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sábado, 12 de julho de 2008

A Casa da Colina

Tela de Jacek Yerka



Giacomo Splendore era meu amigo. Trabalhávamos juntos em sua firma de projetos arquitetônicos em Milão, eu como engenheiro civil, e ele, arquiteto. Ele queria mudar o mundo com sua arte assumindo uma posição aparentemente conservadora. Defendia a retomada das tradições que foram sufocadas por abstrações desumanas; projetos modernos, que se prestam mais a acelerar o mercado esquecendo-se dos problemas contemporâneos. Sua proposta estava voltada aos modelos da cidade antiga, combinando-os a recursos técnicos propiciados pela modernidade – dizia que a arquitetura devia dar respostas aos problemas dos homens, sobretudo aos problemas das cidades. Ele nascera na velha Sicília, numa cidade de arquitetura medieval, chamada Castelmola. Talvez por isso sua preocupação em conservar o velho jeito de olhar o mundo.

Seus pais, Archebaldi e Prisciliana, tinham uma plantação de oliveiras que se mantinha produtiva, desde a época de seu tataravô. Era uma tradição familiar que fazia questão de manter nos moldes antigos. Mostravam total preocupação com a qualidade das azeitonas e do azeite. Quem cuidava dos olivais era um filho adotivo de nome Severo. Archebaldi achou-o revirando lixo, quando embarcava caixas de azeite no porto de Palermo. Perguntou aos moradores da região se alguém conhecia a mãe do pequeno, mas não conseguiu saber nada, nem do menino, nem dela. Ele tinha mais ou menos cinco anos e só sabia que se chamava, Severo. Não querendo cometer uma injustiça, carregou o pequeno para viver com a família.

Giacomo e sua irmã, Isobel, adoraram esse menino que chegou para somar em suas brincadeiras, mas Severo era muito quieto, mais parecia um bichinho. Foi crescendo ali, no meio das oliveiras, sempre sozinho, rodeado de sombras. Não conseguiu manter laços de ternura com ninguém da família, e não quis estudar como os irmãos adotivos. Isobel tinha feito faculdade de música e tocava cielo na catedral da cidade. Também tinha uma pequena fábrica de azeites aromáticos para massagem e sabonetes de azeite e ervas silvestres. A mãe de Giacomo, dona Prisciliana, era uma extraordinária mulher siciliana. Além de fazer todas as delícias típicas da região para manter o calor e a união da família, ajudava Isobel a cuidar das embalagens da fábrica.

Quando Giacomo foi para Milão abrir a firma de projetos, Severo se fechou de vez. As coisas na casa da colina, como era conhecida começaram a modificar. Giacomo recebia de vez em quando cartas de Isobel alertando-o quanto ao comportamento estranho de Severo. Ele se fechara numa concha depois da partida do irmão, não permitindo mais que Isobel fosse até as lojas das cidades atender sua clientela. Milão não fica perto da Sicília, assim sendo, Giacomo não podia resolver essas coisas que aconteciam por lá como gostaria. Ele escreveu umas vezes a Severo, mas nunca obteve uma resposta sequer. Escreveu uma vez ao pai alertando-o quanto ao comportamento de Severo para com Isobel. Uma semana depois recebeu a notícia da morte de Archibaldi.

Fui com ele ao velório em Castelmola. Nesse dia, conheci sua família. Isobel era linda e morena, tinha um jeito meigo e um sorriso deslumbrante, apesar da tristeza do momento. Ela parecia feliz em ver o irmão. Confesso que me encantei pela pequena. Severo era truculento, talvez por seu trabalho nos olivais. Tinha uma cara marcada de vincos, pele queimada pelo sol, parecia ter mais idade que a que realmente aparentava. Mal me cumprimentou, virou as costas e puxou Isobel para um canto da capela, onde todos estavam velando o velho Archibaldi.
Dona Prisciliana, muito quieta, olhava a cena triste e pensativa. Giacomo, depois do enterro, foi falar com o irmão. Eu olhava de longe.

- O que está acontecendo por aqui, Severo?
- O que você quer dizer com isso?
- As coisas mudaram depois de minha ida à Milão. Parece que tem muita gente infeliz nesta casa!
- Conversa de quem não tem nada o que fazer. O pai já não está mais aqui para dar suas ordens e eu sou o encarregado de tocar a produção de azeite. Isobel pensa que a vida é um mar de rosas, só quer estar de uma cidade a outra com suas besteiras perfumadas.
- Mas, que eu saiba, essas besteiras são o trabalho dela!
-Que trabalho! Aquela fabriqueta é um pretexto para ela se debandar por aí. E com cielo é a mesma coisa! Quem precisa ouvir aquela porcaria.
- Essa fábrica pode crescer e ser uma maneira dela se sustentar. E tocar cielo é uma arte e ela tem que tocá-lo, pois essa é a sua vontade, ela ama a música! O papai nunca nos proibiu de nada, nem a você. Se não tens estudo, não foi por culpa nossa, foi escolha sua!
- Bobagens, eu não preciso dessas bobagens! Acabou o interrogatório? Se acabou, me dê licença, pois tenho muito o que fazer.

Vi quando o Severo virou as costas, deixando Giacomo desconsertado. Depois desse confronto, meu amigo foi consolar sua mãe. Fez-me um sinal para que eu fosse junto com ele. Sua mãe estava com os olhos vermelhos, tinha no semblante uma tristeza infinita. Abraçaram-se.

- Mamãe, o que aconteceu com o papai? Até agora eu não entendi direito!
- Pois é, depois que você escreveu a última carta para o papai, ele me disse que aquilo tudo que estava acontecendo, os desmandos todos de Severo para com Isobel estavam na hora de terminar. Severo estava morrendo de inveja de você e ciúmes de Isobel. Foram até o penhasco no fim da colina averiguar um deslizamento de pedras. Depois disso, Severo retornou com o seu pai nas costas, dizendo que ele havia sofrido uma queda; justo Arquibaldi! Giacomo, meu filho acho que alimentamos uma cobra nesses anos todos!

Depois do enterro, voltamos à Milão. Giacomo deixou com a mãe, uma promessa: Dali em diante, visitá-los mais vezes. Talvez, tendo o irmão, sempre presente, Severo se intimidaria em executar suas loucuras. Acontece que quando chegamos à Milão, encontramos vários clientes querendo projetos para ser feitos. Caímos de cabeça na prancheta e o tempo foi passando. Depois de seis meses de intenso trabalho, uma manhã, Giacomo recebe um telegrama dizendo que sua mãe falecera. Aquilo foi um baque para meu amigo, há tempos não o via em tal estado de prostração. Novamente fui com ele à casa da colina.

Severo estava mais frio do que nunca. Parecia o dono do lugar e de Isobel. Quando me viu, ficou lívido, de seus olhos chisparam faíscas de ódio. Giacomo estava desolado, não entendia como uma mulher como sua mãe pudesse em tão pouco tempo, depois da morte do seu pai, morrer da mesma maneira que ele; despedaçada no fundo do penhasco. Severo foi que a trouxe lá de baixo, assim como fez com o pai.

Isobel estava diferente, tremia e chorava, parecendo apavorada por alguma coisa que não queria nos contar. Ficamos com eles por dois dias somente, pois tínhamos que responder aos clientes que nos pediam urgências nos projetos. Fomos com o coração nas mãos. Eu vi o olhar desesperado que Isobel lançou para mim, parecendo querer me transpassar para que eu adivinhasse algo terrível que estava acontecendo. Falei com Giacomo sobre isso, mas o que podíamos fazer diante de tantas cobranças, afinal, era de Milão que saia nosso sustento.

Do azeite, Giacomo não estava recebendo mais nada, pois Severo dizia que a safra tinha sido péssima, que as oliveiras precisavam descansar e que não sei mais quantas desculpas para não mandar a parte do lucro da produção. Giacomo, com muito custo e pesar, me disse que colocaria tudo à venda, ainda àquele ano. Dois meses depois daquela tragédia, nós dois aparecemos sem avisar na casa da colina. Nos hospedamos num hotelzinho chamado Villa Regina, barato e discreto, pois não era nossa intenção ficar aparecendo. À tarde alugamos um carro pequeno e subimos até a casa da colina. Estacionamos atrás do muro que separava a casa das oliveiras. Tudo estava quieto, fizemos o maior silêncio para entrar na casa.

Subimos até o andar superior onde ficava os quartos e as portas estavam fechadas. O quarto de Isobel estava vazio. Fomos até a porta do quarto de Severo e o ouvimos roncando a sua sesta. O quarto dos pais do Giacomo estava vazio, pensamos que talvez ali estivesse Isobel. Descemos para a cozinha e não a encontramos. Eu comecei a ficar preocupado, lembrei-me daquele olhar suplicante que não pude atender.

Giacomo pegou uma chave na gaveta de talheres da cozinha e fomos até o porão. Ali com certeza ela não estaria, pois detestava aquele canto da casa. Dizia que era muito escuro e cheio de ferramentas velhas e que não sabia porque, aquele lugar lhe dava calafrios. Descemos as escadas de pedra, mal iluminada. Aquele lugar cheirava tumba de cemitério. Era frio e fantasmagórico. Num canto escuro, havia uma pequena cama de ferro. Ouvimos um leve sussurro. Meus pêlos levantaram-se imediatamente. Ali em baixo o espaço parecia sem limite, sem contorno, sem cor. Por cima da pequena janela de barras de ferro, uma claridade amarelada, espalhava desenhos lúgubres dos galhos de uma oliveira, que ficava cada vez mais comprido à medida que o sol se punha no horizonte. De repente aquelas sombras se transformaram em nódoas pardacentas. Por baixo, ao rés do chão, estendia-se uma sombra cada vez mais baça, mais cinzenta, até que formava uma grande mancha escura, como se um rio de sangue nascesse ali naquele lugar. O último raio de sol iluminou o rosto de Isobel, que amarrada a catre, nos olhava com insondável tristeza.

Subitamente ela começou a chorar. Giacomo abafando um grito, a tomou nos braços, eu desatei as amarras de suas pernas. Ainda confuso com tudo aquilo, fui subindo meu olhar, duro, atormentado, parando no rosto de Isobel, que temia o barulho do choro. – Oh! mágoa! oh! desespero! Ver e não querer olhar! Isobel, linda, de sorriso inebriante estava com os braços decepados. Giacomo desesperado enrolou o corpo da irmã numa manta e saímos dali daquela masmorra infernal. Uma imensa massa de sombra foi sendo arrastada conosco. Sem fazer nenhum rumor, descemos até o lugar onde estava o carro. Giacomo colocou Isobel em meu colo. Meu peito arfava de dor, e dele foi crescendo uma onda como duma maré devoradora. Isobel, sem os braços, em sua beleza crepuscular, se contraia em meu peito, exprimindo amor e terror.

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