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quinta-feira, 22 de novembro de 2007

Lola

Foto de Gregory Crewdson


O senhor e a senhora Ginett estavam beirando os setenta anos. Eram apaixonados desde seus dezesseis anos, quando tudo era doce e a alegria exalava de seus poros.
Constance Dragon Ginett pediu a mão de Marie Louise Laure Isabelle de Saint Paul aos dezoito anos, recebendo um sonoro não do barão Ambroise Saint Paul, dono da maior fábrica de geléia de groselhas de Bar-le-Duc, cidadezinha francesa, localizada a 254 km de Paris.

Sua plantação de groselhas era famosa pela qualidade das frutas. Ficava na fantástica região da Alcásia-Lorena.
Diziam que seu coração era vermelho unicamente por causa das groselhas, de resto era frio e branco como o gelo.
Constance e Marie Louise fugiram para se casar em Paris na clandestinidade. Quando o barão Ambroise soube, não havia mais nada a fazer. Já era fato consumado. Ambroise durou pouco tempo, depois de ter sentido o desgosto de ver sua única filha, casada com “um selvagem”, era assim que ele denominava Constance.

Marie Louise herdou todas as terras e a mansão de arquitetura renascentista. Ela e Constance passaram a cuidar da herdade com a visão administrativa de Ambroise. Mantiveram todos os gerentes e mestres que o pai de Marie Louise confiava, fazendo com que os negócios não sofressem com a morte do fundador.

Não tiveram filhos para legar a imensa fortuna que acumularam, iam vivendo da melhor maneira que sabiam. Ele era mestre da Confraria da Geléia de Groselha, entidade secretíssima, acessível somente aos diletos membros convidados, sempre produtores de geléias, com seus segredos guardados a sete chaves. Constance tinha um hobby que compartilhava com Marie Louise e somente ela e mais ninguém sabia.

Constance estava sempre contratando mocinhas estrangeiras para aprenderem a arte de tirar sementes de groselha. Com uma pena de ganso de ponta bem dura, acuidade visual e destreza manual a moça era contratada para a função. Eram todas muito jovens e vinham dos confins da Europa; muitas eram portuguesas, espanholas ou polonesas.

Vinham em busca de independência financeira, pelo maravilhoso lugar e naturalmente por casa e comida. Entravam pelo negro portão de ferro e perdiam-se sob os ramos das groselheiras.

Numa manhã fria de janeiro, Lola, uma espanhola exuberante, bate naquele portão de ferro, respondendo a um anúncio de governanta. É contratada para ajudar Marie Louise na administração da mansão. São dois salões, dez quartos, duas saletas, cozinha, dispensa, lavanderia, mais a correspondência. Tudo estava por conta dela agora.


Lola não era somente uma linda mulher que vinda de Barcelona para ser governanta, Lola era um pouco mais. Ela era detetive particular, contratada por Marek Molinovsk, um pai polonês, desesperado a procura de sua filha Mila. A menina queria estudar artes plásticas em Paris, contra a vontade de Marek, que havia pensado em algo muito mais lucrativo para ela. Pensou que Mila poderia administrar sua fábrica de lingüiças, o que fazia a mocinha, só de se imaginar na função, sentir náuseas.

Mila fugiu sem deixar rastro. Marek só sabia que ela queria ir para Paris estudar artes.

Lola tinha um pequeno escritório em Paris, era considerada, “a melhor detetive”, em casos de desaparecimento. Sua fama já havia se espalhado boca-boca. Seu lema era:
“Olho vivo e Faro fino”. Fazia sempre, um serviço rápido e limpo, não extrapolando nos orçamentos, o que passava muita confiança para o contratante.

Foi até a Polônia, precisamente na cidade de Poznan. Uma cidade antiga muito bonita que ficava há alguns km de Varsóvia. Conversou por um tempo com o senhor Marek para tentar desvendar o mistério, mas foi no quarto de Mila que Lola descobriu uma pista. Era um jornal faltando um anúncio que tinha sido recortado. Comprou o jornal já vencido, através de um jornaleiro que tinha um depósito para guardar jornais velhos, comprados pelos mercadores do local, para serem usados nas peixarias e açougues. Com o jornal nas mãos, foi fácil achar o anúncio da cidade de Bar-le-Duc e chegar à mansão de Constance e Marie Louise. Sorte grande, foi ficar sabendo na estação de trem, que a mansão estava precisando de uma governanta.

Fazia uma semana que estava na mansão e nada de ver a senhorita Mila. A casa, praticamente, fora toda vasculhada, o telefone estava grampeado, a agenda de Constance só continha negócios sobre a plantação de groselha e não tinha nada que a levasse, suspeitar dele por ali. Sentiu que estava perdendo aquela investigação.

No dia onze de janeiro, a cidade Bar-le-Duc ficou em festa, comemorando o dia de Saint Paulin. Constance iria a uma reunião na Casa da Confraria da Geléia de Groselha e depois se encontraria com Marie Louise que estava com umas amigas no Clube da Groselha, portanto, demorariam pelo menos umas três horas, tempo suficiente para ela dar uma última rastreada na mansão, sem medo de ser pega. Ela disse a Marie Louise que passaria na festa só depois de deixar sua correspondência particular em dia.

Com os sentidos aguçados, começou uma minuciosa investigação. Detalhou cada canto da casa, mas nada ali era suspeito, talvez tivesse que sair pelos arredores da mansão. Lembrou que o único lugar que nunca tinha conseguido entrar era o escritório de Constance, pois ele não saia dele por nada. Era dali que comandava o seu império.

Foi um passeio infrutífero por aquela sala, viu cada canto, cada livro, cada gaveta e nada. Quando estava saindo, um leve som oco lhe chamou a atenção. Era uma batida repetida como um código Morse.

Parou de respirar. Sim, ouvia perfeitamente uma batida insistente e desesperada. Procurou uma brecha nas estantes, buscando uma passagem secreta, e nada! Quando estava quase desistindo, o fax tocou, enviando uma mensagem. Lola assustada com o sinal eletrônico, derrubou um cinzeiro azul de Murano, que rolou para debaixo da mesa de Constance.
Quando se abaixa para pegá-lo, vê uma nesga de luz no assoalho. Prendeu novamente a respiração e, cuidadosamente, afastou a pesada mesa de cedro esculpida com dragões. Essa mesa tinha sido um presente de Marie Louise em alusão ao segundo nome de Constance. Dragon era o nome que ela o chamava na intimidade.

Delineou-se no chão a porta de um alçapão. Procurou pela sala uma lanterna que pudesse iluminar a escada, achou-a na gaveta das listas telefônicas. Sentiu um frio no estômago enquanto descia pé-ante-pé, aquela escava mal iluminada. De repente, o código Morse recomeça batendo freneticamente em algo de metal. No pé da escada viu um fio com uma lâmpada dependurada e apagada. Dessas que tem um interruptor na base, onde se gira uma lingüeta de liga-desliga.
Tremendo como nunca, gira a lingüeta e a lâmpada se acende trazendo a sala uma luz amarela e fantasmagórica.

Foi uma visão dantesca. No centro da sala, havia uma mesa de açougueiro, feita de madeira maciça e ao redor dela, uma canaleta, coberta por uma grade de metal. Provavelmente para coletar sangue. Logo acima da mesa havia um trilho com vários instrumentos de corte: serrotes, facões e marretas. Bem a sua frente havia uma grande geladeira-freezer de aço inoxidável.

Andando em direção ao som, Lola pára, estarrecida, quando vê uma jaula toda almofadada. Amarrada num canto, uma mocinha ruiva, com grandes olhos azuis apavorados, a olha. O medo estava estampado em seu rosto e de sua boca não se ouvia nenhum som, apenas apontava a geladeira com seu dedo em riste.

Lola estava tão assustada, que abrir aquela geladeira foi igual a uma das missões de James Bond. Parecia que se abrisse a geladeira, um demônio pularia direto em seu pescoço, prendendo-a na jaula também.

Com todo o cuidado, abaixou a maçaneta do freezer, que tinha uma trava de segurança. Teve que colocar as duas mãos para forçá-la para baixo. O medo é a pior coisa que alguém pode sentir, ele trava todos os sentidos, fazendo coisas simples tornarem-se inexpugnáveis.

A porta abriu-se e naquele momento, o quadro visto por Lola, fez com que seus sentidos fossem desaparecendo. O chão foi se afastando e a luz foi sumindo.

Foi quando a mocinha gritou, destravando um medo atávico, fazendo com que Lola, voltasse daquele torpor. Correu para junto da jaula e viu o cadeado trancado. Imediatamente seu sangue volta a irrigar seu cérebro, fazendo sua reação contra o perigo ficar ativada. Pegou a marreta pendurada no trilho sob a mesa e bastou duas boas pancadas para que quebrasse o cadeado.

Abraçaram-se. Era Mila Molinovsk em pessoa, querendo voltar à Polônia para seu velho e antiquado pai.

Lola terminou de fotografar aquele antro maldito e saíram dali em seu carro, diretamente para Paris. Não tinha confiança no delegado de Bar-le-Duc, com Constance sendo o bam-bam-bam da cidade.

Em Paris o comissário de polícia ficou apatetado, vendo as fotos tiradas por Lola: eram sinistros pacotes de carne de seres humanos, devidamente mutilados, esquartejados e embalados para consumo do casal de velhinhos, os mais ricos da cidade. Mila seria a próxima vitima; só esperavam seu tempo de engorda.

No tribunal, descobriu-se o verdadeiro hobby secreto do casal sinistro. Eles disseram em confissão, que não existia no mundo, iguaria mais requintada que a carne humana ainda jovem. Constance achava celestial a carne cosida no molho de groselhas.
Ele contratava mocinhas estrangeiras, que depois de um tempo, eram despedidas e assim na volta para suas casas, tomavam o atalho do porão, onde eram enjauladas e só depois de passarem pela fase de engorda, eram esquartejadas e embaladas para consumo.

Lola voltou com Mila para a Polônia, pois tinha que receber seu pagamento. Enquanto se despedia da família, seu celular toca. Era sobre um menino de seis anos, filho de um banqueiro inglês. Estava desaparecido.

FIM


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