.

terça-feira, 22 de julho de 2008

O Cordeiro

Tela de Zdzislaw Beksinski




Não sou o que se pode chamar de “um bom homem”. Fui marcado pela crueza de uma vida torpe. Ninguém me deu nada de nada. Fui escarrado nesta vida de merda e aqui fiquei na solidão dos meus dias. Não pedi nada e nem quero nada. Só peço que me deixem em paz. Não pensem que estou choramingando piedade, para convencê-los do que quer que seja. Pensem o que quiserem! Cada um tem sua opinião. Escrevo porque ouvi dizer que quando escrevemos liberamos de nós o inferno que nos consome. Isso foi dito por algum terapeuta idiota, pois, por mais que eu escreva, ainda sinto o rastro de uma sombra que se cola em mim. Sinto-me um bicho rastejante. Já quis por fim em tudo isso. Tentei pular no mar, atear fogo às roupas, tomar veneno, estourar os miolos, mas de nada adiantaria se já sei de antemão ser eterno. Quem me dera explodir virando poeira cósmica. Sumir, desaparecer no ar. Estou aqui, com o coração retumbando em minha inconsolável angústia. Não sei por quê, aliás, ainda tento entender minha perdição. “Recordações”, é tudo o que tenho nesta vida, por isso escrevo tanto. Se ao menos com isso eu pudesse resgatar o passado, ao menos entendê-lo. Há muito, deixei a hipocrisia religiosa. Não vou agora me apegar aos santos. Ninguém pode salvar-me, nem mesmo eu ou você. Sei que passei dos limites, não consentindo que se respirasse a minha volta.


Quero esclarecer alguns pontos: Quando eu disse que não queria ter filhos, era real. Porque todo mundo tem que ter filhos? Eu não, nunca quis! Não queria nada que fosse meu. Viria com certeza, um dia, o arrependimento de tê-los tido. Um pedaço que mim vagando por esse mundo terminal. Alguém que andasse por aí, com a mesma razão minha de ser. Não e não! Quando soube de sua existência, ele já era, já tinha nascido. E eu não o quis. As coisas se encaminharam a minha revelia. Ela, a mãe, não pediu a minha opinião. Deixou que ele nascesse e pronto. Este filho foi à coisa mais sufocante que me aconteceu. Asfixiava-me os dias. Não conseguia mais ler, escrever, pensar. Fui sendo invadido por uma angústia negra, pesada, que acabou me levando a loucura.


Naquela manhã, quando estivemos passeando pelo penhasco e ele escorregou. Vi-o agarrando-se àquele galho que saia das rochas, lisas de musgo molhado. Sua mãozinha branca, lentamente escorregava e seus olhos suplicantes me pediam não sei o quê. Não era para que eu o salvasse dali, era outra coisa mais importante que isso. Talvez, que o salvasse de si mesmo. Não ouvi de seus lábios um sussurro sequer. Estabeleceu-se entre nós, uma certeza: Eu era um lobo predador e ele um cordeiro a ser imolado. Um silêncio estranho bailou no ar, instalando-se sorrateiramente em meus tímpanos. Foi o único momento, em toda a minha vida, que senti a calma em toda a sua plenitude. Ele se soltando daquele galho, me olhando tranqüilo, impassível. Não consegui interromper essa quietude para tentar agarrá-lo, nem me foi penoso vê-lo rolar o penhasco sumindo entre as pedras. O silêncio ficou no ar, como uma dádiva celestial.


Vocês devem estar achando que sou desumano, não é? Pois que pensem! Impingiram-me alguém que não era para ser. Não comigo! Eu não queria nada. Só queria estar só, como uma folha solta ao vento, sem o peso humano à carregar. Agora estou totalmente contaminado por essas lembranças que teimam em se proliferar em meus dias.


Ontem eu vi um vulto. Foi muito rápido, mas eu vi! Era ele, menino, como no último dia que estivemos no penhasco. Olhou-me de relance, parecia querer dizer algo. Quando o encarei, dissolveu-se entre as folhas. Não, não existe mal entendido algum! Era o meu menino, numa camada fina de neblina que de repente se dissolveu.


Vocês acham que isso é por causa do remorso? Nunca pensei em remorsos, não penso em nada, apenas vivo o meu silêncio.


Amanhã vou até o penhasco. Vou descer até onde ele caiu. Talvez, vendo-o novamente, eu consiga captar um pouco daquele átimo de paz que vi saindo de seu olhar.

sábado, 12 de julho de 2008

A Casa da Colina

Tela de Jacek Yerka



Giacomo Splendore era meu amigo. Trabalhávamos juntos em sua firma de projetos arquitetônicos em Milão, eu como engenheiro civil, e ele, arquiteto. Ele queria mudar o mundo com sua arte assumindo uma posição aparentemente conservadora. Defendia a retomada das tradições que foram sufocadas por abstrações desumanas; projetos modernos, que se prestam mais a acelerar o mercado esquecendo-se dos problemas contemporâneos. Sua proposta estava voltada aos modelos da cidade antiga, combinando-os a recursos técnicos propiciados pela modernidade – dizia que a arquitetura devia dar respostas aos problemas dos homens, sobretudo aos problemas das cidades. Ele nascera na velha Sicília, numa cidade de arquitetura medieval, chamada Castelmola. Talvez por isso sua preocupação em conservar o velho jeito de olhar o mundo.

Seus pais, Archebaldi e Prisciliana, tinham uma plantação de oliveiras que se mantinha produtiva, desde a época de seu tataravô. Era uma tradição familiar que fazia questão de manter nos moldes antigos. Mostravam total preocupação com a qualidade das azeitonas e do azeite. Quem cuidava dos olivais era um filho adotivo de nome Severo. Archebaldi achou-o revirando lixo, quando embarcava caixas de azeite no porto de Palermo. Perguntou aos moradores da região se alguém conhecia a mãe do pequeno, mas não conseguiu saber nada, nem do menino, nem dela. Ele tinha mais ou menos cinco anos e só sabia que se chamava, Severo. Não querendo cometer uma injustiça, carregou o pequeno para viver com a família.

Giacomo e sua irmã, Isobel, adoraram esse menino que chegou para somar em suas brincadeiras, mas Severo era muito quieto, mais parecia um bichinho. Foi crescendo ali, no meio das oliveiras, sempre sozinho, rodeado de sombras. Não conseguiu manter laços de ternura com ninguém da família, e não quis estudar como os irmãos adotivos. Isobel tinha feito faculdade de música e tocava cielo na catedral da cidade. Também tinha uma pequena fábrica de azeites aromáticos para massagem e sabonetes de azeite e ervas silvestres. A mãe de Giacomo, dona Prisciliana, era uma extraordinária mulher siciliana. Além de fazer todas as delícias típicas da região para manter o calor e a união da família, ajudava Isobel a cuidar das embalagens da fábrica.

Quando Giacomo foi para Milão abrir a firma de projetos, Severo se fechou de vez. As coisas na casa da colina, como era conhecida começaram a modificar. Giacomo recebia de vez em quando cartas de Isobel alertando-o quanto ao comportamento estranho de Severo. Ele se fechara numa concha depois da partida do irmão, não permitindo mais que Isobel fosse até as lojas das cidades atender sua clientela. Milão não fica perto da Sicília, assim sendo, Giacomo não podia resolver essas coisas que aconteciam por lá como gostaria. Ele escreveu umas vezes a Severo, mas nunca obteve uma resposta sequer. Escreveu uma vez ao pai alertando-o quanto ao comportamento de Severo para com Isobel. Uma semana depois recebeu a notícia da morte de Archibaldi.

Fui com ele ao velório em Castelmola. Nesse dia, conheci sua família. Isobel era linda e morena, tinha um jeito meigo e um sorriso deslumbrante, apesar da tristeza do momento. Ela parecia feliz em ver o irmão. Confesso que me encantei pela pequena. Severo era truculento, talvez por seu trabalho nos olivais. Tinha uma cara marcada de vincos, pele queimada pelo sol, parecia ter mais idade que a que realmente aparentava. Mal me cumprimentou, virou as costas e puxou Isobel para um canto da capela, onde todos estavam velando o velho Archibaldi.
Dona Prisciliana, muito quieta, olhava a cena triste e pensativa. Giacomo, depois do enterro, foi falar com o irmão. Eu olhava de longe.

- O que está acontecendo por aqui, Severo?
- O que você quer dizer com isso?
- As coisas mudaram depois de minha ida à Milão. Parece que tem muita gente infeliz nesta casa!
- Conversa de quem não tem nada o que fazer. O pai já não está mais aqui para dar suas ordens e eu sou o encarregado de tocar a produção de azeite. Isobel pensa que a vida é um mar de rosas, só quer estar de uma cidade a outra com suas besteiras perfumadas.
- Mas, que eu saiba, essas besteiras são o trabalho dela!
-Que trabalho! Aquela fabriqueta é um pretexto para ela se debandar por aí. E com cielo é a mesma coisa! Quem precisa ouvir aquela porcaria.
- Essa fábrica pode crescer e ser uma maneira dela se sustentar. E tocar cielo é uma arte e ela tem que tocá-lo, pois essa é a sua vontade, ela ama a música! O papai nunca nos proibiu de nada, nem a você. Se não tens estudo, não foi por culpa nossa, foi escolha sua!
- Bobagens, eu não preciso dessas bobagens! Acabou o interrogatório? Se acabou, me dê licença, pois tenho muito o que fazer.

Vi quando o Severo virou as costas, deixando Giacomo desconsertado. Depois desse confronto, meu amigo foi consolar sua mãe. Fez-me um sinal para que eu fosse junto com ele. Sua mãe estava com os olhos vermelhos, tinha no semblante uma tristeza infinita. Abraçaram-se.

- Mamãe, o que aconteceu com o papai? Até agora eu não entendi direito!
- Pois é, depois que você escreveu a última carta para o papai, ele me disse que aquilo tudo que estava acontecendo, os desmandos todos de Severo para com Isobel estavam na hora de terminar. Severo estava morrendo de inveja de você e ciúmes de Isobel. Foram até o penhasco no fim da colina averiguar um deslizamento de pedras. Depois disso, Severo retornou com o seu pai nas costas, dizendo que ele havia sofrido uma queda; justo Arquibaldi! Giacomo, meu filho acho que alimentamos uma cobra nesses anos todos!

Depois do enterro, voltamos à Milão. Giacomo deixou com a mãe, uma promessa: Dali em diante, visitá-los mais vezes. Talvez, tendo o irmão, sempre presente, Severo se intimidaria em executar suas loucuras. Acontece que quando chegamos à Milão, encontramos vários clientes querendo projetos para ser feitos. Caímos de cabeça na prancheta e o tempo foi passando. Depois de seis meses de intenso trabalho, uma manhã, Giacomo recebe um telegrama dizendo que sua mãe falecera. Aquilo foi um baque para meu amigo, há tempos não o via em tal estado de prostração. Novamente fui com ele à casa da colina.

Severo estava mais frio do que nunca. Parecia o dono do lugar e de Isobel. Quando me viu, ficou lívido, de seus olhos chisparam faíscas de ódio. Giacomo estava desolado, não entendia como uma mulher como sua mãe pudesse em tão pouco tempo, depois da morte do seu pai, morrer da mesma maneira que ele; despedaçada no fundo do penhasco. Severo foi que a trouxe lá de baixo, assim como fez com o pai.

Isobel estava diferente, tremia e chorava, parecendo apavorada por alguma coisa que não queria nos contar. Ficamos com eles por dois dias somente, pois tínhamos que responder aos clientes que nos pediam urgências nos projetos. Fomos com o coração nas mãos. Eu vi o olhar desesperado que Isobel lançou para mim, parecendo querer me transpassar para que eu adivinhasse algo terrível que estava acontecendo. Falei com Giacomo sobre isso, mas o que podíamos fazer diante de tantas cobranças, afinal, era de Milão que saia nosso sustento.

Do azeite, Giacomo não estava recebendo mais nada, pois Severo dizia que a safra tinha sido péssima, que as oliveiras precisavam descansar e que não sei mais quantas desculpas para não mandar a parte do lucro da produção. Giacomo, com muito custo e pesar, me disse que colocaria tudo à venda, ainda àquele ano. Dois meses depois daquela tragédia, nós dois aparecemos sem avisar na casa da colina. Nos hospedamos num hotelzinho chamado Villa Regina, barato e discreto, pois não era nossa intenção ficar aparecendo. À tarde alugamos um carro pequeno e subimos até a casa da colina. Estacionamos atrás do muro que separava a casa das oliveiras. Tudo estava quieto, fizemos o maior silêncio para entrar na casa.

Subimos até o andar superior onde ficava os quartos e as portas estavam fechadas. O quarto de Isobel estava vazio. Fomos até a porta do quarto de Severo e o ouvimos roncando a sua sesta. O quarto dos pais do Giacomo estava vazio, pensamos que talvez ali estivesse Isobel. Descemos para a cozinha e não a encontramos. Eu comecei a ficar preocupado, lembrei-me daquele olhar suplicante que não pude atender.

Giacomo pegou uma chave na gaveta de talheres da cozinha e fomos até o porão. Ali com certeza ela não estaria, pois detestava aquele canto da casa. Dizia que era muito escuro e cheio de ferramentas velhas e que não sabia porque, aquele lugar lhe dava calafrios. Descemos as escadas de pedra, mal iluminada. Aquele lugar cheirava tumba de cemitério. Era frio e fantasmagórico. Num canto escuro, havia uma pequena cama de ferro. Ouvimos um leve sussurro. Meus pêlos levantaram-se imediatamente. Ali em baixo o espaço parecia sem limite, sem contorno, sem cor. Por cima da pequena janela de barras de ferro, uma claridade amarelada, espalhava desenhos lúgubres dos galhos de uma oliveira, que ficava cada vez mais comprido à medida que o sol se punha no horizonte. De repente aquelas sombras se transformaram em nódoas pardacentas. Por baixo, ao rés do chão, estendia-se uma sombra cada vez mais baça, mais cinzenta, até que formava uma grande mancha escura, como se um rio de sangue nascesse ali naquele lugar. O último raio de sol iluminou o rosto de Isobel, que amarrada a catre, nos olhava com insondável tristeza.

Subitamente ela começou a chorar. Giacomo abafando um grito, a tomou nos braços, eu desatei as amarras de suas pernas. Ainda confuso com tudo aquilo, fui subindo meu olhar, duro, atormentado, parando no rosto de Isobel, que temia o barulho do choro. – Oh! mágoa! oh! desespero! Ver e não querer olhar! Isobel, linda, de sorriso inebriante estava com os braços decepados. Giacomo desesperado enrolou o corpo da irmã numa manta e saímos dali daquela masmorra infernal. Uma imensa massa de sombra foi sendo arrastada conosco. Sem fazer nenhum rumor, descemos até o lugar onde estava o carro. Giacomo colocou Isobel em meu colo. Meu peito arfava de dor, e dele foi crescendo uma onda como duma maré devoradora. Isobel, sem os braços, em sua beleza crepuscular, se contraia em meu peito, exprimindo amor e terror.

quarta-feira, 2 de julho de 2008

Sábado e Domingo

Tela de Odd Nerdrun




Amigos desde à infância, inseparáveis desde sempre, Sábado e Domingo nasceram no mesmo dia que receberam seus nomes. Não sei se por homenagem ou por pura falta de inspiração. Cresceram rodeados de todo tipo de miséria. Eram os mendigos mais famintos e esfarrapados da cidade. Moravam juntos, embaixo de um viaduto, cercados de medo e pavor por tudo que viam acontecer por ali. Eles faziam parte do povo dos buracos. Aqueles, que metiam medo quando passavam, arrastando seus andrajos e suas latas vazias. Entocavam-se num buraco que fizeram escavado com telhas quebradas e uma faca. As paredes e o chão eram cobertos com papelão. O teto baixo era preto da fuligem que saia da lata de tinta recortada para servir de fogão. Ali na cova úmida, dormiam juntos como dois irmãos. Esse era o lar dos dois amigos.

Num dia de outono, resolveram se aventurar num sítio que ficava do outro lado da cidade, logo no pé da serra. Era um sítio, famoso por suas frutas. O dono desse lugar era conhecido por suas malvadezas. Não tinha um mendigo que conhecessem que não tivesse uma história escabrosa pra contar. Lá morava o velho pai e mais três filhos, todos mal encarados e de bofes estragados. Mas tudo isso não tinha importância, diante das frutas que aquele lugar paradisíaco produzia. Iam silenciosos, pensando na feira que fariam aquele dia. Sábado queria fazer doce de abóbora, sonhava com esse doce, comeu quando criança. Lembrava do gosto adocicado com cheiro de cravo e canela e da espessura daquele sabor cor de alegria. Domingo queria fazer doce de mamão raladinho, uma maravilha verde clara, igual vidro de garrafa. Roubou um copinho, na quermesse do padre Simão. Bons tempos aqueles que se conseguia roubar doces. Sábado e Domingo eram como duas torres seguras naquela amizade de infância. Suas mães eram amigas, talvez até parentes, nem se lembravam mais.

Iam quase felizes, se não fosse os sapatos esburacados que deixava entrar pedriscos que machucavam seus pés sem dó nem piedade. Sapato novo nunca tiveram, e se tivessem já teriam perdido para algum gatuno tão necessitado quanto eles. O caminho que seguiam era cheio de canteiros, tenros de arbustos novos, cobertos por um manto de pequenas florzinhas amarelas. Quando chegaram ao sítio, recuaram na porteira, pois ouviram um tropel de cavalos. Esconderam-se atrás de umas paineiras, esperando a nuvem de pó baixar.

Três cavaleiros mal encarados cruzaram a porteira num galope desenfreado. Os cavalos bufavam com as ventas arreganhadas, e uma grossa saliva escorria de suas bocas semi-abertas. Corriam como alucinados e estavam visivelmente estropiados. Sábado puxou Domingo para junto de si, quando um dos cavalos escorregou pinoteando, quase jogando o cavaleiro da sela ao chão. Apavorado, o cavaleiro se agarrou às rédeas bambas, aprumando-se novamente, seguindo atrás dos companheiros, que mais pareciam comparsas de alguma malvadeza. Domingo viu quando um saco de lona caiu do cavalo. Rapidamente chutou o saco para uma moita. Logo que a poeira baixou, saíram batendo o pó da cabeça. Sábado falou ao amigo:

- O que foi que você chutou, ali no mato?
- Um saco, você não viu!
- Não, vamos ver!

Quando chegaram perto do mato rasteiro perceberam que era urtiga.

-Oh, Domingo, não tinha um canto melhor pra chutar o saco?
- Na hora, nem vi! Agora, vamos puxá-lo com um galho, pra não sairmos os dois arranhados com os espinhos.

Fizeram uma forquilha com um galho de amoreira e cuidadosamente resgataram o saco de lona. Sábado receoso dos cavaleiros voltarem falou a Domingo:

-Aqueles três mequetrefes daqui a pouco, vão dar pela falta do saco e aí, bao-bao, já era.
Alguma coisa errada aqueles caras fizeram, senão não estariam galopando desembestados como estavam. Você não acha Domingo?

Domingo fez um sinal de concordar e voltaram pelo mesmo caminho quase correndo, tropeçando nos próprios pés, como se fugissem do demo. Foram direto para debaixo do viaduto onde moravam. As frutas ficaram quietinhas lá nas árvores e os doces, só no pensamento. O importante naquela hora, era abrir o saco e ver o que ele continha. Entraram disfarçando, no buraco de fuligem onde moravam. Colocaram a prenda no meio da pequena caverna. Domingo que estava mais faminto que cachorro abandonado, falou:

- Bem que poderia ser um pernil assado!

Ali, no oco da terra, com os corações retumbantes de curiosidade e aflição, acenderam uma vela para poder enxergar melhor o saco surpresa. Uma luz bruxuleante dançou naquele espaço apertado e frio. Abriram o saco tremendo de curiosidade. Ali, no meio do pequeno espaço que compartilhavam como dois irmãos, viram surgir de dentro daquele saco mágico notas e notas de uma “dinheirama”. Eram pacotes enfileirados de notas de cem e de cinqüenta, todas sorrindo para eles. Olharam-se, mudos, ficando paralisados por instantes. Olhavam-se com um brilho estranho nos olhos e de repente, abraçaram-se freneticamente, rindo como loucos. Levantaram-se, querendo dançar, se esquecendo que o teto era baixo para tanta euforia. Os olhos, vidrados nas células convidativas, faiscavam. Fecharam o saco e amarraram-no exatamente como estava. Anteviam uma desgraça, caso alguém entrasse ali, naquela hora. Sábado, cuidadoso, falou:

- Vamos enterrar o saco!
- Vamos dividi-lo antes!
- Depois fazemos isso, por enquanto vamos escondê-lo. Ninguém pode saber de nosso tesouro!

Fizeram um outro buraco, dentro do buraco que moravam, e enterraram o saco de sonhos. Camuflaram o lugar com pedaços de telhas quebradas. Naquela noite começaram a sonhar colorido. Acordaram mortos de fome. Sábado foi o primeiro a se levantar e molhar a cara com água fria. Tiritava de frio. Olhando para o amigo, que ainda estava enrolado num cobertor cinza cor de rato, falou que com a fome que estava comeria um cavalo. Domingo sentou-se reclamando de uma cãibra que lhe assaltara a panturrilha e disse ao amigo:
- Acho que você poderia pegar um pouco do dinheiro e ir até o mercado comprar alguma coisa para nós. O que acha?
- Acho que é a melhor idéia que você teve nos últimos tempos!

A vida para eles começava a ter horizonte. Sábado rapidamente desenterrou o saco e apanhou umas notas de cinqüenta. Tremia antevendo as compras já ali para serem saboreadas. Disse ao amigo:

- Fique aí com sua câimbra que eu vou às compras! Algum pedido especial?
-Eu quero tantas coisas que nem sei o que pedir, mas no momento um sanduíche com carne, queijo, tomate e picles me traria à vida novamente. Ah, não se esqueça da pimenta!

Sábado subiu o atalho estreito e liso de concreto que levava à rua, e lá em cima ganhou o mundo. Caminhava leve e solto, quase sorrindo, envolto nos trapos que balançavam ao vento. A roupa estava toda cheia de buracos fazendo com que a brisa da manhã penetrasse em seu corpo magro e tísico que tiritava de frio. Foi nesse caminhar cambaleante de homem tropeço que o sonho acabou fazendo uma curva e de repente, Domingo não fazia mais parte dele. Sábado começara a traçar uma viela que o levaria para bem longe do amigo. Para que esse traçado engenhoso desse certo, ele precisaria de todo o dinheiro do saco. Um pensamento cortante, escuro como o fundo de um poço, surgiu em sua frente. “Sábado tem que morrer”. Assustou-se com essa possibilidade, mas depois de estar com as compras nas mãos, sentiu-se poderoso.

Sábado conhecia um lugar perto do cemitério, que tinha um pé de beladona escondido num outeiro. Seu perfume profundo dava-lhe dor de cabeça, mas iria lá, mesmo assim. Cuidadosamente recolheu dez ou doze bagas, suficientes para matar um homem gordo, o que não era o caso de Domingo. Uma nuvem negra surgiu no horizonte e um corvo grasnou no muro do cemitério. Com a beladona no bolso da calça, seguiu para a última compra do dia, foi direto para uma lanchonete que ficava no caminho de volta ao viaduto. Comprou um enorme sanduíche com tudo o que Domingo merecia, inclusive a beladona imitando as pimentas de que tanto ele gostava.

Quando entrou na cova onde morava, uma sombra se adensou tapando sua visão. Oscilou para o lado, tentando se desvencilhar, aflito, daquela mão que trazia uma faca brilhante que vibrava em sua direção. Domingo, caindo sobre Sábado enterrou-lhe a lamina fria na garganta. Sábado foi se largando, mole, arrepiado com a faca entalada no pescoço. O sangue espirrava pela boca e pelo corte da faca; Domingo atrás, parado olhava o desespero estampado nos olhos do amigo que findava, estrebuchando suspiros, até que tudo se acabou num silêncio mortal.

Domingo vendo a desgraça formada, quis sair dali correndo, mas se lembrou do saco de sonhos e parou, além do mais, até àquela hora não tinha comido nada. O cheiro do sanduíche começou a fazer efeito. Abriu a sacola e o pegou ainda quente. Com que vontade se sentou no chão de terra batida e devorou aquela delícia. “Ah, que maravilha”, pensou. Bebeu um suco que encontrou na sacola do mercado e deu-se por satisfeito. Estendido no papelão que forrava seu canto de dormir, com os cotovelos dobrados, segurando a cabeça, pensava na grande ventura que seria sua vida dali por diante. A casa que compraria, talvez se casasse, e quem sabe, até filhos teria.

De repente, uma sombra passou por ele e um mal estar alargou suas entranhas. O coração parecia um tambor descompassado, suas pupilas foram dilatando até que sua visão ficou totalmente borrada. Levou as mãos à garganta, que ficou tão seca que arranhava só por engolir a saliva que engrossava. Ali, naquele lugar de horror, frio e desumano, um vulto foi se alongando em sua direção. Sábado, com a faca atravessada na garganta levantou-se de sua angustia, e rindo, girava espirrando sangue por todo aquele buraco maldito. Dentro de Domingo, uma chama viva acendia e fundia suas tripas como chumbo derretido. Sua língua foi crescendo até não caber mais em sua boca. Um suor horrendo enregelava sua alma. Estava sendo roído por dentro, gritava pela Virgem, pela mãe e pelo amigo morto, entre alucinações que o paralisavam. Uma baba densa começou a se formar em sua boca, os olhos foram saindo das órbitas e sua expressão era de horror. Gritou entre espasmos de dor:

-É veneno! Sábado, maldito!

Ali, naquele buraco escuro e frio, quedaram juntos, os dois amigos de infância. O saco de sonhos continua enterrado até hoje no mesmo lugar.