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quinta-feira, 20 de maio de 2010

O Quarto

Fotografia de Emma Hack


Eu estava viajando para a cidade onde nasci. Rodei quatrocentos quilômetros sem uma única parada e já estava travando. Começava a anoitecer e resolvi fazer uma parada para descansar um pouco. Avistei uma placa que indicava uma cidade chamada Morro Agudo e entrei por uma ruazinha acanhada. Fui dar num posto de gasolina, onde parei para abastecer o carro e perguntei ao rapaz que colocava combustível onde eu poderia me hospedar. Ele me olhou levantando as sobrancelhas e falou:


- Aqui? Não tem hotel neste fim de mundo, moço!

Eu estava cansado e não pensava em seguir viagem sem antes descansar umas horas. Estava me contentando com o banco traseiro do carro, quando o rapaz me falou da casa da Vó Mary.


- Ela é uma senhora, super gente fina, moço! Faz doces de dar água na boca. Costuma alugar um quarto para gente de passagem. Passe lá, quem sabe?

Mostrou-me a casa e fui até ela. Realmente, era uma senhorinha muito simpática. Foi logo me mandando entrar e oferecendo café, pão feito em casa. Agradeci por tudo e disse que só precisa mesmo de uma cama e algumas horas de sono. Ela me mostrou um quarto com uma cama de casal e disse para eu me acomodar nela. Foi preparar um chá de erva cidreira enquanto eu tomava uma ducha quente. Senti estar visitando minha avó, tamanho o carinho dessa senhora. Quando voltei do banho, a xícara de chá e uns biscoitinhos estavam no criado mudo.


Estava quase entrando em alfa, quando ouço ao longe, um tamborilar de dedos à porta do quarto. Era a Vó Mary, sem jeito, dizendo que estava na sala, uma moça com o mesmo problema que o meu. – Não tinha onde dormir aquela noite – Pensei comigo: “E eu com isso?”. Mas ela me disse, como se fosse a coisa mais natural do mundo, se eu não me incomodaria em repartir a cama com ela. Sentei-me na cama, engoli em seco e disse:

- Comigo? Convenhamos minha senhora, com certeza a moça não há de querer um acordo desses.

- Que nada! Disse ela. Se você a visse diria que ela sonha com um cantinho pra esticar o esqueleto.


Levantei-me a contra gosto, vesti meu roupão e fui até a sala. Mal consegui ocultar meu estremecimento ante a visão que me foi concedida. Ali estava uma delicada figura de mármore branco, esculpida por algum Miguelangelo. Silenciosa estava com a cabeça recostada no sofá. Os olhos semicerrados tentando disfarçar o sono. Sua pequena mão caída no colo soltara a alça da bolsa que escorregara para o tapete. O sol entrou na sala naquele instante, quando ela abriu seus grandes olhos cor de mel. Sorriu sem jeito, como se tivesse sido descoberta sem roupas. Pediu desculpas por estar descomposta, mas eu a via como um ponto latejante de vida no meio daquela sala sem graça. Todo o meu conceito de pudor, do que é certo e errado se desvaneceu por completo. Tornei-me um menino sem culpas. Fiz o que os cavalheiros fazem nos filmes diante de uma dama delicada. Estendi minhas mãos amparando-a para se equilibrar e caminhar até o quarto. Disse-lhe que ficasse à vontade, que vestisse algo apropriado para dormir que eu iria até a cozinha buscar um chá de luar, de flores, de nuvem.


Por que foi acontecer comigo esse anoitecer de pálpebras sonolentas? Entrei naquele quarto com os joelhos sem reflexo. A xícara tilintava junto a colher de prata. O chá ondulava voltas indo para ela. Seus lábios tocando a porcelana pareciam um botão de rosa entreaberto. Ela tomou o chá devagar, respirando a cada gole. Foi ficando mais sonolenta e dormiu. Apaguei a luz do quarto, deixando somente o abajur com sua luz amarelada. Seu corpo estava solto nos lençóis. Os cabelos esparramavam-se sob o travesseiro.


Eu fiquei parado, aos pés da cama, olhando aquele mar de ondas que ferviam. Cai sentado numa poltrona velha que estava num canto do quarto e tentei dormir. Procurei dentro das imagens que iam surgindo, um motivo para tudo aquilo. Primeiro não queria estar viajando naquelas circunstâncias. Tinha deixado projetos pendentes no trabalho para atender um dos imprevistos mais inusitados de minha vida. Recebi no dia anterior um telegrama avisando que minha mãe estava com câncer e com os dias contados. Queria me revelar um segredo antes de partir. É ou não é algo pra se preocupar? Sai na manhã seguinte, logo cedo. Deixei o escritório aos cuidados de meu sócio e caí na estrada. A cidade ficava no fim do mundo e eu não sei se porque já começara a anoitecer, ou porque na noite anterior eu tinha dormido somente umas quatro horas, me perdi num trecho da estrada e fui parar naquela cidadezinha. Agora, por incrível que pudesse parecer, eu estava num quarto com um anjo esquentando a cama que me fora reservada por uma avó maluca.


Estava nessas conjecturas, quando ouvi o relógio dar seu sinal da hora morta. Sentia um frio gelado subindo do chão e antes da última badalada eu estava deitado ao lado daquele pedaço de suplício. Virei-me para a parede e fixei os olhos num ponto entre as ramagens do papel de parede. Dali foi surgindo lentamente uma figura enevoada, a mesma que estava deitada ali ao meu lado, na cama. Vinha entre as folhas, saindo do invisível da parede, nua, com os braços abertos, se oferecendo para mim. O que aconteceu depois foi arrebatamento. Os arabescos da parede se entrelaçaram no florido dos lençóis, e o jardim do Éden cresceu ali naquele espaço. Minha Eva, nua e quente abriu-se num levíssimo suspiro lascivo. Todas as cordas secretas tocaram em nós o mesmo som. Depois de algumas horas, diabólicas folhas soltas se desprenderam de nossos corpos molhados e voltavam para a parede.


Acordei com minhas mãos cheias de seios, minha boca em sua nuca e meu corpo encaixado na curva aveludada de seu dorso. Acordamos em meio às luzes que entravam pelos caixilhos da veneziana fazendo o anuncio da realidade do dia. Olhamo-nos com o coração retumbando de felicidade pelo amor que nascera ali entre gotas de luz.


Um certo desconcerto nos olhos e os lençóis voltaram a cobrir o paraíso. Mas foi só por um instante, porque em seguida o que prevaleceu foi à loucura do desejo. Entrei dentro daquele olhar líquido buscando respostas a minha inquietação e só encontrei ternura. Sabíamos que daquele momento em diante seriamos um só. Tínhamos sido recortados de algum livro de estórias e colados novamente na cama daquele quarto. Aos poucos o ar foi clareando e nossas vidas voltaram. Tínhamos que resolver nossos assuntos. Trocamos beijos, juras, telefones e partimos cada um em seu carro. Durante o trajeto ainda podia sentir o gosto do gozo daquela mulher anjo.


Encontrei minha mãe meditando numa sala que foi transformada em um pequeno templo Budista. O lugar tinha sido pintado de cor laranja e um grande Buda da Compaixão, dourado estava calmamente sentado num altar. Ela levantou-se, assim que percebeu minha presença. Estava com um semblante triste, e segurei forte suas mãos. Ficamos ali, sentados em frente ao Buda e ela me olhava cheia daquela ternura maternal que as mães têm quando querem proteger os filhos de algum mal. E era esse mal que lhe consumia as entranhas deixando um oco em seu interior, era o desgosto, o arrependimento. Ela me olhou com um leve sorriso amordaçado. Estava sombria e quase irreconhecível. Eu pinçava na memória, instantâneos dela, sua risada franca, seu rosto terno de mãe que me punha para dormir, sua preciosa ternura.


Agora naquele rosto existia uma obscuridade pedindo misericórdia. E assim, com gestos acanhados foi abrindo seu coração. Pegou minhas mãos dizendo que precisava me contar um fato importante de seu passado. Seus olhos estavam rasos de água. Apertei suas mãos aflitas para acalmá-la. Uma espessa parede foi sendo derrubada e eu fui entrando naquele nicho que se abria mostrando algo frio e pegajoso. Falou-me entre silabas: Você tem uma irmã! Olhei para ela atônito dizendo: “Que novidade é essa!”.


Foi como se me tirassem o tapete dos pés. Fui sacudido e jogado para trás bruscamente no encosto do sofá. Do rosto dela desciam lágrimas quentes, grossas e opalescentes. Abstratas palavras descreviam um amor de juventude com o filho de um empregado do seu pai. Foi um amor intenso e ela deu a ele o privilégio da primeira vez. Escondeu sua gravidez o mais que pode, até se sentir perdida e contar para sua mãe. Nada mais teve importância depois do nascimento da menina, pois teve que dá-la para ser criada por estranhos. Num terremoto de emoções se casou às pressas com o meu pai e ele nunca soube dessa criança.


Abracei minha mãe que chorava. Acariciei seus cabelos para acalmá-la daquela escuridão em que se encontrava. Na verdade, escuridão para ela, pois para mim que sempre fui muito sozinho acendeu-se uma luz. Perguntava a ela, onde estava essa irmã, quando ouvi passos vindo da sala ao lado.


Levantei-me e comecei a andar em sua direção. Avançava lentamente tentando entender a imagem que se formava em minha retina. Meus braços e pernas se tornaram impessoais à medida que ela se tornava mais nítida.


Um fio de seda desenrolou-se e dando voltas entrelaçou-nos numa urdidura de nó apertado. Naquele instante eu estava pronto para receber a febre que viria e aceitar o destino que brincava comigo. A sala encheu-se de sol e nossa respiração mudou de ritmo, quando nossas mãos se tocaram. Ela usava o mesmo vestido que eu havia ajudado a fechar de manhã. Os lábios entreabertos tentavam me dizer algo, mas eu só sentia o seu hálito afoito e urgente. Ela estava tão atônita quanto eu.


Partículas de poeira dançavam sob a luz que entrava pela janela. O ar parou para podermos respirá-lo e acreditar que não era um pesadelo o que estava por vir. Pensei estar perdendo minha substância quando antevi todo aquele mistério se mostrando. Estava sitiado pela luz que vinha dela. A linha que separava a luz da escuridão já não tinha mais importância. Então, com absoluta simplicidade penetrei num plano de existência onde nada mais poderia importar. Puxei-a para junto a mim e nos beijamos.

5 Comentários:

  • A vida é um mistério que descobrimos a cada novo dia. Tenho uma história real incrível, tão parecida...Deus quando nos trouxe ao mundo sem pedir licença, preocupou-se em iluminar nosso caminho, mas quando a luz apagar, pensa na esperança que tudo supera, até escuridão intensa, sem explicação da natureza.

    Por Blogger Unknown, às 21 de maio de 2010 às 07:02  

  • Gostei muito, Rachel.
    Você escreve muito bem.
    Naava

    Por Blogger Rachel Domingues, às 22 de maio de 2010 às 14:56  

  • Obrigada pela homenagem, minha doce amiga!!
    O conto, é bárbaro, diferente, foge das linhas tradicionais rebuscadas e nos deixa a pensar nas surpresas da vida...
    bjs. di vó, amore!!

    Por Blogger mary, às 6 de junho de 2010 às 20:52  

  • Amiga, como sempre colocando os leitores na armadilha dos sonhos da vida real. Eu pessoalmente, fico presa ao entrar na leitura e livre no ponto final.
    Valeu, amiga...
    Beijos

    Por Blogger Ana Maria, às 21 de junho de 2010 às 15:54  

  • Ola,
    Que leitura agradavel!
    Voce tem um modo de escrever tao delicioso de ler!
    As palavras se encaixam ao vento!

    Adorei, e bem no meio da estoria eu ja havia adivinhado sobre o segredo, mas adorei o final que mostrou que o amor era tao forte que nada faria com que ele a abandonasse!

    Obrigada por acompanhar meu blog, minhas escritas.

    Por Blogger AyméeLucaSs, às 26 de dezembro de 2010 às 12:30  

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