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domingo, 15 de novembro de 2009

O Sequestro

Tela de Cézanne



Eu costumava brincar com dois amigos, Federico e Giovanni. Tínhamos a mesma idade, e íamos à escola todos os dias juntos. Conhecíamos as redondezas como ninguém. Guerras, esconde-esconde, queimada, eram nossas brincadeiras preferidas.

Naquele dia ensolarado, eu tinha acabado de almoçar, quando ouvi alguém me chamando lá fora.

-Toni... Toni... vamos!

Eram eles. Olhei para a minha mãe com aqueles olhos de “posso ir?” e ela me fez um sinal de consentimento com a cabeça, sem antes dizer para que eu tomasse cuidado e não voltasse estropiado como da última vez.

Saí correndo como um passarinho doido que acaba de ver a porta da gaiola se abrindo. Não deu nem meia hora, e já estávamos brigando. Éramos assim mesmo, um queria ter mais razão do que o outro. Logo no primeiro confronto, pá, começava a discussão.

Federico queria ir até a vila, pois tinha ouvido falar sobre dois sujeitos mal-encarados que aportaram na rua principal, num carro preto. O Giovanni, como sempre muito valentão, foi logo dizendo:

-Nem pensar! Não vou despencar até a vila para ver dois marmanjos.
E chamou o Federico de “viado” na lata.

Foi daí que começou a briga. Engalfinharam-se na grama, e lá se foi a brincadeira. Tínhamos a tarde toda pela, e por causa dos chiliques dos dois xaropes, eu pagava o pato. Voltaram correndo, cada um para um lado da estrada, direto para suas casas.

Fiquei sozinho. Como não queria voltar para casa, subi a colina que levava a uma igrejinha abandonada com um campanário muito antigo. Lá de cima dava para ver a vila toda.

Acionei meu olho de lince pelo vale todo, e vi quando um carro preto subiu a rua em direção às casinhas que ficavam na subida da colina. Desci correndo as escadas do campanário. Queria saber quem eram os tais carinhas suspeitos. Girei o calcanhar para pegar o impulso da corrida mas, nesse exato momento, ouvi um gemido. 

Parei e procurei saber de onde vinha o barulho. Reparei numa tampa de ferro, logo abaixo da escada. Pensei com meus botões: abro, não abro. Era uma daquelas tampas que nem o meu pai conseguiria levantar sozinho de tão pesada. Tive que usar uma alavanca para abri-la.

Olhei para dentro daquele buraco escuro e com cheiro de mofo, sentindo um calafrio na espinha. Fiquei parado, sem respirar direito, querendo saber porque aquela tampa estava ali. Foi quando alguma coisa começou a se arrastar lá dentro. Ouvi nitidamente um gemido. Apurei meus ouvidos e aí gemeu novamente.

Fiquei apavorado e corri como um coelho em direção a saída, mas parei, e voltei novamente ao pé da escada. Um vulto bem pequeno movia-se lentamente para a boca do buraco escuro. Minha curiosidade era maior que meu medo. Criei coragem e indaguei quem era e por que estava ali. Uma voz fanhosa e muito fraca me perguntou. 

-Você não sabe?
-Claro que não!
-Sou Danny Donatelle! Dois homens me sequestraram, ajude-me a sair daqui, por favor.

Aquilo foi o maximo. Eu ajudando um sequestrado e aqueles dois bestas, que deveriam estar participando dessa aventura, não estavam comigo. Com certeza estavam vendo TV, cada um em sua casa.

Com dificuldades saímos dali. Abraçados, seguimos direto para a casa do padre Benedeto. Quando nos viu ficou super assustado, porque já sabia do sequestro e reconheceu o menino que aparecia nas fotos de todos os jornais. Abraçou o menino que estava pele e osso e mandou que deitasse em sua cama coberta com uma pele de carneiro. Olhando para mim, disse: Fique aqui junto dele que vou preparar uma sopinha. Ele deve estar morrendo de fome. Está desaparecido há dois meses. Sabe-se lá o que deve ter sofrido, coitadinho!

O padre pediu-me segredo.

-Não diga nada a ninguém, Toni. Vou avisar a polícia.

Fiquei com muito medo daquilo tudo. Olhei aquele menino, tão magrinho, mas que deveria ter a minha idade. Ele tinha traços bem bonitos, apesar de estar pele e osso. Depois que o padre deu a sopa ao menino e me fez jurar pela Virgem Maria dos Aflitos, corri para casa engolindo o segredo.

Nunca dormi tão mal em toda a minha vida.Tive um pesadelo horrível e acordei assustado. Ouvi vozes e cheiro de cigarro que vinha lá da sala.

Levantei-me para beber água e vi dois homens mal-encarados conversando com o meu pai na sala. Riam e faziam planos para quando recebessem o dinheiro do sequestro. Minha mãe apareceu com um pão e algumas fatias de queijo, e meu pai servia do vinho que estava guardado para o meu aniversário.

Olhei pela fresta da veneziana e vi o carro preto estacionado em frente de casa. Meu coração quis sair pela boca, mas me contive. Pulei a janela e fui correndo até a capela do Padre Benedeto. Os guardas estavam saindo e um deles carregava o menino no colo. Quando o padre me viu, senti que ele ficou sem jeito. Um leve mal estar se estampou em seu rosto. Puxou-me para dentro da capela e, me encarando nos olhos, disse: O que foi que ouve, Toni? Parecia que já sabia da resposta. Comecei a chorar e o abracei. Ele me consolou e me deu água fresca, dizendo: Acalme-se, filho, tudo isso vai passar. Eu, entre lágrimas, lhe disse: Não vai não, padre, agora eu é que serei o menino perdido. Depois disso fui dormir na cama do padre, a mesma cama onde o pequeno, Danny Donatelli, estivera até pouco tempo atrás. Na manhã seguinte, soube que não podia mais voltar para casa. Todos tinham sido presos e estavam na cadeia da cidade. Fui sequestrado pela vida e perdi, o que eu tinha de melhor daquele lugar da infância.

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