A Música dos Anjos
Quando ele me falou a palavra segredo, imediatamente pressenti algo como um redemoinho passando pelo meu corpo. Sabe, quando sentimos um arrepio na espinha dorsal? Pois é, foi isso o que eu senti. Fiquei gelada. Ele, gentilmente, me convidou para visitá-lo em sua mansão. Naturalmente eu aceitei e, no dia marcado, bati naquele portão de ferro, forjado com esmero, na mais fina criação Art Nouveau. Ali, entre bétulas e ciprestes, sentamo-nos num jardim de sonho, onde ele mandou preparar uma mesa com deliciosos petiscos. Disse-me que era sempre um bom pretexto, convidar alguém para essas visitas, pois só assim, sua filha Amarantha, simpática e charmosa velhinha, permitia que ele provasse das iguarias proibidas pelo médico.
Geronimus era uma figura espetacular. Muito sábio, profundo conhecedor do ocultismo e, pelo que entendi, era membro da Ordem Rosa Cruz. Ele não quis me falar dessa Ordem; nesse dia, o que ele queria, realmente, era me falar de Ana Paula e sua música. Apesar dos seus cento e cinco anos, Geronimus tinha uma voz límpida e sonora, fazendo com que nosso encontro fosse muito agradável. Fiquei à vontade para comer, enquanto ele me falava da arquitetura de sua casa e do seu esplendoroso jardim. Depois do delicioso lanche, nos mudamos para uma sala íntima, onde pude sentir o aroma do cedro dos móveis e sândalo do incenso que perfumava o ambiente. Ali eu ouvi Geronimus contar sobre o inacreditável segredo de Ana Paula Roquesttelle.
-Conheço Ana Paula há muitos anos, já perdi a conta deles. Ela não foi sempre assim tão plácida. Por muitos anos ela se deixou transformar numa figura gótica, sombria e sozinha.
Ela já foi casada e teve um filho. Filho este era o seu sol na terra. O casal, junto com o filho, gostava de viajar nas férias. Íam sempre para a Ilha de Lampedusa, onde tinham uma casa de pedras, à beira da praia. Fabrianno era o nome do filho que, na época do acontecido, tinha quinze anos. Contra a vontade do marido, o famoso conde Fabrizzio de Roquesttelle, Ana Paula queria visitar uma pequena ilha desabitada, próxima a Lampedusa, que se chamava Ilha de Lampione. É uma ilha que tem somente um farol, por isso esse nome Lampione. Fabrizzio não concordava com a mudança de planos, pois sabia que esta ilha era infestada por ferozes tubarões cinza. Então, combinou com Ana e o filho que faria primeiro uma visita pelas redondezas da ilhota e se achasse que tudo estaria bem, com certeza iriam acampar por lá. No dia seguinte ao combinado, o conde Fabrizzio contratou um barqueiro para levá-los a ilha. Foi tudo fácil, num instante, estavam em alto mar, rumo à ilhota. Tudo estava bem, o mar estava tranqüilo e a temperatura amena. Foi quando o pai, deu com o filho, escondido atrás da cabine do barco. Naturalmente não gostou da proeza, mas para não começarem uma conversa de desentendimento ali, na frente do barqueiro, ficou calado, aceitando o companheiro de viagem.
Quando chegaram perto da ilha, perceberam os tubarões rondando o barco. O barqueiro tranqüilizou os dois que olhavam a ilha se aproximando. Era uma pequena montanha de rara beleza que se formava no horizonte. Ela estava sendo preservada pelo governo que proibia qualquer tipo de caça predatória no local. Sobrevoavam o barco muitos pássaros exuberantes. Estavam maravilhados. Fabrizzio dizia ao filho o quanto sua mãe gostaria daquele lugar. Enquanto ele falava, o barco bateu em alguma coisa dura. Eles se curvaram para saber o que seria, quando Fabrianno gritou ao pai: “Estamos afundando! Batemos nos corais.”
Um longo fio de corais amarelo e rosa rodeavam toda a orla da ilha como um colar de deusa. Dessas deusas ciumentas, que querem os homens a seus pés. O barco, danificado por um grande rombo no casco, encheu-se de água e desapareceu no fundo do oceano. E foi o que a deusa dos corais teve: três homens que desapareceram, ali ao lado da majestosa ilha, devorados pelos tubarões.
Nessa hora do relato eu não me contive e falei:
- Meu Deus, morreram!
- Sim, morreram! Não foi fácil para Ana Paula. Aquela notícia acabou com os seus sonhos. Quando se casou com o conde, ficou sabendo das dificuldades que teria para engravidar. Esperaram muitos anos para que fossem contemplados com aquele bebezinho com carinha de anjo. Era um menino calmo e doce que encheu a vida deles de luz.
Depois da tragédia, ela se afundou num abismo de trevas e por um longo tempo viveu ali, escondida de todos e de si. Trancou-se em sua casa, recebendo somente os entregadores das compras que fazia por telefone e/ou internet. Completamente isolada, foi ficando sombria e muda. Um dia, estava no jardim da mansão, quando viu uma sombra se esgueirando pelas árvores. Correu atrás para enxotar quem quer que fosse, dali. Parou, de repente, quando viu, no fim do jardim, o seu filho que lhe acenava com um sorriso. Correu até onde ele estava, mas sua imagem se dissolveu no ar.
Desse dia em diante não teve mais sossego. Queria fazer contato novamente com Fabrianno. Passou a estar no jardim dia e noite. Procurava aquela imagem irreal tão querida que lhe trouxe o mais doce dos sorrisos, para depois deixá-la completamente desvairada e sem sossego... Uma manhã, toma uma decisão: iria até a Ilha de Lampione!
Contratou o filho mais velho do barqueiro que havia morrido na tragédia para levá-la àquele lugar de morte. Marcaram para chegar à ilha quando a maré estivesse baixa. O rapaz dizia: “Só assim poderemos ver o colar de corais que envolve todo o lugar.”
O rapaz parecia conhecer muito bem da arte da navegação. Ana Paula ficou totalmente confiante nas mãos do jovem barqueiro, pois ele também tinha interesse em prestar uma homenagem ao seu querido pai, morto pelos tubarões. Tinha com ele, arpão com muitos dardos, caso tivesse que enfrentar aquelas feras marinhas.
Ana Paula sabia que estava indo para um lugar completamente desconhecido. Tinha consciência do perigo que corria, mas uma força estranha impulsionava seu corpo, sua mente e seu espírito, para aquela pequena ilha.
Viram os tubarões rodeando o barco, mas eles nada fizeram a não ser, dar umas voltas e depois se afastar. Era como se estivessem dando permissão a eles de visitar a ilha. Os corais foram avistados por causa da maré baixa; portanto, navegaram em segurança pelas brechas livres que os corais faziam e atracaram numa praia de areia branca e fina que irradiava uma luz fascinante. Quando o rapaz estava puxando o barco para que não fosse arrastado pela maré, Ana Paula sentiu que algo começava a se modificar ao seu redor.
-Como assim? - perguntei.
-Ela viu que a atmosfera se tornou palpável. Podia alcançar todas as coisas. Podia tocar as nuvens, o céu. É difícil descrever tudo o que ela sentiu com meras palavras, mas ela estava numa dimensão diferente. Todas as coisas ficaram muito mais nítidas. Era como se pudesse ver o espírito de todos os elementos. Havia no ar uma música tão bela que irradiava cores, e ela pode sentir, neste momento, a presença de Deus fluindo em todas as coisas. Todo o seu corpo foi invadido por um amor extremo tão forte que a fazia tremer em êxtase. E esse estado de amor supremo foi o fio que trouxe à sua presença o seu filho amado, Fabrianno.
Ali, naquela ilha estranha e mágica, pôde estar em comunhão com ele numa alegria infinita que emanava de todos os lugares para onde olhasse. Uma força angelical atravessou o céu, num tubo espiritual, ligando-se à terra. E desse canal de luz foi saindo anjos da música trazendo, cada um, uma dádiva a ela que, nesse momento, foi completamente transformada em luz. Um dos anjos, chamado Anael, beijou suas mãos e lhe deu toda essa sua inspiração, para que ensinasse aos homens a música dos anjos. Essa é a estória de Ana Paula. Depois vim a saber, que o anjo Anael é o Arcanjo de Vênus, que rege a beleza, a arte e a música.
-Que estória impressionante, caro Geronimus!
-Realmente é impressionante, querida, mas você não imagina a minha idade quando soube de tudo isso.
-Não vá me matar de curiosidade, por favor! Conte-me tudo.
-Eu era amigo de Fabrianno, estudávamos juntos quando tudo isso aconteceu.
-Quer dizer que...espere aí! O senhor tinha quantos anos afinal?
- Eu tinha quinze anos.
-E a Ana Paula devia ter uns trinta?
-Trinta e dois anos exatos.
-Mas, como pode ser isto, se ela parece ter trinta e dois agora?
-O que eu sei é que ela foi abençoada por um anjo naquela ilha. E o seu filho teve parte nisso tudo, pois foi ele que acionou o tubo espiritual recebendo os anjos. Essa incrível metodologia que ela usa para ensinar, com certeza, vem de um plano divino. Sua beleza eterna deve fazer parte dessa conspiração angélica.
-Mas por que o senhor quis contar essa história para mim?
-Porque naquele dia, no conservatório, quando ouvíamos aqueles estudantes, inclusive você com o seu violino, eu vi ao seu lado, o reflexo de Fabrianno, inebriado por sua música.
8 Comentários:
Hi, look here
Por Anônimo, às 23 de fevereiro de 2008 às 11:59
Novamente escreves como anjo.
Nossa Ana Paula doce artista, inspirou um conto angelical porém forte.
Mui Lindo Rachel!
Viajei!
Beijos.
Marta Peres
Por Marta Peres, às 23 de fevereiro de 2008 às 12:37
Rachel, se você não fizesse isso quem o faria?
A arte é mesmo uma grande idéia!
Orra mas também essa Ana Paula e esse Geronimus não cansam de viver rsss
Bonito conto e certamente há nele já uma evolução... e vc sabe do que estou falando; rsss
Por Julio Teixeira, às 23 de fevereiro de 2008 às 12:52
Só você pra criar um personagem com cento e cinco anos e fazer com ele o que vc fez...
Por Rogério Camargo, às 23 de fevereiro de 2008 às 14:25
Doce Rachel!
Já te disse, quando terminaste este conto na nossa Arte da Alma -Portugal,que de todos que escreveste até agora, e que me foi dada a maravilhosa oportunidade de te ler, este é o conto que mais gostei!
Sabes Rachel,o motivo é o Amor!
realmente é um conto celestial!
Quando te passei o "mote",sabia que o nome da personagem principal,te inspiraria a escrever sobre o Amor!
Ficou lindo!
Amei!
Parabéns,mais uma e muitas vezes mais.
Beijos
Dolores Jardim
Por Dolores Jardim, às 23 de fevereiro de 2008 às 16:48
DoceRachel...
Seu papel é criar histórias que nos permitem voar nas nuvens.
Parabéns minha linda amiga verdadeira.
Beijos.
Por Ana Maria, às 23 de fevereiro de 2008 às 17:25
Parabéns Rachel!
Tua imaginação não tem limites.
És fantástica,tanto em prosa como em poesia.
Sucesso.
Bacini.
Por Anônimo, às 23 de fevereiro de 2008 às 18:14
Te trouxe meu abraço afetuoso e minha alegria em ler teus contos minha querida.
Sempre criativos e muito teus.
BELISSIMO.
Beijos com carinho.
Leninha.
Por A CASA DOURADA/Leninha Sol, às 26 de fevereiro de 2008 às 14:48
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