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terça-feira, 4 de dezembro de 2007

A Chuva


Tela de Alphonse Mucha

Aquela manhã estava abafada. O ar quente e denso trazia para dentro de tudo, uma angustia pesada. Uma dor começara a surgir em suas têmporas e latejar devagar. Estava sentada à mesa da cozinha quando ele apareceu no umbral da porta e estendeu os braços para ela, que levantou o rosto ainda sonolento. Seus abraços apertados, sempre desencadeavam nela, um tremor sexual. Ele beijou a ponta de seu nariz e se desprendeu do abraço. Disse delicadamente olhando-a nos olhos: a noite querida, me espere a noite! Amava o seu homem com uma fúria de posse, sentia por ele um fascínio de loucura. Tinham uma espécie de brilho quando estavam juntos. Uma tortura implacável atingia os seus membros quando ele demorava mais do que prometia. Sabia que era amada pela respiração ofegante que ele trazia todas as noites. Então, esperava por ela.

Saiu até o jardim para tentar respirar melhor e viu quando uma sombra diagonal se afastava apressadamente do portão. Sentiu a pressão atmosférica entrar dentro de sua cabeça. O peito arfava tentando achar o ritmo adequado para que aquela dor cessasse. Pegou na caixa do correio um envelope, provavelmente deixado pela sombra apressada. Era uma carta anônima. O seu nome estava escrito em letras de forma.

Uma sensação de fraqueza se apoderou de seu corpo. A sombra foi diluindo, até não ser mais nada. Retorcia a fita que prendia os cabelos. Aprisionada estava em fios longos e tensos que esticavam seu pensamento para o envelope. Um pânico visceral fez com que jogasse a carta no chão, ela queimava. Ficou ali sentada, quieta. As horas foram marcando um tempo demasiado longo e a temperatura ficava rarefeita. O calor entrara em sua cabeça definitivamente.

O sol brilhava o seu último reflexo no chão da sala. Seus membros se contraíram quando olhou para o envelope que girava ao seu redor e sua paz. Se tivesse uma arma, atiraria nele que sangraria até desaparecer. O sol sumiu deixando a sala escura e os sentidos paralisados. Tinha se metamorfoseado numa obcecada criatura vingadora. Cravara as unhas na carne das coxas e sentiu com a dor, que todas as coisas se tornavam visíveis novamente. Levantou-se do arrebatamento que se encontrava e apanhou a carta do chão.

E diante da eminente destruição de si mesma, afundou-se no desejo de saber o que continha aquele pedaço de angustia. Saiu para o jardim buscando o ar que já não havia mais e rasgou o envelope. Abriu a carta. O ar estava tenso, elétrico. E no momento em que foi se prendendo na obscuridade das letras que dançavam na folha, tentando ler as palavras ali gravadas, tudo ao seu redor foi se decompondo. Um raio rasgou o céu que se abriu num grito de trovão e sobre ela e a folha branca, uma chuva grossa e fria caiu como benção, apagando as letras e lavando a alma.

Aquela chuva desmanchara o medo, levara o peso da insegurança. O ar voltara fresco novamente. O portão se abriu e ele entrou de braços abertos para ela. O jardim foi invadido pelo perfume das flores molhadas. A carta não dizia mais nada. E ela estava sendo invadida por um bálsamo e ali mesmo sob a chuva, ficou abraçada ao seu amor.

FIM

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