.

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008

O Cemitério

Tela de Marc Chagall


Caminhava pelas alamedas do cemitério em silêncio, rezando um mantra de paz. Minha mãe querida, que já fez a grande e misteriosa viagem, é quem me ensinou esse mantra da consolação. Venho todas as manhãs ao cemitério não por me sentir deprimida, mas para fazer minha caminhada matinal. Gosto de caminhar sozinha, pois assim não perco o pique da respiração. O mantra me ajuda a limpar aqueles pensamentos desnecessários que só fazem nos deixar pra baixo. Quando estava na quarta e última volta, eis que vejo um homem ajoelhado em um túmulo, em prantos.

Aquele homem enorme, ajoelhado, causava pena. Fiquei sem saber se intervinha, se dava uma volta ou se me aproximava para lhe oferecer ajuda. Mas, que ajuda alguém como ele, bem vestido, de boa aparência, poderia querer?

De repente, num rompante, o homem retira de sua maleta um revólver. Ergue aquela arma para a sua fronte e eu, estupefata, vejo o reflexo do sol nela, no exato momento em que ele dispara contra si.

Virei-me para sair correndo dali, quando vi que, de sua maleta, começaram a voar uns papéis. Não podia deixá-los sair ao léu, com o vento. Corri até a maleta e fui recolhendo as folhas todas. Quando já as tinha nas mãos, eis que o zelador do cemitério chega correndo. Coloca as duas mãos na cabeça e diz: “Eu sabia que um dia isso iria acontecer!”

Eu olhei para ele arregalando meus olhos e ele, falando com dificuldade, me disse: “Esse sujeito estranho veio três vezes hoje chorar neste túmulo. Era do pai dele; coisa mais esquisita de se ver. Ele, às vezes, esmurrava a lápide e gritava: - ‘Por quê? Por quê?’ Depois saia cambaleando que nem um trapo humano, pegava o carro e saia em disparada. Numa das vezes, quase que me atropela. Agora, isso! Vou ter que telefonar para a administração. Seria demais se eu pedisse a senhorita que ficasse aqui por um instante? Só para o caso de alguém mais querer se aproximar.”

Eu, que estava sem chão, concordei. Sentei-me num banco de jardim que estava por perto e olhei mais uma vez para o rosto do homem que tinha uma perfuração na fronte e um filete de sangue escorrendo na face. Pensava comigo o que poderia ter levado aquele infeliz a se matar naquele lugar e, pior, no túmulo do pai!

Foi quando olhei para os papeis que estavam em minhas mãos. Eu os tinha apertado tanto, que algumas folhas estavam começando a se rasgar.

Olhei a primeira folha que dizia:

-“Querida Klaris, o que tenho para te revelar é o mais ignóbil e sórdido relato de uma vida.”

Respirei fundo quando percebi que aquela carta era uma confissão. Neste momento, vejo uma jovem e uma senhora correndo em direção ao corpo. Não sei porque tive aquela reação, mas juntei as folhas e enfiei entre a calça e o agasalho.

Fiquei por ali, respirando aquele ar de mistério. A polícia foi acionada, pois eu já ouvia o som da sirene. Algumas pessoas, que passavam por ali, começaram a fazer uma rodinha de fofocas. A senhora, que parecia ser a mãe do finado, ajoelhada sobre o corpo, chorava o choro mais sentido que alguém pode chorar. A moça, de pé, estava lívida, branca como uma folha de papel. Percebi que ela estava para despencar a qualquer instante. Confesso que queria sumir daquela tragédia.

Ainda tinha que terminar um artigo que escrevia para o jornal em que trabalho. Vi que a moça começou a dobrar os joelhos para desmaiar. Corri para segurá-la e foi por um triz que ela não se “estabacou” na relva. Pedi ajuda a um rapazinho que estava xeretando o acontecido e levamos a moça até uma salinha, dessas que o cemitério oferece para os velórios. O rapaz se afastou bem depressa, pois era muito mais interessante ver um defunto baleado que uma moça desmaiada.

Fiquei ali sem saber exatamente o que diria, quando ela recobrasse os sentidos. Pensei comigo: “Dane-se o artigo do jornal”. Mas, pensando bem, liguei para minha parceira de encrencas jornalísticas (na verdade, uma cobre a outra, nessas situações, de impossibilidade de entrega de textos para o jornal). Falei: “Bianca, querida, tem que me salvar hoje”. Ela que já se acostumou com o meu jeito, falou: “Que venha a bomba dona Grazzi!” Passei as coordenadas do artigo para ela e fiquei sossegada para saber sobre a tragédia do cemitério.

Ficamos lá na sala, ela desfalecida e eu de olho nela, mas louca para ler a confissão do falecido. Pensei em entregar logo de uma vez os papéis a moça, mas, alguma coisa me dizia para verificar antes o terreno. E aquele parecia um terreno alagadiço, talvez um pântano.

Quando ela abriu aqueles olhos de água, senti pena da menina. Era de uma fragilidade tão grande, que tive medo de perguntar qualquer coisa que fosse. Mas ela estava ali, envolta naquele ar de mistério e eu não podia deixar passar essa chance. Dei-lhe água do filtro comunitário e ela segurou minha mão em agradecimento. Não falou nada por um bom tempo. Ficamos ali na sala, às escuras. A sombra das árvores não deixava entrar a luz da manhã. Foi até melhor, pois assim na penumbra, ela pode falar sem receio:

-O Klaus é meu - quer dizer - era meu noivo. Estávamos passando por um momento de terríveis decisões. Desculpe-me estar falando isso com a senhora...

Tentei acalmá-la e disse:

-Por favor, não me chame de senhora, pois temos a mesma idade, acho. Pode desabafar, só vai te fazer bem, e eu tenho todo o tempo do mundo!

-Tudo bem, eu agradeço, não tenho ninguém para desabafar este fardo que carrego.

E continuou:

- Klaus é filho de alemães. Nós nos conhecemos e logo ficamos noivos, tamanha foi a atração que nos uniu. Combinávamos em tudo, gostávamos das mesmas coisas, até a cor das roupas eram iguais. Ríamos dessas coincidências e elas nos aproximavam cada vez mais. Um dia, quando voltava para casa depois do trabalho, fui violentamente agredida e estuprada por um homem que mais parecia um animal selvagem. Fiquei dois meses internada na UTI de um hospital. O Klaus ficou desesperado, chorava o tempo todo. Perdeu tanto peso que eu nem mais o reconhecia. Sua mãe estava sempre com ele nas visitas que me fazia e eu via no rosto dela, muita preocupação em relação a ele, muito mais que por mim. Quando sai do hospital tive a terrível notícia do meu estado. Os médicos nos chamaram para dizer que eu estava grávida em conseqüência do estupro. Sabíamos que era verdade, pois o Klaus sempre foi cuidadoso nesse sentido. Queríamos nos casar e só depois de uns dois anos planejaríamos ter nossos filhos. Como a maioria dos alemães, ele era metódico e conservador. Planejávamos nosso futuro com carinho. Então, aquilo caiu como uma bomba atômica, sobre as nossas cabeças. Como iríamos criar aquela criança, fruto daquele animal? Estávamos desesperados. Eu pensava no melhor caminho a seguir, quando recebi a notícia que o pai dele teve um infarto fulminante. Soube, por sua mãe, que foi logo depois de uma terrível discussão que teve com Klaus. Eles chegaram a se “pegar” aos socos no escritório. Enquanto o pai dele estava sendo levado ao necrotério ele se trancou no escritório e só queria escrever. Passou lá o dia e a noite fechado, escrevendo. Somente hoje cedo ele veio ao cemitério ver o túmulo de seu pai. Decerto, veio pedir perdão. Agora nem pai, nem filho para contar a história de tanto desentendimento. Eu aqui, sozinha com essa criança a crescer em mim, não tenho a mínima idéia do que fazer. A mãe dele, a essa hora, deve estar pensando em dar cabo da vida também.

Falando isso, caiu em prantos. Pude ver que seus lábios tremiam e tive muita pena da pequena. Ela, aos poucos, foi se recompondo e, sem jeito, me estendeu a mão num tímido cumprimento: “Meu nome é Klaris, não me pergunte a origem, pois também não sei, só sei que combinava com Klaus.”

Fui com ela ao enterro do noivo e depois desse momento de dor, prometi que nos veríamos dali a uma semana para um chá em sua casa.

Liguei para a Bianca que já deveria estar tonta de tanto me ligar e expliquei por alto a história tenebrosa do cemitério. Ela ficou sem fala por um longo tempo, depois disse:

- “Vade retro Satanás!”. Pode ficar tranqüila, amiga. O texto já foi pra redação e do resto cuido eu. Amanhã nos falamos, vai tomar um banho pra tirar essa “uruca” de cemitério e descanse.

Foi o que fiz. Depois de tomar um belo banho e fazer um lanchinho, fui direto para o meu quarto, e lá, debaixo das cobertas, descobri o segredo de Klaus.

Aquela “carta-confissão” foi se mostrando aos meus olhos atônitos. Nunca saberemos se conhecemos uma pessoa o suficiente, até que levantamos sua capa, e a vemos nua, sem o manto da mentira. Klaus descobriu do pior jeito, que o seu pai não era aquele que se dizia ser.

Depois da violência sofrida por Klaris, ele ficou transtornado, prometendo a si mesmo que não descansaria se não fizesse justiça com as próprias mãos. Sabia que no escritório do pai havia uma arma, e foi lá que descobriu a verdade que mancharia sua existência. No fundo da gaveta, onde o pai guardava peças de um jogo de xadrez, Klaus viu uma fita preta. Sem saber que era parte da peça que levantaria o fundo falso da gaveta, puxou-a. Viu, no fundo do esconderijo, uma porção de fotos e documentos. Imediatamente, fechou a porta do escritório à chave. Ai, então, sem medo de ser interrompido, levantou de uma vez, a tampa falsa, retirando de lá, papéis e fotos. A primeira coisa que abriu, foi uma certidão de nascimento com o nome de Klaris. Ali, naquele momento, o chão se abriu e ele caiu num abismo sem fim. Tudo à sua volta foi girando até que seu corpo não resistiu mais e despencou sobre o tapete. Klaris era sua irmã gêmea. Por isso, eram tão semelhantes. O destino, cheio de artimanhas, tinha dado um jeito de uni-los novamente. O pior foram as fotos, elas comprovavam pertencer à mesma pessoa. Ali tinha fotos de Klaris, tiradas durante toda a sua vida.

Klaus esperou o pai chegar em casa, para poder colocá-lo, contra a parede. Precisava ouvir sua explicação para tudo o que tinha visto. Trancou-se com ele no escritório, dizendo que
o que tinham para conversar ninguém precisava ficar bisbilhotando.

O pai de Klaus ficou acuado frente à gaveta aberta e todos aqueles documentos revirados. Sentou-se, ou melhor, despencou na cadeira. Estava ficando vermelho quando Klaus deu o primeiro berro: - “Não adianta fazer teatro, conheço muito bem esse seu perfil germânico!”

O pai foi esmorecendo, deixando os braços caírem. Ficou como se tivesse sentindo uma gangrena na alma. Tentou se levantar para sair da sala, mas Klaus, num salto, pôs-se a sua frente dizendo:

-Daqui o senhor não sai sem antes me explicar essa história da Klaris!

O peso da culpa era visível e transparecia no suor daquele rosto envelhecido. Não tendo como fugir da confissão, ele começou uma dissertação macabra. Era todo o drama de sua vida. Ouvir aquilo tudo foi tão nojento que Klaus vomitou na lata de lixo que estava ao lado da escrivaninha. Tudo revirava à sua volta, enquanto o pai confessava aquelas atrocidades:

-Antes de me casar com sua mãe, ter filhos não estava nos meus planos de vida. Quando ela ficou grávida, nossa vida de casal desmoronou. Ela não podia me ver que sentia náuseas. No dia que ela começou a sentir as dores do parto, quis que chamássemos uma parteira. Foi o que eu fiz. Foi um parto longo e difícil. Ela gritava de dor e sangrava muito. Você nasceu pequeno e azulado. Imediatamente, ressuscitado e limpo, foi para os braços de sua mãe. Quando a parteira voltou para limpá-la, eis que teve uma surpresa. Ali, toda encolhida, uma menina muito pequena tinha nascido sozinha, sem nem mesmo sua mãe perceber. A parteira pegou-a e sem falar nada, mostrou-a para mim, dizendo: “Acho que essa menina não vai vingar, talvez seja melhor não dizer nada à mãe agora, fraca como está, não vai suportar.” E foi o que eu fiz. Deixamos a menina no quarto ao lado, pensando que morreria a qualquer momento. Não foi o que aconteceu. Eu não podia imaginar minha vida com as duas crianças, ali, chorando dia e noite e sua mãe prostrada, sem forças para nada. A parteira me disse que conhecia um casal que queria adotar uma menina e ficaria com ela de bom grado.
Não pensei duas vezes. Aceitei, contanto que concordassem que ela levasse o meu sobrenome. Eles aceitaram, mas depois, soube que rebatizaram a menina em um cartório do interior como se fosse filha deles. Mantiveram somente o primeiro nome da menina, Klaris.
Por anos eu fiquei atormentado com esse segredo. Descobri o endereço dos pais adotivos e vendo que eles passavam dificuldades financeiras, comecei a ajudá-los e fazia visitas para estar com Klaris de vez em quando. Eles aceitaram, pois do contrário, passariam fome. Tirei fotos de Klaris, em todas as ocasiões que estive com ela. Acostumei-me com o seu lindo rosto de boneca. Ela sempre foi uma menina frágil e dependente. Chamava-me de tio querido. Eu não sei em que momento aquilo se deu, mas me apaixonei por ela. Não como um pai, mas como homem. Ela foi entrando em meus poros e não saiu mais. Quando você me disse que iria se casar com uma moça chamada Klaris, meu coração quis parar. Não podia ser a mesma pessoa, eu não resistiria ficar sem ela. O meu mundo começou a desmoronar quando tive a confirmação de minha suspeita. Klaris, jamais percebeu o meu sentimento por ela, nunca deixei que soubesse, mas agora era diferente, eu tinha que contar de uma vez por todas. Fui buscá-la no trabalho, contaria tudo e esperaria um sinal que me abrisse o céu, que fizesse com que ela também me amasse. Mas, não foi assim que as coisas se deram. Ela só falava de você, de seu grande amor, de tudo o que iriam fazer juntos, depois que se casassem. Aquilo foi me virando o estômago, fui ficando possesso, uma raiva de tudo, do mundo, de sua mãe, de você e por fim, de Klaris. Quando a deixei em casa, estava frio e sombrio. Ela me perguntou se estava me sentindo bem. E eu não respondi, sai dali querendo matar todo mundo. Antes de chegar na esquina, voltei para a casa de Klaris. Ela estava abrindo a porta, quando tapei sua boca e bati em seu rosto e em seu corpo, com toda a força que tenho. A minha vontade de possuí-la era tão grande que a arrastei até a garagem e ali, como um louco, rasguei suas roupas e bati tanto naquele corpo que jamais poderia ser meu e violentei-a de todas as maneiras. Ela não viu absolutamente nada, pois estava desacordada . Deixei-a numa poça de sangue, entregue à sorte, e fui embora dali engolindo o sangue dela que ficara em minha boca. Depois soube que ela estava na UTI do hospital entre a vida e a morte. Quase morri, revirando minha vida de merda, querendo voltar no tempo e consertar o mal que eu havia causado a tanta gente, mas não, agora eu tinha virado um monstro e o gosto daquele sangue era doce. Se ninguém me segurasse eu iria querer mais...

Depois de ouvir o pai, Klaus começa a ter um mal estar que sobe das entranhas e vai até a cabeça. Uma dor invade todo o seu corpo e, depois de tentar agarrar o ar que estava começando a arrefecer, diz ao pai que Klaris está grávida. Aquilo foi o golpe que faltava para dar cabo do desgraçado. Levando a mão ao coração, ele cai se contorcendo de dor. Grita ao filho que o ajude, mas Klaus espera pacientemente que o pai termine ali, gemendo de dor, sabendo que sua filha estava grávida dele.

Depois de ver o pai caído no tapete, mole e sem vida, chama a mãe. Ela grita e começa a chorar, mas isso não comove Klaus que se enoja da cena. O pai é retirado do chão e colocado no sofá da sala de estar. Chamam o médico da família que atesta o infarto fulminante. Klaus então começa a escrever a carta-confissão e conta toda a sórdida estória que envolve a sua miserável vida.

Depois de explicar a Klaris aquela coisa inenarrável, pede perdão à noiva, diz que talvez tenha tido por ela o mesmo amor que o pai teve. Sentia-se culpado pelo pai que a violentou e estava preste a cometer a mesma loucura como irmão. Implora que ela aborte aquele ser que está dentro dela. Que procure ser feliz com alguém que a mereça.

Quando eu terminei de ler toda aquela trama macabra, minhas mãos tremiam. Puxei as cobertas e fiquei ali, encolhida, pensando no que fazer com a carta. Não era minha e eu tinha que tomar uma decisão. Dormi uma noite de trevas, ouvindo o pai do Klaus gritando para o filho: - “Perdão, perdão!”. Ele segurava as minhas mãos implorando que eu transmitisse seu perdão a Klaris, que ela era o seu grande amor. Fui assustada a noite inteira por fantasmas. Acordei com um grito de dor pronunciado por Klaus que dizia: - “Aborte! Aborte!”

Quando acordei, estava completamente ensopada de suor. A carta estava espalhada pelo chão. Juntei as folhas e pensei em ligar para Klaris. Não estava nem um pouco a fins do passeio matinal, mas também não queria enfrentar a Bianca com todas as perguntas que eu sabia que ela faria. Quando já estava saindo pelo portão, dei de cara com Klaris que chegava me procurando. Visivelmente abatida me cumprimentou meio sem jeito:

-Bom dia! Desculpe-me chegar assim sem avisar, sei que combinamos para daqui há uma semana em minha casa, mas se eu não conversar com alguém acho que ficarei louca.

-Tudo bem, querida! Vamos entrar! Eu também preciso falar com você, mas primeiro, tomamos um lanche.

Enquanto preparava o lanche, pude observar que ela tremia e estava ser cor. Coloquei tudo sobre a mesa da cozinha e ali mesmo começamos uma conversa de vida e morte.

Ela me contou de sua vida com os pais que a adoraram, do tio alemão que sempre ia visitá-la e dos presentes que ganhava. Que era como se tivesse dois pais.

Eu pensava: “Que ironia do destino!”. Enquanto ela falava, revia a cena do cemitério, Klaus ali no túmulo do pai gritando “por quê?”, depois o tiro e os papéis espalhados.

Foi quando Klaris começou a chorar desabando nos meus braços. Seu corpo era violentamente chacoalhado pelos soluços. Deixei que ela destampasse a comporta daquela represa e deixasse o desespero sair. Aí, foi-se acalmando, até ficar com aquele olhar perdido, vago. Juntei as forças que tinha e mais um pouco para começar a falar-lhe da carta.

Falei a Klaris que Klaus teve um motivo para fazer o que fez. Ela olhou-me assustada. Tentei acalmá-la e disse que se não fosse forte, não poderia saber a verdade. Ela respirou fundo e falou com um fio de voz:

- Nada mais vai me abalar, depois do que aconteceu.

Pensei comigo: - “Será?” - e dei-lhe a carta.

Quando ela começou a ler aquelas letras de puro veneno, pensei que não agüentasse, mas não... foi, aos poucos, se acalmando, ficou em silêncio por um bom tempo para depois olhar para mim e dizer:

-Vou abortar! Não fico com o filho daquele crápula nem mais um dia. Não poderia olhar para essa criança no futuro e dizer que o seu pai era o seu avô e o homem que eu amei era o meu irmão. Vou arrancar de minha vida essa página e nunca mais quero saber dessa desgraça.

-E sua mãe verdadeira, você não gostaria de vê-la, saber dela? Afinal ela também foi uma vitima dessa trama toda!

-Ainda vou pensar, mas primeiro vou pensar em mim.

-Vou te ajudar em tudo o que precisar, apesar de ser contra ao aborto, mas nesse caso, eu tenho certeza de que Deus estará do seu lado.

Depois de um tempo, tudo estava andando novamente nos trilhos. Klaris realmente fez o aborto. Começou a fazer terapia e foi conhecer a mãe que pensava ser somente a de Klaus.
Ainda não conseguiu perdoar o pai alemão, mas tem certeza de que vai ser o próximo passo.

Permitiu que eu escrevesse a sua estória no jornal em que trabalho. Minha amiga Bianca, não se conforma com a minha sorte em arrumar as mais incríveis matérias. Depois de tudo, ainda fui promovida a chefe do setor de Grandes Reportagens. Agora não ando mais em cemitério, quem não sai de lá é Bianca que diz estar à procura de uma grande reportagem.

7 Comentários:

  • Longo como a decomposição de um cadáver, mas tipicamente Rach: cheio de histórias dentro de histórias, com uma sempre inteligente pitada de humor negro.

    O final está excelente.

    Por Blogger Rogério Camargo, às 15 de fevereiro de 2008 às 12:59  

  • Amiga, li por mais duas vezes esse conto.
    Gosto desse suspense característico seu.
    Eu vou viajando no seu conto...
    As vezes acho que foi de verdade e depois acordo aliviada.kkk
    Parabéns minha linda!
    Esse conto nos leva a meditar a nossa mesquinha de vida.
    Quem somos nós?
    Beijos com gosto de DoceRAchel.

    Por Blogger Ana Maria, às 15 de fevereiro de 2008 às 15:05  

  • Longa e sinuosa trilha, e nas derivadas sempre bastante "sangue" como convém a um conto macabro.
    Deveria seguir em frente também outros motes e temas. Até humor lhe fica bem.
    E neste achou uma maneira de aceitar o aborto... rsss ... isso revela uma certa tendência... rss... (somos amigos)
    Ausentou-se da cena e do meio, e finalizou despreocupadamente gozando a promoção.
    É isso, então.
    Parabéns Rachel

    Por Blogger Julio Teixeira, às 15 de fevereiro de 2008 às 15:14  

  • Doce Rachel!
    Gosto do que escreve,me prende..
    Já sabia deste.. afinal está lá na nossa Arte da Alma-Portugal com Frida.O mote rs,cresceu...e senti muitos arrepios,conforme ia lendo..e relendo,pois tinha medo do que iria acontecer..
    Surpreendente!
    Gostei imensamente!
    tem todo seu jeito de ser!

    Beijos

    Dolores Jardim

    Por Blogger Dolores Jardim, às 15 de fevereiro de 2008 às 17:25  

  • Nossa! Quanta coisa dentro de outra coisa dentro de outra coisa..hihi
    Vi uma Janete Clair que virou Nelson Rodrigues que virou minha vó contando causos que virou uma família interia e sua saga literária num só conto! Ufa..e ainda tomei um susto ao ler "Grazzi" no meio da historia!

    Ahhh então adorei andar no cemitério!:)

    Beijos!

    Por Blogger Grazzi Yatña, às 16 de fevereiro de 2008 às 14:56  

  • ...VC É ORIGINAL EM QUALQUER COISA QUE ESCREVA...
    É A SUA MARCA.

    UM ABRAÇO CARINHOSO.
    LENINHA

    Por Blogger A CASA DOURADA/Leninha Sol, às 18 de fevereiro de 2008 às 02:55  

  • Já havia lido e não havia comentado.
    Gosto de histórias macabras e suspenses. Gosto do modo que escreve.
    Achei o conto inteligente e de humor, assim, como gosto.
    Então Rachel!
    Parabéns!
    Sou sua Fã!
    Beijos.
    Marta Peres

    Por Blogger Marta Peres, às 23 de fevereiro de 2008 às 12:07  

Postar um comentário

<< Home