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quarta-feira, 2 de julho de 2008

Sábado e Domingo

Tela de Odd Nerdrun




Amigos desde à infância, inseparáveis desde sempre, Sábado e Domingo nasceram no mesmo dia que receberam seus nomes. Não sei se por homenagem ou por pura falta de inspiração. Cresceram rodeados de todo tipo de miséria. Eram os mendigos mais famintos e esfarrapados da cidade. Moravam juntos, embaixo de um viaduto, cercados de medo e pavor por tudo que viam acontecer por ali. Eles faziam parte do povo dos buracos. Aqueles, que metiam medo quando passavam, arrastando seus andrajos e suas latas vazias. Entocavam-se num buraco que fizeram escavado com telhas quebradas e uma faca. As paredes e o chão eram cobertos com papelão. O teto baixo era preto da fuligem que saia da lata de tinta recortada para servir de fogão. Ali na cova úmida, dormiam juntos como dois irmãos. Esse era o lar dos dois amigos.

Num dia de outono, resolveram se aventurar num sítio que ficava do outro lado da cidade, logo no pé da serra. Era um sítio, famoso por suas frutas. O dono desse lugar era conhecido por suas malvadezas. Não tinha um mendigo que conhecessem que não tivesse uma história escabrosa pra contar. Lá morava o velho pai e mais três filhos, todos mal encarados e de bofes estragados. Mas tudo isso não tinha importância, diante das frutas que aquele lugar paradisíaco produzia. Iam silenciosos, pensando na feira que fariam aquele dia. Sábado queria fazer doce de abóbora, sonhava com esse doce, comeu quando criança. Lembrava do gosto adocicado com cheiro de cravo e canela e da espessura daquele sabor cor de alegria. Domingo queria fazer doce de mamão raladinho, uma maravilha verde clara, igual vidro de garrafa. Roubou um copinho, na quermesse do padre Simão. Bons tempos aqueles que se conseguia roubar doces. Sábado e Domingo eram como duas torres seguras naquela amizade de infância. Suas mães eram amigas, talvez até parentes, nem se lembravam mais.

Iam quase felizes, se não fosse os sapatos esburacados que deixava entrar pedriscos que machucavam seus pés sem dó nem piedade. Sapato novo nunca tiveram, e se tivessem já teriam perdido para algum gatuno tão necessitado quanto eles. O caminho que seguiam era cheio de canteiros, tenros de arbustos novos, cobertos por um manto de pequenas florzinhas amarelas. Quando chegaram ao sítio, recuaram na porteira, pois ouviram um tropel de cavalos. Esconderam-se atrás de umas paineiras, esperando a nuvem de pó baixar.

Três cavaleiros mal encarados cruzaram a porteira num galope desenfreado. Os cavalos bufavam com as ventas arreganhadas, e uma grossa saliva escorria de suas bocas semi-abertas. Corriam como alucinados e estavam visivelmente estropiados. Sábado puxou Domingo para junto de si, quando um dos cavalos escorregou pinoteando, quase jogando o cavaleiro da sela ao chão. Apavorado, o cavaleiro se agarrou às rédeas bambas, aprumando-se novamente, seguindo atrás dos companheiros, que mais pareciam comparsas de alguma malvadeza. Domingo viu quando um saco de lona caiu do cavalo. Rapidamente chutou o saco para uma moita. Logo que a poeira baixou, saíram batendo o pó da cabeça. Sábado falou ao amigo:

- O que foi que você chutou, ali no mato?
- Um saco, você não viu!
- Não, vamos ver!

Quando chegaram perto do mato rasteiro perceberam que era urtiga.

-Oh, Domingo, não tinha um canto melhor pra chutar o saco?
- Na hora, nem vi! Agora, vamos puxá-lo com um galho, pra não sairmos os dois arranhados com os espinhos.

Fizeram uma forquilha com um galho de amoreira e cuidadosamente resgataram o saco de lona. Sábado receoso dos cavaleiros voltarem falou a Domingo:

-Aqueles três mequetrefes daqui a pouco, vão dar pela falta do saco e aí, bao-bao, já era.
Alguma coisa errada aqueles caras fizeram, senão não estariam galopando desembestados como estavam. Você não acha Domingo?

Domingo fez um sinal de concordar e voltaram pelo mesmo caminho quase correndo, tropeçando nos próprios pés, como se fugissem do demo. Foram direto para debaixo do viaduto onde moravam. As frutas ficaram quietinhas lá nas árvores e os doces, só no pensamento. O importante naquela hora, era abrir o saco e ver o que ele continha. Entraram disfarçando, no buraco de fuligem onde moravam. Colocaram a prenda no meio da pequena caverna. Domingo que estava mais faminto que cachorro abandonado, falou:

- Bem que poderia ser um pernil assado!

Ali, no oco da terra, com os corações retumbantes de curiosidade e aflição, acenderam uma vela para poder enxergar melhor o saco surpresa. Uma luz bruxuleante dançou naquele espaço apertado e frio. Abriram o saco tremendo de curiosidade. Ali, no meio do pequeno espaço que compartilhavam como dois irmãos, viram surgir de dentro daquele saco mágico notas e notas de uma “dinheirama”. Eram pacotes enfileirados de notas de cem e de cinqüenta, todas sorrindo para eles. Olharam-se, mudos, ficando paralisados por instantes. Olhavam-se com um brilho estranho nos olhos e de repente, abraçaram-se freneticamente, rindo como loucos. Levantaram-se, querendo dançar, se esquecendo que o teto era baixo para tanta euforia. Os olhos, vidrados nas células convidativas, faiscavam. Fecharam o saco e amarraram-no exatamente como estava. Anteviam uma desgraça, caso alguém entrasse ali, naquela hora. Sábado, cuidadoso, falou:

- Vamos enterrar o saco!
- Vamos dividi-lo antes!
- Depois fazemos isso, por enquanto vamos escondê-lo. Ninguém pode saber de nosso tesouro!

Fizeram um outro buraco, dentro do buraco que moravam, e enterraram o saco de sonhos. Camuflaram o lugar com pedaços de telhas quebradas. Naquela noite começaram a sonhar colorido. Acordaram mortos de fome. Sábado foi o primeiro a se levantar e molhar a cara com água fria. Tiritava de frio. Olhando para o amigo, que ainda estava enrolado num cobertor cinza cor de rato, falou que com a fome que estava comeria um cavalo. Domingo sentou-se reclamando de uma cãibra que lhe assaltara a panturrilha e disse ao amigo:
- Acho que você poderia pegar um pouco do dinheiro e ir até o mercado comprar alguma coisa para nós. O que acha?
- Acho que é a melhor idéia que você teve nos últimos tempos!

A vida para eles começava a ter horizonte. Sábado rapidamente desenterrou o saco e apanhou umas notas de cinqüenta. Tremia antevendo as compras já ali para serem saboreadas. Disse ao amigo:

- Fique aí com sua câimbra que eu vou às compras! Algum pedido especial?
-Eu quero tantas coisas que nem sei o que pedir, mas no momento um sanduíche com carne, queijo, tomate e picles me traria à vida novamente. Ah, não se esqueça da pimenta!

Sábado subiu o atalho estreito e liso de concreto que levava à rua, e lá em cima ganhou o mundo. Caminhava leve e solto, quase sorrindo, envolto nos trapos que balançavam ao vento. A roupa estava toda cheia de buracos fazendo com que a brisa da manhã penetrasse em seu corpo magro e tísico que tiritava de frio. Foi nesse caminhar cambaleante de homem tropeço que o sonho acabou fazendo uma curva e de repente, Domingo não fazia mais parte dele. Sábado começara a traçar uma viela que o levaria para bem longe do amigo. Para que esse traçado engenhoso desse certo, ele precisaria de todo o dinheiro do saco. Um pensamento cortante, escuro como o fundo de um poço, surgiu em sua frente. “Sábado tem que morrer”. Assustou-se com essa possibilidade, mas depois de estar com as compras nas mãos, sentiu-se poderoso.

Sábado conhecia um lugar perto do cemitério, que tinha um pé de beladona escondido num outeiro. Seu perfume profundo dava-lhe dor de cabeça, mas iria lá, mesmo assim. Cuidadosamente recolheu dez ou doze bagas, suficientes para matar um homem gordo, o que não era o caso de Domingo. Uma nuvem negra surgiu no horizonte e um corvo grasnou no muro do cemitério. Com a beladona no bolso da calça, seguiu para a última compra do dia, foi direto para uma lanchonete que ficava no caminho de volta ao viaduto. Comprou um enorme sanduíche com tudo o que Domingo merecia, inclusive a beladona imitando as pimentas de que tanto ele gostava.

Quando entrou na cova onde morava, uma sombra se adensou tapando sua visão. Oscilou para o lado, tentando se desvencilhar, aflito, daquela mão que trazia uma faca brilhante que vibrava em sua direção. Domingo, caindo sobre Sábado enterrou-lhe a lamina fria na garganta. Sábado foi se largando, mole, arrepiado com a faca entalada no pescoço. O sangue espirrava pela boca e pelo corte da faca; Domingo atrás, parado olhava o desespero estampado nos olhos do amigo que findava, estrebuchando suspiros, até que tudo se acabou num silêncio mortal.

Domingo vendo a desgraça formada, quis sair dali correndo, mas se lembrou do saco de sonhos e parou, além do mais, até àquela hora não tinha comido nada. O cheiro do sanduíche começou a fazer efeito. Abriu a sacola e o pegou ainda quente. Com que vontade se sentou no chão de terra batida e devorou aquela delícia. “Ah, que maravilha”, pensou. Bebeu um suco que encontrou na sacola do mercado e deu-se por satisfeito. Estendido no papelão que forrava seu canto de dormir, com os cotovelos dobrados, segurando a cabeça, pensava na grande ventura que seria sua vida dali por diante. A casa que compraria, talvez se casasse, e quem sabe, até filhos teria.

De repente, uma sombra passou por ele e um mal estar alargou suas entranhas. O coração parecia um tambor descompassado, suas pupilas foram dilatando até que sua visão ficou totalmente borrada. Levou as mãos à garganta, que ficou tão seca que arranhava só por engolir a saliva que engrossava. Ali, naquele lugar de horror, frio e desumano, um vulto foi se alongando em sua direção. Sábado, com a faca atravessada na garganta levantou-se de sua angustia, e rindo, girava espirrando sangue por todo aquele buraco maldito. Dentro de Domingo, uma chama viva acendia e fundia suas tripas como chumbo derretido. Sua língua foi crescendo até não caber mais em sua boca. Um suor horrendo enregelava sua alma. Estava sendo roído por dentro, gritava pela Virgem, pela mãe e pelo amigo morto, entre alucinações que o paralisavam. Uma baba densa começou a se formar em sua boca, os olhos foram saindo das órbitas e sua expressão era de horror. Gritou entre espasmos de dor:

-É veneno! Sábado, maldito!

Ali, naquele buraco escuro e frio, quedaram juntos, os dois amigos de infância. O saco de sonhos continua enterrado até hoje no mesmo lugar.

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