Tela de Magritte
Há dias, tenho visto sombras incompreensíveis se erguerem ao meu lado. Finjo não as ver, mas sinto uma melancolia tão grande, tão profunda, que o meu sangue chega a gelar. Digo a mim mesmo que isso não significa coisa alguma, que é apenas mais uma das artimanhas de minha imaginação.
A cada dia, sinto minha alma sendo soprada por uma solidão abismal. Coisas inexplicáveis têm me acontecido ultimamente. Agora mesmo, estou nessa loja de departamentos. Há mais de uma hora, encostado nesse balcão, tentando achar uma gravata para ir ao casamento de minha irmã, e ninguém se dirigiu a mim perguntando se preciso de ajuda. No mês passado, quando vim comprar cuecas, a atendente veio cheia de sorrisos e gentilezas, e me mostrou a loja inteira.
Sinto-me perdido, como se estivesse vagando num deserto. À noite, ouço os mais sutis sons do mundo. Invoco aos anjos, uma proteção, e sinto meu sangue se inflamar, tenso. Nada acontece, só a escuridão permanece inalterável.
Ontem, sonhei que entrava num bosque de árvores antigas, e atrás de cada uma delas, havia uma pessoa me observando. O chão era transparente e eu podia ver pessoas vivendo lá embaixo, como num vendaval. As árvores desapareceram e só ficou um campo gramado, cheio de sapatos perdidos. Acordei com alguém me chamando. Parecia a voz de minha mãe. Depois a ouvi chorando, enquanto rezava. Para dizer a verdade, tenho a impressão de estar o tempo inteiro dentro de um sonho.
Hoje estive naquele restaurante chinês, que fica aqui em frente ao meu prédio. Enquanto esperava a minha vez de ser atendido, fui literalmente ignorado. Estava me sentindo um idiota. A velha chinesa, dona do lugar, gesticulava com o cozinheiro dando ordens e ordens, sem se importar comigo, ali parado, esperando. Nervoso, me virei, de repente, para sair do lugar e esbarrei num arranjo de flores, que foi de uma ponta a outra da mesa. As pessoas que estavam nas mesas em torno, olharam com espanto. Pedi desculpas e sai do restaurante bem chateado. Fui para o meu apartamento esquentar uma pizza congelada.
Quando entrei na sala, levei o maior susto. Costumo deixar as minhas coisas em desordem enquanto trabalho tudo esparramado pelo chão, e em cima da mesa. É o meu jeito de encontrar o que eu preciso, sem ter que ficar vasculhando pilhas de papeis com anotações. Bem, a sala estava completamente limpa e organizada, como nunca esteve. Até o pó foi aspirado e as cortinas, que sempre ficam fechadas, agora estavam abertas. Pensei que, talvez, a minha irmã tivesse estado ali, e com sua mania de limpeza, havia feito a festa. Até flores num vaso ela deixou. Senti-me ilegal dentro de minha própria casa.
Começo a desconfiar de todos agora. O porteiro, que sempre foi gentil comigo, quando saí do prédio, fingiu não me ver quando passei pela portaria. Vi minha irmã entrando num táxi e gritei seu nome. Queria agradecer a arrumação do apartamento, mas ela entrou no carro sem ouvir os meus gritos. Ou ela ficou surda, ou não sei mais de nada.
Às vezes, penso em dormir e nunca mais acordar. Tenho sentido um frio aterrador, principalmente à noite. Deixo o aquecedor ligado, mas de nada adianta. Devo ter pegado uma virose fenomenal. Amanhã vou ao meu médico ver isso.
O que mais me impressiona é esse silêncio a minha volta. Não tenho escutado nada, nenhum ruído. Às vezes penso estar ouvindo uma canção, mas sinto que é só dentro de minha cabeça. Estou doente, essa é a questão.
Agora mesmo, quando entrava no hall de meu apartamento, ouvi perfeitamente um grito de dor e desespero. Parecia a voz de minha mãe me chamando. Entrei aos tropeções pela sala e você não vai acreditar. Não havia viva alma ali. Silêncio absoluto. De repente um nevoeiro saiu da porta de meu quarto, me cobrindo. Ouvi vozes abafadas e acho que desmaiei. Na queda bati com a cabeça na mesinha de mármore. Por incrível que pareça, quando acordei do desmaio, passei a mão na cabeça procurando o galo, e nada, nem galo, nem dor. Começo a rir de mim mesmo. Acho que estou ficando doido.
Tentei marcar uma hora com o meu médico, mas, por mais que eu articulasse as palavras, a maldita assistente dizia que não estava conseguindo me ouvir. Desisti do telefone e resolvi ir sem marcar hora. Sempre tem desistência e eu pediria um encaixe. Chegando ao consultório subi correndo os dois lances de escada. Cumprimentei a assistente e pedi, se possível, que o doutor me atendesse com urgência, pois estava me sentindo muito mal. Ela olhava para mim com a cara mais lavada do mundo. Não mexeu um dedo sequer para discar para avisar que eu estava ali. Somente quando eu me sentei e peguei uma revista da mesinha, ela deu sinal de vida e saiu quase correndo para a sala do médico.
Ouvi-os discutindo. Pensei: “Ela deve estar tentando me encaixar, é isso”. Mas, que nada. O que aconteceu foi que os dois saíram da sala com os olhos arregalados. Olharam-se, depois foram até o corredor, espiaram, foram até o banheiro, a cozinha, em seguida, cada um voltou a seus postos. Imaginei que seria chamado em seguida. Tinha que ter paciência. Peguei outra revista e como já a havia lido, joguei-a sobre a mesinha. A assistente deu um pulo, pegou a sua bolsa e saiu correndo para a rua. Isso me deixou bem nervoso. Nunca vi tanta falta de respeito para com um paciente.
Esperei mais um pouco, e já bem chateado com a demora, bati na porta e fui entrando. Ele estava escrevendo em uma ficha e nem se dignou a me olhar. Esse estado de surdez das pessoas devia ser um surto mesmo. Pelo jeito, eu teria de ficar ali plantado por um longo tempo, pois ele estava mais interessado naquela ficha.
Mesmo sabendo que ele não estava prestando atenção em mim comecei a falar dos problemas que me afligiam. Eu falava e falava e ele totalmente indiferente. Não suportei mais e me sentei na cadeira giratória em frente a sua mesa. Quase fora de mim falei bem alterado: “Mas o quê é que está havendo por aqui, posso saber? Sempre fui bem atendido, e agora isso. Nem sequer me olham na cara. Sua assistente endoidou lá na recepção. Acaba de descer as escadas, acho que pelo corrimão. E o senhor, francamente, parece que se alienou por completo nessas fichas”.
Ele continuava mudo. Devia ser de propósito. Só para me irritar. Não aguentei mais e dei um murro na mesa, o que fez o porta-lápis voar longe se espatifando na estante de livros. Bem, posso te garantir que foi um susto e tanto que eu dei a ele, pois pulou da cadeira e foi se esquivando de costas, completamente apavorado. Eu fiquei ali, sem saber o que fazer. Esperei um pouco para ver se ele retornava e enquanto esperava dei uma espiada na maldita ficha que ele tanto olhava.
Era uma ficha de paciente, com todos os dados de todas as consultas. Um resumo das doenças, coisa e tal. O que me deixou sem chão foi ler o meu nome na ficha com o motivo de minha morte.
3 Comentários:
Sensacional!
Ao meio do teu texto...eu já imaginava que eras apenas um vulto do que tinhas sido.
Ai Rachel...como consegues prender a atenção e nos deixa levar do sonho à realidadde.
Parabéns,além de poeta és excelente contista.
Beijinhos com minha profunda admiração.
Por Dolores Jardim, às 26 de janeiro de 2012 às 18:08
Este comentário foi removido pelo autor.
Por Cristal de uma mulher, às 25 de fevereiro de 2012 às 11:29
Grande escritora, um texto de classe digna de ti querida amiga
Sem palavras !!!
Sonhar os sonhos é nossa página viva
Beijo
Por Cristal de uma mulher, às 25 de fevereiro de 2012 às 11:30
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