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quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

A Vida Dupla de Dolores

Tela de Augustus Dunbier



Existem pessoas que conhecemos que são como um livro aberto. Assim é Dolores Quintão Jardim. Uma portuguesinha faceira, radicada no Brasil, com uma família feita de marido, filhos, netos, todos lindos e queridos. Dolores é uma dessas pessoas que quando chega nos lugares é para trazer luz. Apaixonada por Portugal, vive cantarolando fados. Está sempre rodeada de rosas. Um riso largo se estampa em seu rosto quando o assunto é poesia. Tem verdadeira adoração pelos poetas portugueses e em especial por uma poetisa que idolatra chamada Luiza Caetano.


Uma vez eu fui convidada para um coquetel realizado por uma grande editora, onde seria apresentado o livro chamado Antologia dos Poetas Vivos, com premiação e honrarias. Acontece que Dolores tinha sido requisitada como representante dos interesses de Luiza Caetano neste evento, onde concorreria como uma das melhores poetisas. Pouco antes do início da festa eu fui ao toalete.


Quando estava para sair de um daqueles cubículos individuais, ouvi um ruído estranho vindo da cabine ao lado. Eu sabia que era Dolores, porque reconheci sua voz, mas para fazer-lhe uma surpresa, não falei nada. Fiquei em silêncio. Foi aí que ouvi Dolores, falando em código em português de Portugal. Engoli em seco, arrependendo-me por não me ter anunciado.


Ouvi quando ela saiu da cabine e abri minha porta bem devagar, deixando apenas uma pequena fresta para espiá-la. Não queria interromper aquela conversa esquisita, dela com não sei quem, nem assustar Dolores que parecia estar agitada. Ela estava de costas para mim e não tinha percebido minha presença.


O que eu mais estranhava era que ela falava, mas eu não via nenhum celular com ela.

Pensei que talvez fosse um daqueles casos de esquizofrenia, mas ela falava com tanta convicção que comecei a prestar atenção. Ela dizia que estava tudo arranjado para pegar o impostor, que o esquema todo estava sendo providenciado e que ele seria posto em nocaute.


Que usaria as rosas vermelhas para derrubar o inimigo.E eu que pensava que as rosas vermelhas de que tanto ela gostava fosse um hobby, pois não era coisa nenhuma, tudo fazia parte de algum plano sinistro. Quem diria que a doce Dolores era uma, uma... o que será que Dolores era?


Comecei a segurar um riso que já apontava na garganta. Contraí a boca fazendo com que meus olhos se enchessem de lágrimas, tudo para não cair na risada. Pensei: ela deve estar falando com algum amante. Quem diria, hein! Eu não via celular nenhum e ela falava parecendo responder a um fantasma. Dizia que Luiza Caetano seria homenageada como deveria ser e que o famigerado Manuel Amante não conseguiria o seu intento naquele evento, que era o de fraudar a premiação, tirando os méritos de Luiza.


Comecei a ficar preocupada quando Dolores tirou a roupa. Disse comigo: -Ai, meu Jesus, agora ela pirou de vez. Ela retirou de uma sacola de couro preto, uma roupa também preta e a vestiu em segundos. Prendeu os cabelos pretos e colocou uma peruca loira chanel. Pôs um óculo escuro, onde ajustou uma porção de minúsculos botões. Era um desses óculos que aproximam a imagem e fazem as coisas aparecerem no escuro. Aqueles óculos eram de uma agente secreta, isso eu não tinha a menor dúvida.Ela enrolou-se com um lenço de seda, estampado com rosas vermelhas. Retirou um pequeno ramalhete de rosas vermelhas da bolsa (ela adora vermelho), enfiou alguma coisa que eu não consegui ver, bem no centro do arranjo, colocando-o sobre uma bancada ali no banheiro.


Vocês não vão acreditar, mas, de repente, ela deu um salto, desses que os ninjas dão e alcançou o forro no teto. Afastou uma das placas do forro e escondeu sua bolsa lá em cima. Recolocou a placa novamente, tão rápido que eu fiquei tonta. Pegou o ramalhete da pia e saiu do toalete para o salão de festas como uma Vênus platinada.


Eu saí logo atrás, meio zonza sem saber se ria ou se chorava. Então essa era a Dolores! Que maravilha! Ela seguia pelo salão levando o ramalhete, indo diretamente para a mesa de jurados. Todos olharam-na embasbacados. Ela, sem rodeios, cumprimentou a todos com um sorriso e foi falar com o senhor Manuel Amante que a olhava de queixo caído.


Dolores sem cerimônias entregou-lhe o ramalhete com os cumprimentos do governo de Portugal. Assim que ele pegou as flores foi envolvido por uma onda magnética que parecia estar lhe enviando um sinal de comando. Foi imediatamente hipnotizado, ficando com os trejeitos do Charles Chaplin.


Nesta noite Luiza Caetano foi aclamada como a poetisa com alma do sol de Portugal. Durante a festa, o senhor Manuel Amante teve que ser retirado do recinto, pois tinha enfiado pãezinhos em garfos e dançava com eles sobre a mesa. Quando já estava virando um show, levaram-no para o hotel.


Eu seguia Dolores por todos os canto. Queria descobrir tudo sobre aquela trama. Quando ela voltou ao toalete eu já estava lá na cabine. Não iria perder por nada aquilo tudo. Dolores ligou, não sei como, para um sistema de telecomunicações completamente invisível e foi falando.


"-Dori na escuta. Câmbio! Tudo certo, Luiza resplandece, aguardo contato futuro. Câmbio."


E assim terminou a ligação intergaláctica. Dolores deu um salto para o teto como se fosse a “mulher gato” e apanhou sua bolsa de couro. Vestiu-se num passe de mágica, voltando a ser Dolores, a portuguesinha que conhecíamos. Quando ela já estava saindo do toalete eu abri a porta e falei:


-Pode ir me contando tudo, querida!


Ela muito sem graça, foi dizendo que não estava entendendo nada. Eu, rindo, disse-lhe que o que mais tinha me impressionado foi o telefonema para o fantasma. Ela disfarçou rindo e disse que estudava teatro. Eu olhei para ela e falei:


-Tudo bem! E os saltos? São treinamentos para algum circo de equilibristas? Francamente Dolores, conta outra! E as rosas, então. Aquilo foi de cinema!


Ela rindo, me abraçou pedindo segredo. Eu respondi:


-Tudo bem querida, eu sou um túmulo. Quem diria que eu fosse ouvir tudo aquilo de Dolores.

Ela era uma agente secreta, trabalhava para o SIS – Serviço de Informações e Segurança de Portugal, sendo uma das agentes mais requisitadas nos últimos tempos. Aquela sua fixação por rosas, que eu pensava ser um hobby, era na verdade sua marca registrada no mundo da espionagem. Era com as rosas que costumava nocautear os incautos. E o aparelho intergaláctico, era um chip implantado bem na cabeça. Assim eles entravam em contato com ela e nem mesmo sua família percebia, pois recebia o comando diretamente de dentro da cabeça. Muito engenhosos esses portugueses. E nós que fazemos piadas deles.


Se eu não tivesse visto tudo aquilo, jamais acreditaria se me contassem sobre a vida dupla de Dolores, aliás, Doli, agente secreta da melhor qualidade.

quinta-feira, 24 de janeiro de 2008

O Desaparecimento

Tela de Ciruelo Cabral



Durante muito tempo, naquela vizinhança, um fato estranho aconteceu. Os gatos começaram a desaparecer como por encanto. Depois de mais ou menos um ano, nem mesmo um gatinho magro, para contar a história. E assim, aquelas pessoas que amavam os felinos, começaram a ficar triste e entraram em profunda depressão.

Conceição era uma das que adorava os bichanos. Gostava mais deles do que das pessoas. Ela tinha verdadeira adoração por gatos e só em sua casa tinha quinze deles. Tinha, pois dia após dia, eles foram desaparecendo sem que ela pudesse fazer alguma coisa.

Um dia, quando ela voltava de uma ronda a procura dos gatos, viu uma cena muito estranha. Sentadas, na varandinha de uma casa, três irmãs idênticas, rindo pra valer, enquanto tomavam chá. Pareciam possuídas por um encanto. Seus rostos transbordavam de alegria. Conceição reparou que os dedos de todas elas eram azuis e estavam tão enrugados que mais pareciam maracujá velho. Ela, cumprimentou as senhoras, e perguntou:

- Por acaso, as senhoras não teriam visto uns gatos vagando pelas redondezas?

Quando falou em gatos, as três senhoras, começaram a rir de tal forma, que Conceição ficou desconfiada. Saiu de lá, meio sem graça, mas não se deu por satisfeita. Esperou um momento oportuno para espiar aquela casa. Deu umas voltas no quarteirão, e quando já estava desistindo, viu as três saindo pelo portão, indo na direção de uma confeitaria que ficava ali perto. Por certo iriam se empanturrar de doces.

Aproveitando a oportunidade, subiu a escadinha até a varanda e forçou a porta. Nem precisava ser forçada, pois estava destrancada. Entrou sorrateiramente na sala, com muito medo delas voltarem. Deu uma boa olhada por ali e foi até a cozinha, não encontrou nada e resolveu subir as escadas. Foi logo no primeiro quarto que teve a surpresa. Havia uma estante repleta com potes de vidros, cheios de um líquido azul e em cada um deles, um gato. Saiu de lá pulando os degraus de dois em dois, batendo em seguida a porta de frente. Correu pela calçada em direção a sua casa.

Pegou imediatamente o telefone para ligar para Dolores, uma amiga, que também estava empenhada na captura dos gatos. Quando contou o acorrido a ela, só ouviu um grito:

“Estou indo para a sua casa, me espere.” Depois de pensarem na barbaridade que as irmãs malucas estavam fazendo com os gatos, resolveram ligar para a Sociedade Protetora de Animais para pedir ajuda. Foi Dolores quem ligou. Explicou o motivo de estarem preocupadas e que desconfiavam de três irmãs que moravam numa casa do bairro e que eram muito suspeitas.

A moça que atendia falou:

-Três irmãs?

-Sim, elas são sinistras!

-Mas isso não caracteriza crime.

-Acontece que minha amiga Conceição viu coisas estranhas acontecendo por lá.

-A senhora poderia ser mais clara?

-Tudo bem! Ela viu que os dedos delas são como se vivessem dentro d´água.

-Mas, minha senhora, e onde está escrito que viver dentro d´água é proibido?

-Bem, acontece que a casa está cheia de vidros com gatos dentro!

-O quê? Gatos em vidros? Como foi que ela viu esses gatos?

-Bem! Ela entrou na casa quando as moradoras não estavam.

-Isto caracteriza invasão de propriedade. Aconselhamos que vocês se organizem e contratem um advogado.

-Advogado?

-Naturalmente! Só com um mandado policial é que se pode entrar numa casa para averiguar esses delitos suspeitos.

Dolores contou a conversa que teve com a Sociedade Protetora dos Animais e a Conceição não gostou nada do que ouviu. Disse a amiga que tudo aquilo não estava certo, que deveriam fazer alguma coisa por elas mesmas, mas, sem chamar muita a atenção, pois tinham medo que as irmãs desconfiassem e sumissem com os bichanos.

Combinaram de invadir a mansão no Dia de Finados. Vestiram-se de preto, puseram um enorme véu de tule na cabeça e saíram pelas quebradas fingindo ser duas beatas. Levavam um porrete enrolado nas saias e um apito. Isso era para o caso de algum engraçadinho se meter a besta com elas. Ficaram de tocaia na esquina da mansão, só esperando a hora das irmãs saírem.

Ficaram quase a tarde inteira naquele sufoco, uma encostada na outra. Quando a noite começara a despontar, eis que o portão da casa das três irmãs se abre, fazendo aquele som de portão de cemitério mal assombrado.

Elas deram um pulo de susto. Já não agüentavam mais de tanta dor nas costas. Pegou cada uma o seu porrete e atravessaram a rua em direção ao destino. Pareciam dois urubus. Entraram pelo portão sem fazer o menor barulho. Foram até a porta e forçaram a maçaneta, mais a porta nem se mexeu. Conceição falou para Dolores:

-Desta vez as malucas fecharam a porta.

Dolores respondeu:

-Quem sabe, vão demorar a voltar desta vez. As duas deram a volta pela lateral da casa e viram a portinha do porão com o ferrolho sem o cadeado. Era muita sorte. Não pensaram duas vezes e entraram por ali.

Subiram as escadas e foram diretamente em direção ao quarto da estante maldita. Nem bem entraram no recinto e eis que a clarabóia que ficava no teto se abre, mostrando uma visão dantesca: lá no alto, um enorme pássaro preto com a braguilha aberta mostrando pra quem quisesse ver, uma coisa que mais parecia um sapo. Era um espetáculo estranho, como se quisesse nos dizer que ali tinha um “cabra macho” pra defender os vidros.

Para entender a aparição precipitada do pássaro negro, temos que voltar ao dia anterior, quando Dolores recebeu a ligação de Conceição. Foi logo depois que Conceição voltou da casa das irmãs, com a novidade dos gatos nos vidros. Dolores, para não incomodar o marido ciumento, se fechou na copa com o telefone. Falava aos sussurros, respondendo ao que Conceição lhe perguntava. Acontece que o marido de Dolores estava de orelha grudada na porta, tentando pescar alguma coisa da conversa. Pescou somente a hora e o local do encontro e, morto de ciúmes, quis fazer uma surpresinha aos amantes. Sim, aos amantes, pois pensava ele que Dolores combinava um encontro amoroso na mansão das três irmãs.

Vai daí, que resolveu se vestir fantasiado de "Pássaro Negro". Foi a uma loja de aluguel de fantasias e escolheu aquela “belezura”.

Bem, a visão daquele pássaro fez as duas retrocederem. Foi um susto tão grande que as duas ficaram estateladas, sem fala, completamente em choque. Aquilo foi “de cinema”: A sala às escuras e, de repente, a clarabóia se abrindo fazendo a luz da lua entrar na sala. O vulto do mancebo vingador, vestido com aquela roupa ridícula, deu a entender às duas que já estavam completamente sem fôlego, que se tratava de um enorme pássaro infernal mandado pelas sinistras irmãs.

Conceição que era extremamente "pé no chão", puxou Dolores para fora da sala e desceram as escadas sem olhar para trás. Dolores queria gritar, mas estava completamente muda de pavor. Quando já estavam na rua, falou aos soluços a Conceição.

- Você viu aquilo? Meu Jesuscristinho, era um pássaro ou o capeta?

- Acorda, mulher! Você não viu que era um tarado!

-Não!! Como você sabe?

-Pois eu vi o sujeito querendo mostrar os documentos!

-Mas que documentos mulher?

-Um sapo, ele tinha um sapo nervoso nas mãos.

-Ai meu santinho! Valei-me Nossa Senhora das Virgens.

-E quem é virgem aqui, cabeça de melancia?

Aquela investida na casa das irmãs esquisitas não deu em nada, pois os gatos continuavam desaparecidos.

Bem! Isso foi só até a Conceição resolver, ir sozinha, se esconder durante uma noite inteira na sala das estantes sinistras. Aqueles vidros com líquido azul e os gatos paradinhos lá dentro como se estivessem mortos, incomodavam demais. Ela entrou na casa durante a noitinha que parecia estar vazia. Subiu as escadas no maior silêncio e se escondeu atrás das cortinas de veludo, escuras e pesadas. Percebeu que, se ficasse bem quietinha, ninguém perceberia sua presença. Ficou ali, pensando como faria para ver alguma coisa através do tecido espesso, foi quando viu, que uma parte da cortina estava descosturada. Foi por ali que ela pode ver as irmãs entrando na sala e indo direto aos vidros.

Elas riam de alegria e balançavam as bundas gordas. Conceição pensou que aquilo deveria ser o começo de um ritual. Dançavam chacoalhando todo o corpo numa alegria contagiante.

Até que ouviu uma delas comentar:

- Desta vez ficaremos ricas!

O que as outras concordaram, dando gargalhadas.

Conceição estava gelada, pois não tinha a menor idéia do que aquelas doidivanas estavam aprontando. Foi quando elas vestiram aventais e retiraram um dos gatos do vidro. Puseram o bichano estendido numa mesa e passaram um secador de cabelos em seu corpo, fazendo que os pêlos secassem. Depois pegaram uma maquina de tosar e sem dó nem piedade rasparam todo o gatinho. Fizeram isso com os setenta vidros. Foi nessa hora que se deu conta de quantos gatos havia no bairro e o motivo delas terem os dedos todos enrugados e azuis. Elas não tiravam as mãos do líquido azulado. Era, põe gato, tira gato, a noite inteira.
Essa brincadeira, durou até o dia seguinte. Conceição viu que elas puseram todo aquele pêlo lisinho e sedoso em sacos e etiquetaram tudo dizendo:

-Agora é só chamar o dono da fabrica de pincéis. Com essa quantidade de pêlos, eles farão milhares do mais caro pincel de pêlo de gato.

Conceição pensou com seus botões:

“Então era por isso que os gatos estavam sumindo! Caracas!”

Estava imaginando como ficaria a cara de Dolores quando soubesse de tudo isso que acabara de assistir. Foi quando viu uma cena espantosa. Os gatos foram se levantando um a um da mesa e pulando no chão. Eles desciam as escadas, ou saiam pela janela como se nada tivesse acontecido com eles.

Todos voltaram para a rua, peladinhos. Cada um, direto para suas respectivas casas.

Conceição ligou para Dolores, que já estava preocupada com o sumiço da amiga. Quando ela soube do ocorrido, ficou sem fala. Não pôde estar com a amiga na investigação, pois tinha descoberto que o pássaro negro era o seu marido ciumento querendo pegá-la com um amante que não existia. Ela deu a ele uma noite erótica, com direito a todo tipo de peripécias. Dolores tinha ficado com pena do marido ciumento e resolveu esquecer um pouco a história dos gatos, vai daí que a Conceição foi sozinha à mansão sinistra.

Quando os gatos foram chegando em suas casas, pode-se ouvir por todo o bairro, gritos de espanto e alívio. Conceição teve que explicar o ocorrido, na Sociedade Protetora dos Animais e as irmãs foram intimadas a comparecer na delegacia. Como não conseguiram provas para uma história tão mirabolante, elas foram dispensadas. Conceição que não se conformava com tudo aquilo, foi tirar satisfações na casa delas.

Assim que chegou a casa, foi logo apertando a campainha. Pensou que teria um bate boca com as irmãs, mas não, foi muito bem recebida pelas três.

Diante daquelas senhoras, perguntou:

-Por que vocês colocaram os gatos em vidros com aquele líquido azul?

-Ora querida! Aquele líquido era um amaciante de pêlos e eles não sentiram nada, pois estavam anestesiados e com os narizinhos fora da água. O susto deles, provavelmente, foi só quando se viram pelados. Falaram isso e caíam numa gargalhada de chacoalhar as panças.

Disseram à Conceição:

-Não se preocupe, querida, pois os pêlos crescerão novamente.

Conceição saiu de lá sem saber o que pensar. Falava com os seus botões:

“Dá para acreditar numa história dessas?”

Fim

sábado, 19 de janeiro de 2008

O Ladrão

Tela de Tadeusz Makowski


Meu nome é Yliash Zaks e moro em Mazel Tov, pequena aldeia judaica, esquecida nos confins da Sibéria.

Uma vez por semana, vou até Omsk, centro comercial que abastece todas as aldeias do condado. É uma boa caminhada. São duas milhas de suor e desconfiança, pois a estrada toda, é infestada de ladrões que se esgueiram nas quebradas, à espera dos aldeões que trafegam por ali com dinheiro e mercadorias.

Este fato aconteceu quando o meu filho Ytzak estava completando o seu décimo terceiro aniversário e faríamos uma grande festa para comemorarmos o seu Bar-Mitsvá. E por isso, eu estava ansioso para ir à cidade fazer compras para a festa. Era um dia muito especial para todos. Rachel, minha esposa, pediu-me para comprar carne de rena e farinha de matzá para poder fazer todas as delícias que uma “ídichi mama” sabe fazer.

Quando eu já voltava para a aldeia, com meu farnel às costas, vi, ao longe, algumas luzes que se moviam. Parei para observar melhor aquela serpente luminosa a dançar na neve. Ela aproximava-se rapidamente do lugar onde eu estava. Comecei a ficar receoso. Quando vi que todos estavam de preto, com a cabeça coberta e com velas nas mãos, meu coração disparou como o tambor do Rabi quando vê a sacola de coleta se enchendo, na Sinagoga.

O que era aquilo? Não pensei duas vezes para subir numa árvore que estava logo atrás de mim. Aquela procissão sinistra, foi rodeando a árvore em que eu estava e eu fui ficando cada vez mais horrorizado.

Começaram a rezar e a chorar como se eu estivesse morto. Eu tremia tanto que, se não fosse por uma menina gritar, eu ainda estaria anestesiado, completamente paralisado ali.

A menina falou: “O de baixo está bem feio com esses olhos arregalados, mas o de cima... credo! Que horror!”.

Foi quando olhei para cima e vi um cossaco com meio metro de língua fora da boca, toda azulada. Fora enforcado numa corda e dependurado naquela árvore.

O meu susto foi tão grande que despenquei lá de cima, causando a maior confusão. Foi vela voando para todo lado, um corre-corre infernal.

Aquela fila de urubus se desfez, salpicando o campo de neve de pontos pretos e velas riscando o céu de luzes.

Quando eu cheguei em casa, soltando os bofes pela boca, a Rachel já sabia da história. Isso é muito comum em minha pequena aldeia. Toda novidade deixa de sê-la em minutos. Contou-me, morta de medo, que um cossaco, ladrão de Sinagogas, tinha voltado dos mortos e andava atacando os aldeões da comunidade.

Na Sinagoga da aldeia fizemos o Bar-Mitsvá de Itzak a portas trancadas. A sacola da coleta, ficou, o tempo todo, embaixo do traseiro gordo do Rabi apavorado. Para não estragar a novidade e passar por covarde, não contei nada a ninguém.

Fim

quarta-feira, 9 de janeiro de 2008

Quem Semeia Vento...

Tela de Luis Royo


Eu estava estudando como louco para um concurso público que, se ganhasse, poderia
ter um tempo maior para as coisas que realmente gostava de fazer. Estava empenhado nessa nova jornada, mas precisava me garantir com algum dinheiro todo mês. Fui até a casa de um amigo, perto dos Campos Elíseos, buscar uns livros emprestados. Foi quando vi um anúncio pregado na porta de uma floricultura - “PRECISA-SE DE AJUDANTE GERAL”.

Pensei - quem sabe não fosse um serviço tranqüilo -, que eu poderia ter tempo para estudar entre uma entrega de flores e outra. Decidi me candidatar.
“Perfume de Gardênia”, este era o nome da floricultura. Ficava em um sobrado de estilo inglês, bem na esquina da rua principal com uma discreta rua lateral.Tinha duas entradas, uma porta grande na frente da loja e outra pequena e discreta que dava para a ruazinha. Entrei pela porta da frente que foi logo me anunciando com o toque de um sino.

Atrás de um vaso de lírios, surgiu um delicado rosto de mulher. Alta, com enormes olhos verdes que brilhavam num rosto limpo e suave e uma enorme cabeleira vermelha que contra a luz parecia um astro incandescente. Tinha uns trinta anos e era linda como um anjo pode ser. Olhou-me quase tímida, deixando seu olhar perder-se entre as flores e o horizonte.

Era Nadia, dona da loja; aceitou-me como seu funcionário depois de uma longa conversa e telefonemas questionadores. Na manhã seguinte apareci com todos os documentos, preenchi uma ficha e comecei um trabalho, fácil, mas que tomava quase todo o meu tempo.

Aprendi rapidamente o fluxo da loja. Cuidava de repor as flores e o estoque das embalagens, fazia entregas nas proximidades do bairro e recebia o caminhão da Holambra, duas vezes por semana. Nadia fazia os arranjos, decorava a loja e cuidava da parte bancária. Atendia as pessoas com tanta delicadeza que eu não saberia dizer se compravam as flores pela beleza delas ou de Nadia.

Ela morava na parte de cima do sobrado e usava a porta lateral para entrar na casa. Tinha uma filha de dez anos, chamada Sônia, que ficava sempre em seu quarto quando não estava na escola. E uma tia que lembrava uma pintura renascentista.

Nadia era um tipo introvertido. Quase sempre calada e cabisbaixa, perdida em seu mundo interior. Muitas vezes eu via esse mundo transbordar de seus olhos. Disfarçava para não constrangê-la, mas aos poucos fui me envolvendo naquele mundo obscuro e submerso num lamaçal de tormentas.

Um dia, fui pego de surpresa por um vento que quase derrubou a porta principal. Em seguida, surgiu um senhor de uns cinqüenta anos, porte atlético e olhar investigador tapando a porta toda com seu corpo enorme. Parecia um lobo farejando sua presa. Nadia que estava atrás de uns vasos, imediatamente se abaixou, esgueirando-se silenciosamente para a saleta lateral, onde se estocavam as embalagens. Ele perguntou por Nadia e eu, percebendo a situação, disse que ela tinha saído e não voltaria mais naquele dia. Ele olhou-me de cima a baixo com ar de desprezo e saiu batendo os pés no ladrilho.

Nadia surgiu lívida e me olhou como um raio de luz a perder-se no ar. Vi a luz dançar-lhe nos olhos. Estava pálida como a água à sombra dos jarros de lilases e tremia como uma menina aterrorizada.

Naquele dia selamos nossa amizade e ela começou a me contar sua história de medo.
Nadia foi descrevendo aquele senhor com cara de predador como se fosse um animal possuído delo demônio. Era tanta dor em suas palavras que mal podia imaginar que ela falava do próprio pai. Que bastava vê-lo, para tornar-se uma torrente incerta, cujas águas transbordavam do leito. E como um vento forte que entra pela janela à noite, derrubando tudo, o diário de Nadia foi soprado, espalhando suas folhas para que eu pudesse conhecer o seu segredo. E cada página que ele virava eu descobria uma história mais assombrosa do que a outra.

O pai dela era coronel do exército.Tinha atuado esplendidamente nos porões da ditadura militar em 1968. Tinha sido um dos mais sanguinários torturadores daquela época negra.
Nadia tinha somente dez anos quando ele a levou para assistir “o circo”. Era assim que ele chamava a tortura infringida àqueles heróis revolucionários. Ele dizia a Nadia que não eram pessoas, mas sim, bonecos desgovernados, precisando de lubrificação para falar e se mexer novamente. O nome do desgraçado era Ruffus, até o nome dele dava medo.

Quando ela fez quinze anos, ele entrou em seu quarto, fechou a porta e apagou a luz. Foi quando sua vida se tornou escura como a mais tenebrosa das noites. A mãe dela era uma mulher frágil e impotente. Quando percebeu o que acontecia a filha, não suportou o nó que apertava sua garganta. Deu um jeito no destino, tomou um frasco inteiro de soníferos para não acordar mais.

Nadia passou a servir o pai como mulher e aos dezenove anos engravidou. Ruffus fez de tudo para que ela abortasse. Dizia que seria uma criança retardada e doente e que não daria sossego a ele. Quando Nadia estava entrando nos nove meses de gravidez, ele encostou-a na parede e disse alto e claro que se fosse uma menina, seria dele também, assim como ela estava sendo.

Nadia telefonou para a única irmã de sua mãe, Ruth e conversaram por longo tempo, combinando uma maneira de socorrer aquele bebê. E numa noite, quando o seu pai já estava dormindo, ela juntou suas coisas e fugiu. A tia já estava preparada, tinha vendido a casa e comprado o sobrado que tinha sido a floricultura de uma senhora que estava se aposentando.

Nadia soube que a mãe tinha juntado um bom dinheiro. Escondido de Ruffus, ela e a tia planejaram o futuro de Nadia. Como o sobrado tinha uma boa edícula a tia se acomodou nela, ficando assim, perto da sobrinha. A tia foi quem fez o parto dela, ali mesmo, no sobrado. Conheciam as atrocidades de Ruffus e sabiam que se fossem para uma maternidade ele saberia, pois tinha informantes por todo canto.

Sônia nasceu linda e com saúde para a felicidade de Nadia. Agora ela estava com dez anos. Nadia não descuidada da filha nem por um instante. Levava e buscava a menina na escola e onde ela estivesse a mãe era sua sombra.

Um dia eu estava do lado de fora da loja pendurando um cartaz, quando um vento surgiu tão forte que fez voar o cartaz para longe.Eu me desequilibrei e cai da escadinha, dando de cara com dois coturnos. Era o mesmo sujeito que fez Nadia se esconder uma vez.

Perguntou por ela e eu quase gaguejei, dizendo que não estava. Ele virou-se num salto em direção à escada, subindo como um louco.

Nadia não estava, pois tinha ido buscar Sônia na escola. Ruffus ficou lá em cima em silêncio.
Nadia entrou na loja com Sônia que tomava um sorvete de casquinha. Eu estava atendendo um rapaz que comprava rosas para a namorada. Gritei para que Nadia esperasse. Ela virou-se para mim, mas Sônia subiu as escadas correndo. Eu não precisei dizer nada. Ela me olhou apavorada e se virou para a escada gritando o nome de Sônia.

Ruffus apareceu no alto da escada segurando Sônia pelo casaco. Ela tentava se desvencilhar de suas mãos, mas sem muito sucesso. Nesse instante, a porta principal se abriu com uma lufada de vento, derrubou alguns vasos e o sorvete das mãos de Sônia. Ela se soltou das garras de Ruffus que na tentativa de pegá-la novamente, pisou no sorvete caído e foi escorregando escada a baixo.

Rolou como um pacote desgovernado, parando com num baque seco e fatal, batendo a fronte na quina de um pedestal de mármore que apoiava grandes vasos de crisântemos. Enquanto ele caia, o vento carregava para longe o eco de sua voz até que tudo ficou calmo e em silêncio. O ar agora era uma leve brisa perfumada.

Foi o fim de Ruffus e o começo de uma vida nova para aquelas duas mulherzinhas adoráveis. Sim adoráveis, porque eu me casei com Nadia e adotei Sônia como filha.
Nadia está grávida e a tia Ruth continua cuidando de Sônia.

Ah! Sobre o concurso público? Não precisei mais.

FIM

terça-feira, 1 de janeiro de 2008

O Fantasma

Foto de Gregory Crewdson


Após um jantar na casa de uns amigos, de repente, começou uma conversa sobre assombrações. Naturalmente, muitos disseram não acreditar em fantasmas, mas vi quando meu amigo Julio olhou para Helena que abaixou a cabeça. Intrigada e curiosa eu perguntei:
- Então, temos um caso de fantasmas por aqui?

Todos da sala se viraram em direção a Helena, que ficou visivelmente vermelha.

-Julio! - disse ela em tom de censura. Como é que podes dizer uma coisa dessas!...
-Vamos, vamos, meu bem! Estamos entre amigos. Conte a tua história. Que mal há nisso?

Todos nós, a uma só voz, insistimos com Helena para que nos referisse o que sabia.

-Bem, disse ela, por fim. E pôs-se a contar uma intrigante estória:

-Há dois anos, quando estive visitando minha amiga Mônica que mora nos Estados Unidos, notei que toda noite tinha o mesmo sonho: passeando pelo campo, avistava ao longe uma casa amarela, rodeada por um bosque de ciprestes muito altos.

Em sonhos, eu me sentia atraída pela casa e ia até ela. Um muro pintado de branco cercava todo o bosque. E todo o caminho que levava a casa era coberto por flores: anêmonas, lírios, margaridas... O caminho terminava na entrada; diante dela havia um círculo de glicínias lilases.
A casa tinha um barrado de pedras, as paredes eram pintadas de amarelo, a porta era muito original, toda esculpida de pequenas fadas e borboletas; e para se chegar nela entrava-se por uma aconchegante varanda ladrilhada de lajotas terracota.

Eu queria visitar a casa, mas ninguém atendia aos meus chamados. Batia angustiadamente, gritava, gritava, até despertar.

Esse mesmo sonho se repetiu todas as noites, durante meses com precisão e fidelidade impressionantes. Eu tentava explicar os porquês de sonhar a mesma coisa tantas vezes, e nada. Devia ter visto aquela casa na infância, aquelas árvores e, sobretudo, aquela porta.

Enfim era um mistério; falei com minha amiga Mônica sobre os sonhos e ela, muito impressionável, ficou vários dias me crivando de perguntas. Um dia ela me convidou para irmos até uma cidadezinha perto de onde ela morava. No caminho de volta, enfrentamos uma tempestade de areia nunca vista. Mônica quase que perde o controle do carro que balançava freneticamente. Eu estava sem fala; aquilo era assustador, nunca tinha visto nada parecido. De repente, não sei como, o carro deu uma guinada e saímos da estrada principal. A tempestade de areia parou abruptamente. Olhamo-nos, estarrecidas. Senti uma emoção semelhante à que experimentamos ao encontrar depois de longa ausência as pessoas ou lugares bem amados.

Embora nunca tivesse estado naquele lugar, identifiquei a paisagem. Os ciprestes, os canteiros floridos. Através das folhagens adivinhei “a casa”!...

Compreendi que encontrara a casa dos meus sonhos. Tudo igual, o mesmo caminho de flores, o bosque de ciprestes. Entrei por ele. No fim deste caminho, vi o círculo de glicínias, a varanda de lajotas terracota e a porta esculpida!

Quase tropeçando, fui direto à porta de entrada, bati freneticamente. Mônica chegou em seguida tropeçando em um vaso de antúrios, e quase se machuca.

-Pelo amor de Deus, Helena, você parece que está possuída, nem me esperou e agora está esmurrando essa linda porta! Conhece essa gente?
-É o que vou ver agora. Sabe aquele sonho que te falei?
-Sim, e daí?
-Achei a casa!
-Não me diga!

Continuei batendo. Receava que a casa estivesse vazia, e então o mistério ficaria sem solução. Nesse momento, porém, ouvi um barulho no interior da casa. Alguém virava a chave. Logo depois a pesada porta se abriu e um velho de profundos olhos azuis surgiu no limiar.

Ao me ver abafou um grito e recuou. Os olhos estavam esbugalhados de pavor. Eu também me assustei naturalmente, pois não fazia a menor idéia do que se passava e perguntei:

-Posso saber porque eu causo tanto espanto? E quem é o senhor? O dono da casa?
-Não, não, sou o guarda contratado para tomar conta da propriedade.
-E será que o senhor poderia chamá-los para mim?
-Impossível, eles não moram mais aqui, fugiram todos, não suportaram mais o que sucedia a eles.

Ele falava, mas percebi em sua voz, muito medo. Mantinha uma boa distancia de mim, como se quisesse se proteger. E quem estava ficando apavorada era eu. A Mônica estava dura como um soldadinho de chumbo, chumbada no chão e dava pra ver nitidamente que tremia mais que eu.

-Mas que há consigo, sou tão feia assim que lhe causo tanto espanto?
-Não, senhora! É que...
-Fale! Porque eles fugiram?
-A casa estava assombrada...
-Assombrada?
-Sim... Durante semanas e semanas, todas as noites surgia um fantasma...
-Um fantasma? Que absurdo! O que é que o senhor está dizendo? Quem é que acredita em fantasma nos dias de hoje?
-Eu também não acreditava!

Ele falava, mas não tirava a mão da maçaneta da porta, como se estivesse se prevenindo de algo.

-O senhor viu esse senhor fantasma?
-Sim era “uma fantasma”: era mulher.
-Mas que tolice.
-Não diga isso madame! Não! Principalmente a senhora não pode dizer isso, porque... Quem aparecia aqui todas as noites era... A senhora mesma!

Fim