.

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Os Ratos


 Fotografia de Naava Bassi


Depois de ter perdido minha carona para casa, resolvi ir andando, e como estava com a máquina fotográfica, aproveitei para tirar umas fotos para o meu trabalho sobre os estilos arquitetônicos do século XIX e XX para o meu curso de arquitetura.
Meu interesse recaía sobre o "art nouveau", pelo neo-colonial e o "art-deco", todos  bastante expressivos nessa região da cidade.

 As entradas de mármores e os portões de ferro retorcidos, formando flores e pássaros, agora estavam protegidos por grades. Faziam isso para afastar os mendigos que dormiam à noite por ali. Pensei em minha estúpida pretensão em ser arquiteto numa cidade abandonada e violenta como esta. Por onde quer que eu passe há um olhar atravessado em cima de mim.

Acabo de ver uma mulher nua, tomando banho numa fonte. Ela não me vê. Acho que não vê mais nada. Está grávida e delira enquanto balança os cabelos molhados. Ao seu lado está uma figura tenebrosa, mais parece um espantalho de filme de terror. Ele devora um pão e cascas de laranjas. São tantas pessoas estranhas que vão surgindo na ronda de minha noite, que já não sei se estou num pesadelo, ou numa realidade paralela. Um menino me chama e eu finjo não ouvir sua súplica melosa querendo um trocado para inteirar entre seus muitos pedidos desesperados para ter um lanche.

O palacete onde moro aqui em Higienópolis foi o último pedido extravagante de minha mãe e o meu pai atendeu. Ele é todo imponente, cheio de classe e grande o suficiente para as suas festas. Eles só não contavam com esse bando de esfomeados usando essa parte da cidade de alojamento. Ela dizia que ter que aturar essa gente nojenta quando voltava do teatro, ou dos restaurantes, era o fim e que acabava estragando todo o programa. Tinha pavor dessa atmosfera de fim de feira, um infernos para chegar em casa sem atropelar um infeliz.

O que eu sinto é que a situação por aqui está sem controle, nem em Sodoma e Gomorra a coisa devia andar como aqui. Caralho! Pisei no pé de alguém. Um menino me olha e fala: “Tio, tio libeta dois real?” São um bando de pirralhos que estão se chapando de crack.  Onde há pessoas, há coisas, e eu vejo muitas. Aqui o mundo está revirado numa grande lata de lixo.

Um homem com a boca sangrando vem em minha direção. Seu olhar é delirante. Quando ele chega perto, vejo um fio grosso dependurado em sua boca. É o rabo de um rato. Meu Deus, o que está acontecendo com o mundo? Quase vomito enquanto sua risada diabólica reverbera em minha cabeça. Corro para o meio da avenida e paro quase sem fôlego em baixo do viaduto. Demorei pra perceber que duas pessoas copulavam escondidas num cobertor cinza, imundo. Se eu admiti o cara que comeu um rato, tinha que admitir esses que estão se fodendo aqui.

Tenho que pensar que eu sou uma pessoa com coisas e eles são pessoas sem coisas. Essa é a questão. A mulher grávida vem em minha direção. Grita gesticulando: “Hei seu vagau, filho da puta! Veio tirar uma com a nossa cara? Aposto que é de alguma ONG nojenta que só embaça pro nosso lado. Fazer alguma coisa que preste...ahahah, nem pensar!”

Saio correndo e acabo tropeçando nos corpos de duas crianças que dormem sob um papelão cheirando a mijo. Um cão sarnento late e tenta me morder, mas eu dou-lhe um chute na cabeça e ele recua. Eu não sei onde estava quando dispensei minha carona. Não devia ter deixado de pegar o meu carro na revisão. Essa história de querer fotografar à noite está por fora. Isso aqui é o purgatório. Sinto que estou sendo seguido desde o viaduto. O que é aquilo que vem vindo? Mas é um garoto com os dois braços decepados! Começo a chorar, meu cérebro começa a ficar liquefeito, é muita coisa pra ele administrar só numa noite. O que está acontecendo nesta cidade? Por que tanta gente morando nas ruas, e vivendo como animais? Só se drogando mesmo pra aguentar essa parada!

Queria saber onde estão os responsáveis por essa balburdia descontrolada. Agora sou eu que tenho que me preocupar com isso? Meu pai paga uma nota preta de imposto. É por essas e outras que eu não boto fé em político. Eles e suas vidas perfeitinhas, que nojo! Esses seres que se arrastam pelas sarjetas, drogados, famintos, que dormem em buracos e marquises, sob papelões úmidos de mijo, não são mais gente, são lampejos que não iluminariam uma vela sequer. Uma vez ouvi o meu pai conversando com uns desses políticos manda-chuva, numa daquelas festas que rolam lá em casa à beira da piscina. Diziam não querer saber nada sobre o tráfico, e esses drogados que pululam a cidade – que se estropiassem de vez, esses ladrõezinhos. A proposta de um deles era fazer uma faxina geral usando as ONGs que trazem sopa. Dizia com a boca cheia: “Veneno na hora dessa maldita lavagem seria a solução perfeita para dar cabo dessa gentalha. E seria no inverno. Eles aparecem como ratos encantados pela flauta mágica. Como se chama aquela história, mesmo? Aquela do alemão que encanta os ratos e eles se afogam no rio, comigo eles iam se afogar na sopa”. Falava isso e todos caíam na risada. Esses são os amigos de meu pai.

Quando eu indago o motivo dele dar confiança pra essa corja de políticos, ele vem com essa: “O inimigo do meu inimigo é meu amigo, por isso sempre ganho minhas batalhas no mundo dos negócios. Vale tudo, meu filho, pra se conseguir o que queremos. Você é muito jovem para entender como esse caminho do poder age, mas um dia vai estar fazendo exatamente o que eu faço, e talvez, muito melhor”. A primeira vez que eu ouvi isso eu quis ser político pra mudar essa visão de mundo. Nesse dia eu conheci um lado de meu pai que não era humano. Vi na sua alma a mesquinha ansiedade de um homem que não quer ver.

Não existe mais nada que possa me fazer feliz de agora em diante, espero não envelhecer esperando por esse milagre. Tudo isso que acontece no país, na cidade e na minha casa, acontece a minha revelia. Não consigo achar uma solução que não vá abalar a estrutura dos poderosos pra mudar de vez esse estado de coisas. Essa doença tem remédio, mas quem tem que pagar por ele está cego, não quer nada com nada. Essas pessoas estão sem chance, e mesmo que se fizesse algo por elas, nessa altura de suas vidas, seria quase nada. Elas já não pensam mais, não tem mais nada dentro delas, estão ocas. Espero voltar a essa questão mais tarde, quando chegar em casa. Quero estudar uma maneira e conversar no Diretório da Faculdade. Temos que descobrir um jeito de fazer essa gente ter uma vida, um lugar, uma janela pra olhar, senão eles, ao menos os seus filhos. Só espero não concluir o que desconfio há tempos, ‘que estamos perdidos’. Quantos governos entram dizendo que farão acontecer a saúde, a educação, blá, blá, blá...e nada, cada vez fica pior. Pronto, cheguei em casa. É aqui que eu moro e, francamente, tenho vergonha de entrar numa casa dessas depois de ver o que eu vi, chega a ser uma piada. Vou precisar de um período de incubação no silêncio para digerir tudo isso.

Alguém ri ironicamente na calçada. Entro rapidamente e tranco a porta. Todos estão em casa. Meu pai está ouvindo ópera na biblioteca tomando seu whisky doze anos, provavelmente pensando em sua boa vida de divertimento, viagens e amores extraconjugais.  Minha mãe está no banho, numa banheira de espumas tendo sua noite de Cleópatra depois de voltar do teatro com as amigas do Lions Club, e minha irmã está no telefone, se desmilinguindo em verso e prosa com o abestalhado do namorado que está pra ir pra Sorbone fazer seu doutorado.

Quebraram o vidro da porta. Meu pai vai ficar uma fera, pois esse vitral veio da Bélgica feito pelos melhores artistas da Europa. Minha irmã deu um grito e largou o fone no chão. Eu deveria estar esperando por essa surpresa, pois fiquei totalmente sem reação. A porta da sala foi arrombada, não sei como, uma porta de jacarandá maciço, toda entalhada, voou.  Agora está no chão. Um campo de guerra foi instalado pela casa toda. Eles foram entrando. Criaturas disformes, apavorantes. Vinham com muitos gritos, todos insones, era a abertura do inferno, sangue e peçonha, coisa medonha de se olhar. Reconheci muitos deles ali naquele momento de terror.

Um vento dissonante entrou pela porta escancarada trazendo um cheiro fétido que me deixou sem fôlego. Um homem sem os dentes da frente, com um pedaço de pau, veio pra cima de mim, mas a moça grávida, aquela que parecia doida, gritou: “Ninguém toca no vacilão!” Olhou-me maliciosamente, agarrou o meu saco e disse: “Aí sarado, viemos invadir sua praia, vamos zuar geral, fique na moral. Nem pense em chamar os meganhas, se uma nave baixar por aqui vai rolar espeto. Pra gente fritar todos daqui, basta um dedinho meu se levantar”.

Todos foram pra cozinha. Gritavam por cada torta, mousse, carne assada que achavam. Abriam, cheiravam e arrebatavam cada comida encontrada. Arrebentaram toda a despensa e a adega. Cada vidro de geléia francesa, foie gras, caviar, lagosta defumada, chocolate belga e todos os vinhos importados de reserva especial, os que tinham produção limitada e que levava o nome de meu pai foram devorados. Ele, o meu pai estava mergulhado na ópera e não tinha se dado conta da perplexidade dos acontecimentos. Minha irmã estava muda, em estado de choque. Isso até um bando carinhas deitarem ela na mesa de jogo de cartas. Rasgaram suas roupas e caíram em cima dela como bestas feras. Cena inverossímil e inconcebível, de gritos animalescos. Todos queriam se satisfazer nela ao mesmo tempo. Fizeram-na engolir toda a porra produzida daquele ensaio macabro.

Eu estava paralisado. Aquilo era um filme de terror. Vi o cara que havia comido o rato cheirando uma lata de caviar e gritar para os outros: “Isso cheira a buceta! Cara sou mais os meus ratos!” A moça grávida apareceu descendo as escadas usando o mesmo vestido que minha mãe tinha colocado pra ir ao teatro. Trazia na mão um presunto espanhol, o Pata Negra. Olhava pra mim com ar de deboche. Muitos estavam vestidos com nossas roupas e sapatos. Ouço minha mãe gritar no banheiro. Foi nessa hora que o meu espírito acordou e eu subi as escadas sem olhar pra trás. Minha mãe me agarrou alucinada, e chorando, perguntou sobre minha irmã e meu pai. Ela estava toda cheia de espumas e tremia enrolada em sua toalha de 300 fios de algodão egípcio. A banheira fervia de crianças que gritavam enlouquecidas, jogando todos os potes de cremes pra cima. No topo da escada, vi quando o meu pai abriu a porta da biblioteca e gritou diante daquele festim diabólico: “Que merda é essa aqui?” Não deu pra falar mais nada, pois levou na cabeça um golpe do Pata Negra, dado pela moça grávida.

Não vou fingir que não estava apavorado, que o desespero havia se colado em mim. Eu estava paralisado. A noite mais profunda e escura estava ali a minha volta, toda a casa estava tomada. Tudo fedia a urina e fezes. A sala pulsava num frenesi orgasmático de prazeres da carne. Todos se refestelavam sem nenhum pudor. Era o inferno de Dante, mas muito mais requintado. No meio daquela desolação sem limites ouvi o som de uma sirene, e segundos depois, a sala era invadida por policiais e a pancadaria começou. Com certeza, eles foram acionados pelo namorado de minha irmã, quando ela gritou na hora da invasão.

Não sobrou ninguém pra contar a história, foram esmagados pela força brutal dos policiais. Meu pai, já acordado, me olhava. Minha mãe tentava vestir uma roupa em minha irmã que acabara de voltar do desmaio, tinha apagado literalmente. Sorte a dela. Penso que assim deve ser o futuro se nada mudar nesse país, quem sabe no mundo todo. Considerando que estou em estado de choque, que não consigo levantar a mão para afastar a visão que se formou em minha retina, desse futuro tenebroso, acrescento, para maior segurança de todos, que me lembrei do nome da história do alemão que matou os ratos afogando-os no rio.

Foi O Flautista de Hamelin.

14 Comentários:

Postar um comentário

<< Home