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sábado, 6 de agosto de 2011

O Desconhecido


Tela de Zdzislaw Beksinski


Desci do avião apressada e fui direto ao setor de bagagem apanhar minhas malas. O aeroporto Roissy ficava uns bons quilômetros de Paris e eu ainda tinha que passar pela Galerie Roy Sfeir. Minha primeira exposição em Paris tinha de ser perfeita. Assim que estava para pegar um táxi, meu marchand ligou avisando que a tela “O desconhecido” havia desaparecido. Justamente essa tela, a que eu mais gostava. Pintá-la tinha sido uma coisa bem estranha. Sonhei com esse desconhecido e tive que pintá-lo de imediato. Nem era para essa tela estar nessa exposição, pois foi pintada em cima da hora, mas por causa do sonho, fiz o impossível para incluí-la na mostra.

O sonho foi como uma premonição, dessas que não te deixa parar pra pensar. Eu estava em Paris e visitava algumas galerias de arte, quando vi, refletido na vitrine de uma das galerias, um homem alto, moreno com grandes e expressivos olhos verdes. Estava vestido de preto e uma longa capa o protegia. Percebi que ele não estava olhando à vitrine, mas sim, a mim. Virei-me e o encarei fazendo uma expressão de pergunta com a cabeça. Ele baixou os olhos e me pediu desculpas pelo atrevimento. Disse que gostaria de me mostrar algo. Mostrou-me um pedaço de papel amarelado e sujo, onde estava escrito com letras tremidas um endereço. Eu conhecia o lugar, era de uma loja de molduras de gesso. Eu já estivera nesta loja, justamente por causa das belíssimas molduras. Quando ele me passou o papel, levantou os olhos, sorriu e me pediu ajuda dizendo: “Por favor, estou sufocando, não sei quanto tempo ainda vou agüentar”. Acordei transpirando e a apavorada. Sentia o contato do bilhete entre os meus dedos, mas ele já não estava mais ali, tinha ficado no sonho. Assim que me levantei fui preparar uma tela para pintá-lo. Confesso que foi um dos meus melhores trabalhos. O rapaz era muito expressivo e com certeza, eu havia capturado a angustia que ele carregava na alma.

Saí do aeroporto e procurei um táxi para me levar ao hotel. Foi quando eu o vi parado perto de um café, do outro lado da rua. Olhava-me aflito, como se quisesse falar algo. Eu quis atravessar a rua para ter com ele, mas não podia abandonar as malas na calçada. Fiz sinal para um táxi que se aproximava e quando me virei para pedir que esperasse, ele não estava mais. Depois disso, durante a viagem até o hotel, eu tremia sem controle. O motorista me perguntou se eu estava me sentindo bem, o que respondi que achava ter visto um fantasma. Ele sorriu, e respondeu que o que mais havia em Paris eram fantasmas. Deixou-me no hotel e me deu seu cartão para quando eu fosse precisar de seus serviços.

Arrumei as minhas coisas e telefonei ao marchand que me orientou sobre a exposição. Perguntei se já tinham achado a tela desaparecida, mas ele ainda não sabia de nada. Eu tinha dois dias para visitar Paris e fazer compras, enquanto a galeria preparava a vernissage. Fui a uma loja comprar um vestido para a ocasião. Enquanto experimentava algumas roupas no provador, a cortina se abriu e o desconhecido apareceu. Quase tive uma sincope de susto. Fiquei paralisada, sem saber se me cobria, ou deixava o vestido cair no chão.  Ele agarrou o meu pulso e falou:
- “Apresse-se, eu não estou agüentando mais!”. Fechou a cortina e desapareceu. Sai correndo atrás dele, ainda com o vestido da loja, mas ele tinha evaporado. A vendedora correu para a calçada e me segurou pelo braço assustada. Acalmei-a, dizendo que tinha visto um conhecido na loja, mas ele saiu sem que pudéssemos nos falar. Ela me olhou desconfiada, pois jurava não ter visto ninguém mais entrando na loja. Comprei o vestido e fui para o hotel. Tentei fazer com que os meus neurônios se entendessem. Aquilo tudo estava me deixando sem chão.

 Voltei a pensar no sonho e no papel amarelado, manchado de algo que parecia sangue. Tomei uma decisão. Conhecia o local que indicava o bilhete no sonho, e sem pensar duas vezes, fui para lá. Ficava mais ou menos a uns quatro quarteirões do hotel, e resolvi ir caminhando até lá. Acontece que era sábado e estava ficando tarde, o comercio começara a fechar. Abririam somente na segunda feira. Os meus dias de folga teriam acabado até lá. A loja era exatamente a do endereço que eu havia visto no bilhete do sonho, mas como eu previra, estava fechada. Tinha uma grande porta de vidro na entrada e uma vitrine com muitas molduras exposta ao lado. Fui até os fundos da loja e bati na porta, quem sabe ainda tivesse alguém lá dentro, mas ninguém veio atender. Espiei por uma pequena janela o interior e nada, nenhum ser vivente por lá. Resolvi dar uma de ladra e comecei a forçar a fechadura com um grampo. Tentei, tentei, mas não estava dando certo. Estava quase desistindo quando ouvi um clique sutil dentro da fechadura. Abri, eu nem acreditei.

A loja estava escura. Eu não queria acender as luzes para não delatar a minha presença. Procurei nas gavetas por uma lanterna e, por sorte, encontrei. Ficou mais fácil entrar na escuridão que já se alastrava pelo ambiente. Havia a sala principal, onde se atendia a freguesia, com varias molduras de amostra pelas paredes e uma mesa grande com a registradora e papeis e notas. Havia outra salinha, onde eram feitas as molduras. Vasculhei cada canto da loja e não vi nada que me parecesse suspeito. Estava saindo quando reparei num saco de gesso rasgado. Faltava um pedaço do papel e era amarelado como o do bilhete do sonho. Fiquei em alerta.

Comecei a bater com um martelo nas paredes, tinha que achar uma pista naquele lugar. Numa das paredes havia restos de gesso que tinha sido mal varrido. Era uma boa pista e eu me concentrei nessa parede. Eu não sabia se metia o martelo e arrebentava tudo, ou dava o fora dali, antes que tivesse outra daquelas visões estranhas. Comecei a martelar e me pareceu que tudo ali estava mole, recém feito. Deu dó de arrebentar aquele lindo afresco, mas foi o que eu fiz. Se alguém aparecesse naquele momento eu ia parar na delegacia e adeus exposição. Arrebentei um bom pedaço da parede, o suficiente para eu poder entrar e dar uma vasculhada. Era um corredor escuro e estreito. Fui me esgueirando rente à parede. Andei uns cinco metros e parei em frente a uma portinha de ferro com cadeado. Ainda bem que estava com o martelo, três pancadas, e ele cedeu.

Entrei com cuidado na pequena sala escura. Era úmida e sem janelas, com o chão de terra batida. Preso na parede, amarrado com cordas a duas argolas de ferro, estava o desconhecido desmaiado. Eu não acreditava no que estava vendo ali. Desatei os nós das cordas que o amarravam e ele desabou no chão. Peguei meu vidro de perfume na bolsa e encostei-o no nariz dele. Foi acordando aos poucos e quando me viu, abraçou-me quase chorando. Dizia palavras desconexas, falava sobre um ritual de reencarnação feito numa Loja Maçônica. Eu o ajudei a se levantar e pedi que saíssemos dali o mais rápido possível, pois quem tivesse armado aquela arapuca, com certeza, estaria por perto. Fomos para o hotel, mas desta vez preferi pegar um táxi. O saguão estava vazio e foi fácil entrar no elevador sem sermos vistos.

Já instalados em meu quarto, pedi ao serviço de quarto que mandasse uma refeição leve. Achei que pela cara dele, deveria estar morto de fome. Depois de vê-lo com mais cor, perguntei sobre a história do ritual. Vi que ele se encolheu todo, mas eu tinha que saber, pois já estava envolvida até a alma. Segurei suas mãos e disse: Fale-me do ritual. Eu não sabia que os maçons faziam... Antes de terminar a frase ele me interrompeu dizendo:
- Fazem. É feito por um grupo dissidente, a revelia da Loja principal. Esse grupo está de acordo com o Antigo Templo de Osíris, uma seita egípcia extremamente secreta.
- Eu jamais ouvi que Osíris tinha voltado do Vale dos Reis para se unir aos maçons.
- Usam um sistema místico onde contém doutrinas secretas cabalísticas e astrológicas para fazer a passagem da reencarnação.

Se ele não estivesse na minha frente fazendo aquela explanação maluca, e eu já não tivesse  presenciado com os meus próprios olhos, não acreditaria em nenhuma palavra dele. Precisava tomar uma dose de conhaque. Estava travada, nem conseguia andar direito. Como era possível trazer um morto para a vida novamente? Ele me dizia cheio de entusiasmo sobre as grandes descobertas desses dois grupos. Falava de um treino mental de longos anos que ligava o consciente e o inconsciente. Todo o caminho levava a pessoa escolhida para dentro de um sonho e de lá para a vida real. Quando ele falou em sonho, dei um grito.
- Sonho? Mas você estava em meu sonho!
- Sim, eu estava! Foi como um relâmpago para todos nós que participávamos da passagem no ritual. Depois, quando você me pintou na tela, estava tudo completo.
- Minha tela, a que sumiu?
- Sim, eles a esconderam, para que eu voltasse, mas eu me rebelei, depois de te ver no sonho. Eu me apaixonei por você. Eles disseram que era somente uma experiência, que eu teria que voltar.
- Minha nossa! E o que o quadro tem a ver com isso?
- Preciso estar sempre com ele por perto, é como uma segunda pele, sem ele, minha presença neste plano se torna insustentável.
- E onde eles estão agora?
- Provavelmente, tentando me achar, para fazer o meu transporte ao seu sonho.
- Ah, meu deus, me dê um beliscão, não, me dê um tapa na cara para eu acordar agora! Explique-me uma coisa, por que você estava preso naquela masmorrinha sem ar?
- Eles estavam se desentendendo quanto a eu ir de volta, ou não. Os maçons eram contra a minha reencarnação neste momento, e os seguidores de Osíris, não. Os de Osíris sumiram com o quadro e os maçons me prenderam. Quando iriam resolver a questão, eu não sei. Só sei que daqui eu não saiu.

Enquanto conversávamos, percebi que ele estava ficando fraco. E naquele instante, tive uma das minhas ideias repentinas.
- Vou pintá-lo novamente! Vai dar certo, tenho certeza. Ele me pediu uma caneta que pudesse escrever na parede e eu lhe dei meu estojo de hidrográficas. Enquanto eu preparava as tintas, ele escrevia hieróglifos pelas paredes do quarto. Disse que cada grupo de sinais era uma chave para se sair do Vale dos Mortos. Eu peguei meu material de pintura, mas não tinha uma tela. Nossos olhos foram juntos a uma cópia de Miró que estava numa das paredes. Eu disse:
-Serve, essa tela vai ser perfeita! Depois de passar uma base branca sobre a tela, comecei o retrato. Enquanto ele falava um mantra, se concentrando nos sinais das paredes, a sua imagem era impressa com fidelidade na tela. Percebi que em cada etapa terminada, um sinal desaparecia da parede, e ouvíamos vozes egípcias no ar. Tudo ali estava encantado, aqueles hieróglifos realmente tinham um poder grandioso. Depois de mais ou menos duas horas, o retrato estava pronto e as paredes estavam intactas, apenas o quadro era outro. Pedi na recepção, que cobrassem a cópia de Miró, o que foi feito e não teve problemas para mim.

Minha exposição foi um sucesso. O desconhecido ficou o tempo todo comigo. Muitos quiseram comprar o seu retrato. Era enigmático e de uma beleza diferente. Foi a única tela que trouxemos de volta para casa. Estamos juntos agora, completamente apaixonados. O quadro está bem guardado, longe de olhares curiosos, que por ventura, queiram decifrá-lo.

Ontem eu tive outro sonho estranho. Era sobre uma menina, provavelmente de alguma corte da Europa. Assim que acordei, corri para pegar uma tela e pintá-la.