O Cordeiro
Não sou o que se pode chamar de “um bom homem”. Fui marcado pela crueza de uma vida torpe. Ninguém me deu nada de nada. Fui escarrado nesta vida de merda e aqui fiquei na solidão dos meus dias. Não pedi nada e nem quero nada. Só peço que me deixem em paz. Não pensem que estou choramingando piedade, para convencê-los do que quer que seja. Pensem o que quiserem! Cada um tem sua opinião. Escrevo porque ouvi dizer que quando escrevemos liberamos de nós o inferno que nos consome. Isso foi dito por algum terapeuta idiota, pois, por mais que eu escreva, ainda sinto o rastro de uma sombra que se cola em mim. Sinto-me um bicho rastejante. Já quis por fim em tudo isso. Tentei pular no mar, atear fogo às roupas, tomar veneno, estourar os miolos, mas de nada adiantaria se já sei de antemão ser eterno. Quem me dera explodir virando poeira cósmica. Sumir, desaparecer no ar. Estou aqui, com o coração retumbando em minha inconsolável angústia. Não sei por quê, aliás, ainda tento entender minha perdição. “Recordações”, é tudo o que tenho nesta vida, por isso escrevo tanto. Se ao menos com isso eu pudesse resgatar o passado, ao menos entendê-lo. Há muito, deixei a hipocrisia religiosa. Não vou agora me apegar aos santos. Ninguém pode salvar-me, nem mesmo eu ou você. Sei que passei dos limites, não consentindo que se respirasse a minha volta.
Quero esclarecer alguns pontos: Quando eu disse que não queria ter filhos, era real. Porque todo mundo tem que ter filhos? Eu não, nunca quis! Não queria nada que fosse meu. Viria com certeza, um dia, o arrependimento de tê-los tido. Um pedaço que mim vagando por esse mundo terminal. Alguém que andasse por aí, com a mesma razão minha de ser. Não e não! Quando soube de sua existência, ele já era, já tinha nascido. E eu não o quis. As coisas se encaminharam a minha revelia. Ela, a mãe, não pediu a minha opinião. Deixou que ele nascesse e pronto. Este filho foi à coisa mais sufocante que me aconteceu. Asfixiava-me os dias. Não conseguia mais ler, escrever, pensar. Fui sendo invadido por uma angústia negra, pesada, que acabou me levando a loucura.
Naquela manhã, quando estivemos passeando pelo penhasco e ele escorregou. Vi-o agarrando-se àquele galho que saia das rochas, lisas de musgo molhado. Sua mãozinha branca, lentamente escorregava e seus olhos suplicantes me pediam não sei o quê. Não era para que eu o salvasse dali, era outra coisa mais importante que isso. Talvez, que o salvasse de si mesmo. Não ouvi de seus lábios um sussurro sequer. Estabeleceu-se entre nós, uma certeza: Eu era um lobo predador e ele um cordeiro a ser imolado. Um silêncio estranho bailou no ar, instalando-se sorrateiramente em meus tímpanos. Foi o único momento, em toda a minha vida, que senti a calma em toda a sua plenitude. Ele se soltando daquele galho, me olhando tranqüilo, impassível. Não consegui interromper essa quietude para tentar agarrá-lo, nem me foi penoso vê-lo rolar o penhasco sumindo entre as pedras. O silêncio ficou no ar, como uma dádiva celestial.
Vocês devem estar achando que sou desumano, não é? Pois que pensem! Impingiram-me alguém que não era para ser. Não comigo! Eu não queria nada. Só queria estar só, como uma folha solta ao vento, sem o peso humano à carregar. Agora estou totalmente contaminado por essas lembranças que teimam em se proliferar em meus dias.
Ontem eu vi um vulto. Foi muito rápido, mas eu vi! Era ele, menino, como no último dia que estivemos no penhasco. Olhou-me de relance, parecia querer dizer algo. Quando o encarei, dissolveu-se entre as folhas. Não, não existe mal entendido algum! Era o meu menino, numa camada fina de neblina que de repente se dissolveu.
Vocês acham que isso é por causa do remorso? Nunca pensei em remorsos, não penso em nada, apenas vivo o meu silêncio.
Amanhã vou até o penhasco. Vou descer até onde ele caiu. Talvez, vendo-o novamente, eu consiga captar um pouco daquele átimo de paz que vi saindo de seu olhar.
15 Comentários:
sabes que sou tua leitora querida...
vou ler com todo carinho e tempo pra apreciar ...
adoro-te.
beijo
Por A CASA DOURADA/Leninha Sol, às 22 de julho de 2008 às 15:07
Querida amiga ,do coraçaõ;obrigada pelo presente;;como sempre li sem respirar;;muitas emoções ,O CORDEIRO;;;senti horror,raiva.
Você consegue em poucas linhas;um conto de categoria,com enrêdo fantástico;;parabéns
Beijaõ
Por Unknown, às 22 de julho de 2008 às 16:03
Querida amiga ;vi os seus bolos,maravilhosos,parabéns mil vêzes;;quanto talento;;;você é um orgulho para nossa classe MULHER
Beijaõ
Por Unknown, às 22 de julho de 2008 às 16:13
Minha linda,você realmente é fantástica...conseguiu mostrar o lado feio do ser humano com muita emoção. Infelizmente nós temos esse lado tb. Somos hipócritas e não admitimos. Parabéns!
Grande beijo nessa linda criação da letra.
Por Ana Maria, às 22 de julho de 2008 às 16:22
Puro e duro!Mais um conto, em que chego ao fim e digo_"oh!já acabou".
É talento!
Por "Scacição", às 23 de julho de 2008 às 04:27
UAUUUUUUUUUUUUUUU
ARRASOU!!! Amei!!!
Aquele início de dar inveja, com um meio que muitos desejam e ninguém confessa, e um final desconsertante.
Lá, tentarei ser menos passional, mas amei de montão.
Bjimmmmmm
Por Cell Miranda, às 23 de julho de 2008 às 21:44
"Amanhã vou até o penhasco"
Fui e vi seu olhar tranquilo diante do mundo!
Beijo grande!
Por Grazzi Yatña, às 24 de julho de 2008 às 07:23
Obrigada, obrigada! É por isso que eu escrevo.
Por O que Cintila em Mim, às 25 de julho de 2008 às 11:28
A cada conto que te leio mais te admiro, porque o que parece fácil não está ao alcance do mero mortal.
Abençoada inspiração, abençoadas essas mãos que transformam meras palavras em frases e depois parágrafos de pura delícia e por fim contos de magia total, por mais negros que possam parecer os destinos dados às palavras...
Não sei porquê, mas ficou-me na memória aquela do 'terapeuta idiota':
«quando escrevemos liberamos de nós o inferno que nos consome»
e apesar do impotente Céu que pode vir em forma de orgasmo ou mera contemplação voltamos sempre a esse mundo em chamas que precisamos apagar uma e outra vez, vezes sem parar, escrevendo, descendo todos os precípicios que se nos avizinhem sem medo de nada, porque apesar de a vida ser sempre imprevísivel sentimos que vamos sempre voltar e assim nunca desistimos!
Beijinhos, tens o dom, um assombroso dom e apetece bater palmas de pé, sem parar!
Por manuel marques, às 14 de agosto de 2008 às 14:23
Eu sempre me delicio com os comentários, rsss.
Por O que Cintila em Mim, às 14 de agosto de 2008 às 19:33
Quem é o autor desse texto?
Gostei muito.
Por Maria José Speglich, às 15 de agosto de 2008 às 02:08
Este comentário foi removido pelo autor.
Por O que Cintila em Mim, às 25 de agosto de 2008 às 21:18
Maria José a autora desse texto é essa que vos escreve, rsss.
Rachel Dias de Moraes
Por O que Cintila em Mim, às 25 de agosto de 2008 às 21:21
Então Parabéns!
Escreves muito bem!
Por Maria José Speglich, às 20 de setembro de 2008 às 18:53
Cara Maria também eu ando a ler tuas páginas bem escritas e devo dizer que tenho aprendido com elas.
Por docerachel, às 1 de novembro de 2008 às 10:22
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