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segunda-feira, 4 de abril de 2011

O Cego






 Tela de Odd Nerdrum


Conheci Lew Joe quando servíamos no exercito e fomos convocados para irmos para o Iraque. Apesar de toda a sua família ser protestante, ele não seguia nenhuma religião. Tinha lá suas convicções a respeito dos crentes. Dizia que a religião era apenas uma maneira de tornar tolerável o que era intolerável na condição humana, que era uma forma de falsa consciência e só demonstrava o quanto o ser humano é imaturo e dependente dos deuses. Ele não gostava das palavras flácidas, que não conseguiam exprimir os sentimentos. Tinha uma imagem para isso que era a de que o homem vai amarrado num balão, voa perdido no vazio, desesperado, e sem rumo. Se, por ventura, for içado, dependendo do momento de sua vida, já não importa mais, tanto faz em ir ou ficar.


Depois que voltamos daquela maldita guerra inútil, fantasmas passeavam ao nosso lado. Sei que com ele acontece a mesma coisa. O sangue, a areia, a água e a exaustão dos caminhos de todos os dias cobria-nos de desespero. Lá, tínhamos o inverno todos os dias em nossas almas. Ele costumava me dizer com os olhos alucinados: “Não posso mais ficar, e não posso partir”. Lembro-me do dia em que Lew Joe jogou os seus óculos longe, no deserto. Estávamos numa trincheira, atirando pra tudo que era lado, as balas riscavam o ar e as explosões nos ensurdeciam. Gritei a ele: Ficou louco? Quer se matar, é isso? E vi seu rosto sorrir como há muito não via. Ele encostou a metralhadora no chão e se deitou na areia. Disse calmamente: Não gasto mais nem um grama de pólvora nessa causa perdida. Eu não nasci pra matar ninguém. Depois de uns quinze dias voltamos para casa.

Encontrei Lew Joe no Central Park, numa tarde ensolarada. Nos abraçamos como dois camaradas que se admiram, e pude reparar que ele não usava mais os óculos. Perguntei:
- Agora você usa lentes de contato?
- Que nada, não preciso mais disso.
- Como assim, ficou curado da miopia?
- Não, apenas resolvi ficar cego.
- Que brincadeira é essa?
- Não é brincadeira, apenas a minha maneira de encarar a vida.
- O que é isso, amigo? Quem não enxerga, praticamente, está morto. Como você pode ver a natureza, as pessoas? O mundo está cheio de coisas maravilhosas para se olhar.
- Pois eu, agora, prefiro imaginá-las. Não vou buscar mais nada, nenhum lugar ou momento. Estou completamente dentro de mim, no lugar certo, no centro de minha comunhão com a vida. Respiro o mesmo ar que é de todos, nesse ir e vir do respirar, mas ver, não quero mais. Descobri que a dor acaba fazendo parte da felicidade. Sei que estou só dentro de mim, mas preciso desse silêncio. Aquelas imagens da guerra se evaporaram dos meus pensamentos. Antes eu passeava por todos os recantos sombrios e me via num emaranhado de gritos e escuridão. Quando me livrei dos óculos, cheguei a uma luz inexorável, hipnótica e irresistível. Sei que estou andando sozinho pelos jardins da Terra. Os caminhos muitas vezes se bifurcam e vou encontrando de tudo um pouco. As marés de minha alma estão cheias agora. Amigo, eu te digo que todos os dias busco uma vara para tentar um salto mortal. Miro no inesperado, precipito-me, acreditando que lá em cima poderá haver algo além de ar, mas sei que isso é apenas uma ilusão que o homem criou pra suportar os seus dias.
- Parece-me irreal tudo isso que me diz!
- Muitas vezes tentei te dizer, lá naquelas areias do deserto, que o amor não é doce, nunca foi, ele é amargo e indigesto, só vem com sacrifícios, e isso eu te digo, ninguém pode mudar.
- Não sei não, Lew Joe! O que eu sei é que a noite ofegante dos amantes, a excitação desvairada, a busca de um crepúsculo ardente, ninguém pode nos tirar. O amor é uma coisa milagrosa, que se expande no oculto de nós. Quando o encontramos, gravamos nossos nomes em laca e só pensamos em borboletas e flores. Queimamos de febre.
- Esperei demais por esse milagre e quando achei que podia recebê-lo, vi o que a guerra faz com os homens. Desisti, estou vazio de significações e sentimentos pessoais. A voz da consciência passa por mim, única, num chão invisível. A gente nunca consegue dominar o sofrimento que viu, fica na gente. Agora eu creio em que não posso ver.

Eu, parado no meio do parque, vejo-o imóvel, olhando-me com seus olhos vazios – parece um grande pássaro em forma de menino, que não tem mais perguntas, apenas vê o que quer, e o que vê é cheio de esplendor próprio. Acabo percebendo que de nos dois, o mais cego sou eu e minha vontade de ver claro, sem reparar no oculto das coisas. Não posso deixar de lhe perguntar sobre quanto de anestesia devemos tomar, ou de quantos óculos temos que jogar, para que o sofrimento se acalme.

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