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quinta-feira, 29 de maio de 2008

O Cais do Porto

Tela de Odd Nerdrum



Akbar, o pai de Latifa, minha amiga de infância, era contrabandista. Vivia do comércio de todo tipo de bugigangas: chinelos, pentes, facas, óculos, bijuterias e mais uma infinidade de quinquilharias, mas, por baixo dos panos, ele vendia haxixe, ópio e heroína. Um dia, depois de atracar seu velho barco no cais do porto, foi assaltado por um bando de piratas. Defendendo sua “preciosa carga” com unhas e dentes, não conseguiu vencer a selvageria de tantos homens. Caiu sem sentidos, quando levou uma bordoada com um remo. Sua cabeça se abriu, deixando os miolos à mostra.

Belquise, a mulher de Akbar, quase ficou louca, pois sem o marido não sabia o que fazer para tocar a vida sozinha com duas meninas. Além de Latifa que ia fazer quinze anos, ela tinha outra filha, Dunia, de doze anos. Belquise nem imaginava que Akbar fazia contrabando. Agora estava com aquele barco velho, cheio de mercadorias. Latifa, vendo o desespero da mãe, propôs que vendessem o barco e as mercadorias o mais rápido possível e com o dinheiro comprariam especiarias para vender no mercado. Foi o que Belquise fez, vendeu o barco com tudo dentro ao seu irmão Kaled, passando a viver da venda de especiarias. Deixava as meninas cuidando da casa, só voltando ao cair da tarde.

Um dia, Latifa quis ir até o cais e foi sem a permissão da mãe. Disse a Dunia que passaria por lá para rezar pelo pai e em seguida voltaria para casa. Dunia viu quando ela pegou o lenço de seda, cor-de-maravilha, cobriu a cabeça com ele e saiu. Quando a noite chegou, Belquise voltou do mercado. Procurou pelas filhas e quando viu que somente Dione tinha respondido, parou por um instante o que estava fazendo, olhou para a filha com ar de indagação perguntando:

- Onde está, Latifa?
- Foi até o cais.
- Fazer o quê?
- Ela me disse que iria rezar para o pai.
- Mas ela sabe que não deve sair sozinha e ainda mais à noite! Vamos até o cais, atrás dela.

Foram as duas, abraçadas. Caminharam pela noite escura até o porto, olhavam de um lado a outro procurando por Latifa. Foi quando me encontrei com elas e vi que estavam desesperadas. Eu voltava da casa de uma tia que estava doente, tinha ido levar um remédio. Passando pelo cais, vi quando Latifa entrou num barco com um homem que eu nunca vira. Foi tudo muito rápido, mas deu pra ver que ela ia a contragosto, pois ele deu um empurrão nela para dentro do convés.

Belquise, a par da situação, pegou a mão de Dunia e saiu correndo até o Comissário do Porto para dar queixa do ocorrido. Chegou sem fôlego de tanto correr, mas não adiantou nada, pois ele não podia fazer grande coisa naquela hora da noite. Só quando chegasse a manhã é que poderia tomar providências. Belquise não conseguiu pregar o olho. Ficou olhando o portão, da janela de seu quarto, na esperança de ver Latifa entrando em casa. Assim que raiou o sol, saiu correndo até o comissário. Não foi por falta de procurar, todo mundo que freqüentava aquele porto, correu de uma ponta a outra em busca de uma pista não encontrando nada que levasse à menina.

Uma semana depois, o comissário apareceu na casa de Belquise com o lenço de Latifa. Ela desmaiou segurando aquele lenço nas mãos. Dunia começou a chorar e não quis mais ficar sozinha. Todos imaginaram que Latifa tivesse se afogado no mar. Desse dia em diante, mãe e filha passaram a ir para o mercado juntas, Dunia começou a trabalhar com a mãe.

Um dia, quase no fim da tarde, eu estava voltando para casa com um fardo de lã de carneiro para fiá-lo, com minha mãe, roupas para o inverno, quando ouvi alguém me chamando. Parei por um instante para me certificar se realmente era comigo, quando vi um vulto atrás das pilastras que apóiam o convés. Era Latifa enrolada num lençol. Larguei o fardo de lã no chão de susto e saí correndo apavorada. Deus me livre de falar com fantasma, porque com certeza era o fantasma de Latifa. Depois de correr alguns metros, parei e me voltei pensando: Mas o que um fantasma poderia me fazer? Nada! Voltei para pegar o fardo de lã e quando o colocava na cabeça, senti uma mãozinha muito leve no meu ombro. Dessa vez eu gritei: Sai pra lá coisa esquisita, o que você quer de mim? E ouvi a voz de Latifa sussurrando:

- Sou eu, Latifa! Não se lembra mais de mim?
- Sim, claro que sei quem é você! É a Latifa, minha amiga que morreu afogada.
- Não estou morta, não! Como posso estar morta se estou falando com você?
- Mas... mas o que aconteceu? Todos pensam que você morreu há um ano.
- Vou te contar o que houve, mas antes eu preciso comer alguma coisa e descansar. Posso ir com você à sua casa? Não quero chegar assim, nesse estado e assustar minha mãe e irmã.
- Tudo bem, Latifa! Vou te esconder em meu quarto, pois se minha mãe te achar vai ser um escândalo. Depois, quando você estiver alimentada e vestida, quem sabe, tudo volte ao normal.

Assim foi que Latifa, mais parecendo um fantasma de tão magra e vestindo somente um lençol, foi parar no meu quarto. Levei para ela, sem que minha mãe visse, leite de cabra quente e pão de centeio com manteiga, o que Latifa devorou num segundo, tamanha era a sua fome. Depois ela vestiu uma túnica velha que eu não mais usava e encolhida num canto do meu quarto, começou a contar sua história.

- “Um dia, quando fui até o cais rezar ao meu pai que morreu tão tragicamente, um barqueiro surgiu não sei de onde, dizendo ter sido amigo de Akbar. Disse que tinha no seu barco alguns pertences de meu pai. Que eram coisas valiosas e que minha mãe iria gostar de ter para vendê-las. Fiquei com medo, mas subi naquele barco. Arrependi-me no instante que pus os meus pés no convés. Um mau pressentimento passou por meu corpo. Tentei descer, mas fui empurrada para dentro da cabine de navegação. Apavorada tirei o meu lenço e o joguei no mar. Pensei que seria uma pista para me acharem. Gritei por socorro, mas fui amordaçada com um pano imundo. Ele me bateu com uma corda e falou que o meu pai tinha perdido uma valiosa carga para uns piratas e que essa carga era dele. Por essas e outras eu seria sua escrava até quando ele achasse que a dívida estava paga. O barco singrou durante muito tempo. Eu dormi, ali mesmo, naquele chão sujo e úmido. Na manhã seguinte aportamos numa ilha. Eu nem imaginava onde estava. Queria fugir, naturalmente, mas ele já tinha tudo preparado. Fiquei acorrentada numa cozinha horrorosa. Ali, eu cozinhava e dormia. Depois de uma semana, ele abriu a porta com um ponta-pé, arregaçou as calças imundas e veio pra cima de mim. Eu o acertei com uma frigideira velha e ele caiu com a cara nas brasas do fogão. Foi a pior coisa que eu podia ter feito. Ele ficou enfurecido. Rasgou minha roupa, abriu minhas pernas com as duas mãos peludas e me desonrou. Fui daquele animal todas as noites durante um ano.”

- Meu Deus, Latifa! E como você conseguiu fugir?
- Ele morreu.
- Morreu!
- Sim, morreu! Acho que foi do coração. Ontem ele estava em cima de mim bufando como um bode velho, e de repente, deu um grito de dor. Levou à mão ao peito e caiu duro na esteira.
- O que você fez?
- Peguei as chaves da corrente que me prendia e do barco, me enrolei nesse lençol e fugi no barco dele.
- Você não tinha roupas?
- Não! Ele sumiu com elas. Eu ficava nua para não ter como fugir.
- Que impressionante, Latifa! Todos por aqui, pensam que você se afogou no mar. E agora, o que vai fazer?
- Primeiro eu tenho que falar com a minha mãe. Depois, vou falar com o Comissário do Porto sobre tudo o que me aconteceu.

Assim fez a minha amiga Latifa. Depois de descansar bastante, nessa mesma noite, resolveu ir até a sua casa ter com sua família. Uma hora mais tarde estava de volta ao meu quarto. Levantei-me assustada em ver a cara de medo da Latifa.

- Que susto, minha amiga! O que foi que aconteceu?
- Minha mãe pensou que eu fosse um fantasma, trancou a porta e as janelas. Por mais que eu lhe falasse que estava viva, ela tapava os ouvidos e não acreditava. Deixei-a rezando entre lágrimas.
- E agora?
- Amanhã eu voltarei, quem sabe, ela esteja mais calma. Quero ver a Dunia, também.

Latifa ficou escondida em meu quarto por uma semana. Todos os dias, ela voltava a sua casa à noite, mas tanto Dunia como a mãe, choravam e enxotavam-na como se realmente ela estivesse morta. Achavam que ela era um fantasma perdido e que necessitava de rezas para sua alma sossegar.

Latifa estava desesperada, não sabia o que fazer, isso até o dia em que a minha mãe deu com ela no meu quarto. Aquilo não podia ter acontecido. Ela também imaginou que Latifa fosse uma alma penada procurando a melhor amiga. Saiu correndo pelas ruas, indo direto à casa de dona Belquise. Quase arrebentou à porta de tanto bater. Gritava, quase sem fôlego o nome de Latifa. Quando a porta se abriu, ela agarrou dona Belquise pelos ombros dizendo:

-Belquise, venha pelo amor de Deus! Acabo de ver sua filha em minha casa. Temos que fazer um grupo de orações para que ela tenha sossego na morte. Belquise concordou e na noite seguinte, um grupo de mulheres, todas com véu na cabeça, se reunira à beira do cais para rezar para a alma da afogadinha Latifa. Foi nessa noite que se deu a maior desgraça.

Latifa apareceu, gritando a todos que estavam ali, rezando para ela.

- “Vejam, eu não estou morta! Estou viva e voltei para casa”.

Quando ela falou, todas se ajoelharam e em voz ainda mais alta, rezaram em êxtase de fervor para a alma da menina encontrar o paraíso. Latifa, então, num gesto desesperado, gritou:

- Vejam como estou viva!

Subindo na proa de um barco que estava atracado ali no cais, como uma louca desvairada, se atirou ao mar. Debatia-se com toda força para voltar ao fundo, quando o seu corpo voltava à tona. Gritou algumas vezes por socorro, mas ninguém teve coragem de ajudá-la, imaginando-a um fantasma enlouquecido. Assim morreu Latifa, com o marulho intacto da noite. Tudo ardia nas cintilações das escamas dos peixes silenciosos, quando ela afundou no cais do porto.

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