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terça-feira, 6 de maio de 2008

A Sombra

Tela de Dino Valls



Sei que estou aqui, mas alguma coisa está me dizendo para tomar cuidado. Estou nesse estado de escuridão e ainda não encontrei uma saída. É uma escuridão indefinida, que se instalou em meu corpo, trazendo-me um estado de espírito perturbador, desde o dia em que acordei com aquela idéia fixa de ir à cartomante Zoraide.

Todo mundo na favela do Macaco Pelado já tinha ido se consultar com a madame. Diziam, que a mulher era um fenômeno, descobria tudo que era segredo, mesmo aqueles que nem Deus sabia. Bem, não é que eu não acredite nessas videntes, quer dizer... acredito assim, mais ou menos. Fico sempre com a pulga atrás da orelha com essas coisas do oculto. Acontece que eu queria saber de uns babados que estavam acontecendo comigo lá no emprego, tinha que tentar.

Não deu outra, nem pensei duas vezes para telefonar marcando um horário. A mulher era tão procurada que só consegui marcar pra uma semana depois.

O tempo naquele dia prometia tempestade, pois caía uma chuva daquelas. Parecia que alguma coisa me dizia pra eu não sair de casa. Chovia tanto que dava até medo. O telhado estava sendo metralhado por granizo e quem não visse a chuva pensaria que era a turma do Cachorro Louco, traficante da pesada, atacando o barraco. Coloquei a capa amarela que ganhei da Maria Chupeta. Ela não queria nem ver as roupas que usava quando trabalhava na prefeitura de varredora de rua, portanto, me deu a bendita capa de gari. Agora a Maria era acompanhante profissional. Uma coisa que eu não quero ser nem a pau.

Desci o morro que nem uma periquita amarela. Ainda bem que tenho uma galocha, senão meu sapatinho novo iria pro bebeléu. Cheguei na casa da dona Zuleica, atrasada cinco minutos. A sala de espera estava vazia. Quando a cortina azul celeste se abriu, confesso que me arrepiei. Zuleica era uma figura impressionável. Alta, magra e branca como papel. Parecia um sol surgindo naquela salinha escura. Seu rosto brilhava no meio da enorme cabeleira oxigenada.

Entrei na sala de consultas e fiquei pasma. Era tudo aquilo e muito mais que diziam dela. A mesa redonda era recoberta com uma toalha azul, cheia de símbolos estranhos, bordada com fios prateados. Uma grande bola de cristal no meio da mesa, que mais parecia o globo do teto do meu banheirinho sem vergonha. O mais intrigante foi o que eu vi na estante atrás dela: Um gato preto empalhado, todo arreganhado, olhando pra mim. Credo em cruz, ave Maria. Sabe, eu sempre tive pavor de gente que mexe com espíritos. Fico sempre com o pé atrás com elas. Acredito mais ou menos. Fico com uma pulga atrás da orelha, sabe como é. Mas eu tinha que saber umas coisas que estavam acontecendo comigo lá no emprego.

Ela indicou, com seu dedo de unhas negras, a cadeira que eu deveria me sentar. Sentei bem devagar, como se a cadeira tivesse um sapo esperando para ser esmagado.
Ela me olhou bem no fundo dos olhos, e parecia que estava querendo me hipnotizar. Pediu-me com voz solene: Corte as cartas meu amor!

-Ah! Em dois? -eu perguntei.

-Sim, meu bem! Isso mesmo.

Quando ela foi abrindo o maço de cartas na mesa, vi que sua testa ficou enrugada. Pensei: Aí tem! E tinha. Ela apontou uma carta com o dedo e disse:

- Vejo que você vive no meio de muita riqueza.

-Sim madame, mas nada daquilo é meu. Sou empregada doméstica de uma família muito rica.

-Vejo também um homem importante.

-Só pode ser o doutor Fausto, madame!

-Aqui, eu vejo uma mulher que é sua inimiga.

-Ah! Essa com certeza é a mãe do doutor, a dona Maria Eleonora. Ela me detesta, a desgraçada. É o cão em pessoa.

-Aqui eu vejo muita sorte.

-Sorte, onde? Só se aquela maledeta sumir do mapa. Onde a madame está vendo sorte?

-Aqui, minha filha, nesta carta! – a roda da fortuna.

-Ah, é?

-Corte novamente. Isso mesmo! Aqui, eu vejo uma sombra em sua vida.

-Sombra, onde?

-Aqui, na carta dos enamorados. Cuidado com o homem da casa.

-Que homem, que nada, deve de ser a filha da puta da dona Maria Eleonora, ela é que é uma sombra em minha vida. Ela não pode me ver perto do doutor Fausto que começa a humilhação: empregadinha encardida, empregadinha ignorante, maloqueira metida e daí pra baixo. Sabe, ela me vigia o tempo inteiro. Outro dia, quando o doutorzinho foi até o meu quarto perguntar se podia vir me ver de madrugada eu ouvi ela quebrando um copo na cozinha. Ela fica de tocaia o tempo inteiro.

Saí da madame Zuleica, morrendo de ódio de dona Maria Eleonora. Ela era uma bruxa que não deixaria o doutor Fausto ficar comigo por nada desta vida. Ele bem que me avisou que sua mãe não daria trégua. Que ela iria empatar o meio de campo. Não, essa eu não deixaria barato. Fui para o trabalho arquitetando um plano para por fim naquela situação. Para esses casos sem solução, não tem coisa melhor que veneno de rato. No caminho do emprego, comprei um vidrinho de chumbinho. Quando cheguei na porta da cozinha, vi um bilhete grudado na geladeira, escrito com aquela letrinha de madame sabida: “Faça brigadeiros, pois amanhã teremos visitas”. Pois sim, minha patroa, hoje a senhora vai comer o melhor brigadeiro da praça, brigadeiro chumbado!

Fiz o brigadeiro e deixei o maior e mais bonito recheado de chumbinho, bem em cima dos outros no meio do prato, não tinha como não pegá-lo primeiro, ainda mais sendo a gulosa da dona Maria Eleonora. Quando terminei a faxina da casa, fui tomar um banho e me preparar para dormir. Estava com a cabeça cheia de sonhos, só imaginando quando aquela vaca iria comer o brigadeiro.

Ouvi alguém vindo para o meu quarto e fiquei esperando a porta se abrir. Era o doutor Fausto, cheio de amor pra dar. Todos os dias era a mesma coisa, ele aparecia na ponta dos pés, pra que a mãe não percebesse suas investidas. Agarrou-me por trás, me apertando os seios e disse: “Abra a boca e feche os olhos!”. Imediatamente imaginei o bombom que sempre vinha antes dos beijos. O doutor era mestre em me deixar parada na dele. Tinha um jeito manso de pedir e sempre conseguia o que queria. Tinha me prometido um apartamento e quem sabe, depois que amansasse a mãe, um casamento. Eu ia acreditando em tudo, pois estava enroscada nele até a alma.

Abri a boca e engoli a surpresa. Senti o doce delicioso envolvendo minha boca enquanto uma mão abria o zíper do vestido. Fiquei parada no meio do quarto, olhando o rosto do doutor, que sorria para mim segurando o meu seio. De repente, senti minhas entranhas explodirem de dor. Era como se alguém estivesse puxando tudo para fora. Mil estilhaços penetraram minha carne fazendo-me dobrar como um caracol retorcido. Uma nuvem de dor foi enchendo o meu corpo retesado. O doutor Fausto olhava-me sem entender nada. Correu para fora do quarto para pedir socorro, mas eu já não estava mais em mim. Saí do meu corpo flutuando e fiquei como estou agora, esperando por algo que nunca vai acontecer. Ainda me lembro como se fosse agora... ali, na soleira da porta, dona Maria Eleonora, como uma sombra me olhando a sorrir.

10 Comentários:

  • Sou obrigada acreditar no ditado:
    "O feitiço volta contra o feticeiro"
    Minha DoceRachel, essa cabeça sua é como um livro de contos sem fim.
    Nós os amigos sonhando com um continuado, ou seja, pena que acabou!
    Você é demais.
    Beijos.

    Por Blogger Ana Maria, às 6 de maio de 2008 às 20:18  

  • Rachel mais um conto de suspense,à boa maneira "Racheliana":))Gostei muito,mais uma vez fez-me lembrar os contos de Hitchcok!
    Força aí para o próximo!

    Por Blogger "Scacição", às 7 de maio de 2008 às 04:55  

  • Las suegras, las suegras....arrrgh...

    Este conto soube apenas a metade da história, que a vamos contar para nós, e quem sabe um dia a heroína da história, morta pelo escaldante coraçao do Dr. Fausto que apenas queria adoçar a boca da pobre empregada(nome curioso e premonitório o de Dr. Fausto, hein?)! Imagino agora a vingança da alma 'chumbada' contra a megera da Maria Eleonora....brrrrr....

    Como sempre bravo Rachel!!! Beijinhos!

    Por Blogger manuel marques, às 7 de maio de 2008 às 13:13  

  • eh eh eh, Rachelita!!

    Gran Rachelita...

    eh eh eh...

    :)

    Por Blogger Rogério Camargo, às 7 de maio de 2008 às 17:11  

  • Rachel..sempre magestosa em seus contos,e intrigante e de dar mêdo..Mas um mêdo diferente.Quando estava a meio do caminho,logo pensei,o que será que Rachel vai aprontar desta vez?Surprêsa,sempre uma surprêsa.

    Parabéns doce Rachel,sempre muito criativa..Será que a empregada vai voltar do lado de lá ,par se vingar da mãe do Dr.Fausto?
    Ou o Dr. Fausto sabia o que estava enfiando na boca da pobre coitada?rsrsrsrs.

    Beijos...

    Dolores Jardim

    Por Blogger Dolores Jardim, às 7 de maio de 2008 às 20:17  

  • Eu deixaria o doutor Fausto só no âmbito do que ele se propunha mesmo, que era, se refestelar com a donzela, um tanto ingênua, acreditando nesses encontros sociais. Nem a velhota sabia do brigadeiro chumbado. Mas o destino estava querendo dar uma lição na menina. As coisas não se resolvem assim. Se eu não gosto coloco veneno na comida, esgano ou jogo pela janela. Tem que existir um jeito mais civilizado para conseguir o que se quer.

    Por Blogger O que Cintila em Mim, às 8 de maio de 2008 às 16:50  

  • Como sempre uma excelente estória!
    Continue sempre a escrever, você com toda a certeza tem o dom!

    Só um pequeno comentário, essa estória faz lembrar aquela velha frase, "Não deseje ao outro o que não deseja a ti mesmo".

    beijos!

    Por Blogger suanoite_hypes, às 10 de maio de 2008 às 17:41  

  • Rachel,rsrsrsr
    dona Maria Eleonora,era mesmo uma "Sombra"coitada da doméstica,
    sonhou alto e ficou chumbada.

    Parabéns por mais um belo conto!

    Bacini.
    aPr

    Por Anonymous Anônimo, às 24 de maio de 2008 às 19:20  

  • Rachel

    Criatividade você tem para dar e vender.
    Parabéns!

    Por Blogger Rachel Domingues, às 11 de junho de 2008 às 11:30  

  • Minha linda escritora...
    de frases unicas...criativas...inteligentes.
    meu beijo carinhoso.

    Por Blogger Leninha.Sol, às 13 de junho de 2008 às 12:34  

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