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quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

A Vida Dupla de Dolores

Tela de Augustus Dunbier



Existem pessoas que conhecemos que são como um livro aberto. Assim é Dolores Quintão Jardim. Uma portuguesinha faceira, radicada no Brasil, com uma família feita de marido, filhos, netos, todos lindos e queridos. Dolores é uma dessas pessoas que quando chega nos lugares é para trazer luz. Apaixonada por Portugal, vive cantarolando fados. Está sempre rodeada de rosas. Um riso largo se estampa em seu rosto quando o assunto é poesia. Tem verdadeira adoração pelos poetas portugueses e em especial por uma poetisa que idolatra chamada Luiza Caetano.


Uma vez eu fui convidada para um coquetel realizado por uma grande editora, onde seria apresentado o livro chamado Antologia dos Poetas Vivos, com premiação e honrarias. Acontece que Dolores tinha sido requisitada como representante dos interesses de Luiza Caetano neste evento, onde concorreria como uma das melhores poetisas. Pouco antes do início da festa eu fui ao toalete.


Quando estava para sair de um daqueles cubículos individuais, ouvi um ruído estranho vindo da cabine ao lado. Eu sabia que era Dolores, porque reconheci sua voz, mas para fazer-lhe uma surpresa, não falei nada. Fiquei em silêncio. Foi aí que ouvi Dolores, falando em código em português de Portugal. Engoli em seco, arrependendo-me por não me ter anunciado.


Ouvi quando ela saiu da cabine e abri minha porta bem devagar, deixando apenas uma pequena fresta para espiá-la. Não queria interromper aquela conversa esquisita, dela com não sei quem, nem assustar Dolores que parecia estar agitada. Ela estava de costas para mim e não tinha percebido minha presença.


O que eu mais estranhava era que ela falava, mas eu não via nenhum celular com ela.

Pensei que talvez fosse um daqueles casos de esquizofrenia, mas ela falava com tanta convicção que comecei a prestar atenção. Ela dizia que estava tudo arranjado para pegar o impostor, que o esquema todo estava sendo providenciado e que ele seria posto em nocaute.


Que usaria as rosas vermelhas para derrubar o inimigo.E eu que pensava que as rosas vermelhas de que tanto ela gostava fosse um hobby, pois não era coisa nenhuma, tudo fazia parte de algum plano sinistro. Quem diria que a doce Dolores era uma, uma... o que será que Dolores era?


Comecei a segurar um riso que já apontava na garganta. Contraí a boca fazendo com que meus olhos se enchessem de lágrimas, tudo para não cair na risada. Pensei: ela deve estar falando com algum amante. Quem diria, hein! Eu não via celular nenhum e ela falava parecendo responder a um fantasma. Dizia que Luiza Caetano seria homenageada como deveria ser e que o famigerado Manuel Amante não conseguiria o seu intento naquele evento, que era o de fraudar a premiação, tirando os méritos de Luiza.


Comecei a ficar preocupada quando Dolores tirou a roupa. Disse comigo: -Ai, meu Jesus, agora ela pirou de vez. Ela retirou de uma sacola de couro preto, uma roupa também preta e a vestiu em segundos. Prendeu os cabelos pretos e colocou uma peruca loira chanel. Pôs um óculo escuro, onde ajustou uma porção de minúsculos botões. Era um desses óculos que aproximam a imagem e fazem as coisas aparecerem no escuro. Aqueles óculos eram de uma agente secreta, isso eu não tinha a menor dúvida.Ela enrolou-se com um lenço de seda, estampado com rosas vermelhas. Retirou um pequeno ramalhete de rosas vermelhas da bolsa (ela adora vermelho), enfiou alguma coisa que eu não consegui ver, bem no centro do arranjo, colocando-o sobre uma bancada ali no banheiro.


Vocês não vão acreditar, mas, de repente, ela deu um salto, desses que os ninjas dão e alcançou o forro no teto. Afastou uma das placas do forro e escondeu sua bolsa lá em cima. Recolocou a placa novamente, tão rápido que eu fiquei tonta. Pegou o ramalhete da pia e saiu do toalete para o salão de festas como uma Vênus platinada.


Eu saí logo atrás, meio zonza sem saber se ria ou se chorava. Então essa era a Dolores! Que maravilha! Ela seguia pelo salão levando o ramalhete, indo diretamente para a mesa de jurados. Todos olharam-na embasbacados. Ela, sem rodeios, cumprimentou a todos com um sorriso e foi falar com o senhor Manuel Amante que a olhava de queixo caído.


Dolores sem cerimônias entregou-lhe o ramalhete com os cumprimentos do governo de Portugal. Assim que ele pegou as flores foi envolvido por uma onda magnética que parecia estar lhe enviando um sinal de comando. Foi imediatamente hipnotizado, ficando com os trejeitos do Charles Chaplin.


Nesta noite Luiza Caetano foi aclamada como a poetisa com alma do sol de Portugal. Durante a festa, o senhor Manuel Amante teve que ser retirado do recinto, pois tinha enfiado pãezinhos em garfos e dançava com eles sobre a mesa. Quando já estava virando um show, levaram-no para o hotel.


Eu seguia Dolores por todos os canto. Queria descobrir tudo sobre aquela trama. Quando ela voltou ao toalete eu já estava lá na cabine. Não iria perder por nada aquilo tudo. Dolores ligou, não sei como, para um sistema de telecomunicações completamente invisível e foi falando.


"-Dori na escuta. Câmbio! Tudo certo, Luiza resplandece, aguardo contato futuro. Câmbio."


E assim terminou a ligação intergaláctica. Dolores deu um salto para o teto como se fosse a “mulher gato” e apanhou sua bolsa de couro. Vestiu-se num passe de mágica, voltando a ser Dolores, a portuguesinha que conhecíamos. Quando ela já estava saindo do toalete eu abri a porta e falei:


-Pode ir me contando tudo, querida!


Ela muito sem graça, foi dizendo que não estava entendendo nada. Eu, rindo, disse-lhe que o que mais tinha me impressionado foi o telefonema para o fantasma. Ela disfarçou rindo e disse que estudava teatro. Eu olhei para ela e falei:


-Tudo bem! E os saltos? São treinamentos para algum circo de equilibristas? Francamente Dolores, conta outra! E as rosas, então. Aquilo foi de cinema!


Ela rindo, me abraçou pedindo segredo. Eu respondi:


-Tudo bem querida, eu sou um túmulo. Quem diria que eu fosse ouvir tudo aquilo de Dolores.

Ela era uma agente secreta, trabalhava para o SIS – Serviço de Informações e Segurança de Portugal, sendo uma das agentes mais requisitadas nos últimos tempos. Aquela sua fixação por rosas, que eu pensava ser um hobby, era na verdade sua marca registrada no mundo da espionagem. Era com as rosas que costumava nocautear os incautos. E o aparelho intergaláctico, era um chip implantado bem na cabeça. Assim eles entravam em contato com ela e nem mesmo sua família percebia, pois recebia o comando diretamente de dentro da cabeça. Muito engenhosos esses portugueses. E nós que fazemos piadas deles.


Se eu não tivesse visto tudo aquilo, jamais acreditaria se me contassem sobre a vida dupla de Dolores, aliás, Doli, agente secreta da melhor qualidade.

5 Comentários:

  • Doce Rachel!
    Ah,minha amiga querida..que sabe tão bem prender a emoção e a respiração das pessoas..Rachel,este conto deixou-me sem reação desde a primeira vez que o li,lá na nossa Comunidade ARTE DA ALMA-PORTUGAL C/FRIDA.Mas agora,que surprêsa vê-lo aqui,ao lado de tantos outros tão instigantes quanto este.
    Não sei,falar o que sinto com poucas palavras..escrevo e parece um testamento rs.
    O mérito da escrita,está em tuas mãos.Parabéns amiga..sinto-me lisonjeada por ser parte de tua história.
    Adorei "A Vida Dupla de Dolores".

    Beijossssssss!

    Por Blogger Dolores Jardim, às 31 de janeiro de 2008 às 16:58  

  • Amiga,
    essa vida dupla de Dolores é fenomenal, linda, assim como você e tudo o que faz.
    Continua nos deliciando com os seus contos que encantam.
    Beijos
    Marta Peres

    Por Blogger Marta Peres, às 31 de janeiro de 2008 às 17:07  

  • DoceRachel!!!
    Essa Dolores é realmente uma espiã..kkk
    Voce com seu talento torna esse conto um mundo de sonhos.
    Esse conto já me fez rir muito.
    Tudo que vem de voce é sempre uma
    recheada com humor.
    O seu humor nos contagia até as....
    Fico muito feliz por ter voce como amiga inteligente e sábia.
    Parabéns minha linda...
    Seu futuro tá chegando.
    Beijos.

    Por Blogger Ana Maria, às 31 de janeiro de 2008 às 17:37  

  • DoceRachel,ADOREI,está espectacular!Quem diria,a Dolores espia:)))

    Por Blogger "Scacição", às 1 de fevereiro de 2008 às 02:31  

  • Duas amigas maravilhosas! Mas transformar a Dolores em espia... que espectáculo!!! O texto é o génio a que já estou habituado!!! Parabéns!!!

    Por Blogger Manuel Marques, às 7 de fevereiro de 2008 às 15:50  

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