá da favela e vou ser o rei da cascata, há!há!há! Quero ver a cara que o pai vai fazer quando eu chegar em casa com a Kombi cheia de compras do super mercado, ele vai azedar isso é que ele vai. Ele não admite que ninguém naquela casa seja melhor que ele. Aquele “bebum” desgraçado, só sabe olhar as tetas da Latóya e bater na mãe. Eu já fiz as contas, de quanto vou precisar de grana, para comprar essa maldita Kombi. Pelo menos uns cinco sacos de cem. Vou ter que amargar na mão do Bigode uns cem anos, isso sim. Ops! O farol fechou. Olha a água geladinha da fonte! Não beba água pra ver como sua pele vai estar no fim do dia! – Essa de “pele” sempre comove as dondocas. Olha ali aquele velho besta levantando o vidro, o que é que ele tá pensando? Que eu vou sacar um copo d´água e atirar nele? Cada uma! É água, vovô, água de beber! Deve ter se borrado todo o lelé da cuca. E aquela gostosa ali me chamando, dá licença, dá licença. – Quantos copinhos? Só um? O que que é isso, pra senhora se eu pudesse dava tudo de graça. Até amanhã minha deusa. – Nossa! Ela tinha um cachorrinho no banco de trás. Era um assim que a Latóya queria. Também, essa menina só pensa em cachorro de rico, até o nome deles é encrenca: “púdol”, pudim, sei lá. Vai ter que se conformar mesmo é com o Filomeno vira-lata do caralho. – Hei, meu chapa, pode ir se afastando do pedaço, pois aqui é a zona do Bigode e ele não brinca em serviço, tem até máquina de filmar, espalhada por aí, só na vigia. Cada uma! Todo dia tem espertinho querendo o meu farol. Comigo não, cachorrão! Nossa! Que fome, meu! Vou ter que apelar pra uma balinha de hortelã. Não posso sair daqui, essa é a melhor hora do dia pra vender água. Ali vem aquela dona de preto, parece um urubu. Já vi essa dona na televisão, acho que foi no telesexo. Ela mostrava como usar camisinha enfiando uma, numa banana, há!há!há! Cara, foi de matar. Essa dona não enfia uma banana pelo menos há uns mil anos. Nem vou oferecer água, gente assim não bebe água, deve beber formol no gargalo. Caracas! Essa eu não posso perder, é a loirinha que me deu a maior bola outro dia. Pelo amor de Deus, que sorriso! Isso não é pra qualquer um, não. Vai abrir o vidro. – Pois não, princesa! Uma água? Nossa eu tô tremendo. Se eu quero bolo de seu aniversário? Eu, eu...Você é quem sabe. Deve estar uma delícia. Comi um desses uma vez, na casa do Dennys do pó, mas a mãe não quer que eu me misture com aquela gente. Diz que esse pessoal do Dennys morre cedo. Ou viciado ou matado. Se eu fosse rico, ia querer uma “mina” assim, linda e loira. Quem foi que disse, que toda loira é burra? Não conhece essa “tesudinha”. Caiu do céu esse bolo. Nossa! Eu já “tava” enxergando estrelinha. Ainda faltam quatro horas pra acabar o meu turno, a água tá quase no fim e nada do Bigode aparecer pra reforçar o estoque. Assim não dá, esse cara não sabe trabalhar. Quando eu tiver minha Kombi, vou saber organizar melhor essa parada de estoque. Ele dorme de touca. Aquela dona tá me chamando. – O quê? Meu nome? Eu é que não vou dar meu nome pra qualquer um no farol. Vai que é a “fisca”, aí eu tô fudido. Ela tá dizendo que é assistente social. E eu vou acreditar numa lorota dessas. Tudo bem, cartão seu posso pegar. Parece que é verdade, pelo nome que estou vendo aqui. Tudo bem! - Meu nome é Maicon, Gato para os íntimos. O que foi? Minha família? O que tem a minha família? Tenho uma irmã a Latóya, que está com doze anos, e eu vou fazer dezesseis o ano que vem. Não, não vou à escola. Parei na quinta. A Latóya já tá na sexta, ela vai continuar porque a mãe quer. Eu tive que parar, pra ajudar em casa. O pai, esse é um... ele é doente. A mãe é faxineira, diarista, sabe como é? Ela é de confiança, se a senhora precisar de uma diarista, pode vir falar comigo que eu levo a mãe no seu endereço. Seu cartão, pode deixar que eu guardo. Adoro colecionar cartões. O sinal abriu...Não vai querer água? Nossa! Não tenho mais água. E o Bigode que não vem. Desgraçado, justo agora que “aqueles bichas loucas” estão chegando. A farra do carnaval deve ter sido muito boa mesmo, olha o estado das meninas. Caramba! Todo mundo quer água e eu a seco. Filho da puta do Bigode quero que ele morra queimado sem uma gota de água pra apagar o fogo. Justo agora que esses viados iam me dar caixinha. Pobre é uma merda mesmo. Tudo bem vou ter que recolher mesmo. Se eu correr, ainda pego a rabeira daquele ônibus. O desgraçado me viu e vai começar a correr. Tá dançando de propósito, só pra eu me estabacar no asfalto. Ainda bem que a caixa está vazia. Aquele infeliz vestido de Capeta, vai me jogar alguma merda. Detesto o carnaval, sempre tem um idiota querendo aprontar com a gente. É só perceber que você não foi pra farra que eles aprontam. Aí, seu viado! Vai jogar essa merda na sua mãe! Não vejo a hora de estar dirigindo a minha Kombi. Agora esse merdinha de motorista não vai parar, só porque sabe que eu tenho que descer aqui. Morfético do caralho. Quero que o seu pau caia, seu bundão. Quase perco o tênis. Só me faltava essa, agora. Tô morto de cansaço. Há essa hora o pai tá lá, só de butuca na mana. Que gentarada é essa lá em casa? Que será que aconteceu? Tem até camburão. Tá parecendo aquele filme piratinha que eu assisti no Rogério. Como é mesmo que se chamava? Ah! Era o “Tropa de Elite”, grande filme, camarada! O que é que tá pegando aqui? O que aconteceu com o pai? A mãe o quê? Matou o pai com trinta facadas? Por quê? Tava comendo a Latóya. Ela foi pro hospital? E a mãe? No camburão? Desgraçado!