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sábado, 15 de março de 2008

Melão e Xuxu

Tela de Carlo Cosentino


Lembrei-me agorinha da Emília do João, sim, aquela que chutou o vaso de flores no cemitério. Coitada, sofreu os diabos... Depois de apanhar tanto, agora pode respirar direito.

Pois aquela canjiquinha que você está vendo, um dia, sem mais nem menos, deu o seu grito de independência!... Vou te contar o exato do que se deu com a coitada da branquinha.

A Emília foi uma menina enjeitada pelos parentes. Tinha nascido tão branca que os pais, negros como o breu da noite, não quiseram arriscar criando uma coisa que um dia podia lhes morder de morte. Deu a enjeitada pra um coronel – Jacó Chuster - conhecido do pai dela... um puxa-saco dos grandes. Ficou então, a bichinha branca, sem eira nem beira, sendo criada exatamente como uma empregadinha limpa-bosta. Era de dar dó o que aquela gente empinada, metidos a besta, fazia e desfazia com a enjeitadinha. O coronel Jacó era dos que mais abusavam da marota. Punha a espigadinha pra coçar-lhe os nós do corpo, antes do banho. Depois, tinha que acompanhá-lo à cama de espaldar alto e arrufar-lhe os travesseiros. Em seguida, eram os pés que tinham que ser massageados com uma tira cheia de bolinhas de aço. Eu só ficava de esguelha, espiando aquela safadeza toda, enquanto preparava a comida daquela gente esquisita. Quando o Jacó morreu, foi a vez do seu Joãozinho, o filho mais velho. Esse era um cabra largado, cheio de malícias. Sabedor das andanças da Emília pelo quarto do velho, quis também sorver no mesmo gargalo. O João era o pior de todos, ainda pior do que a velha Eleonora Chuster, que gostava mesmo era de dar palmadas na lomba da menina. Escreveu não leu... lept, lept – os cascudos estalavam miudinho no pandeiro da coitada.

Emília foi crescendo e de repente virou aquele pitéu do diabo. Taludinha e mui sabida de sua formosura, foi se esgueirando o quanto pode do demônio do patrãozinho. Ele a chamava todas as noites para uma sessão com as tais bolinhas. Não demorou pra o Joãozinho estar de quatro pela Emília, forçando a porta, que ficava muito bem escorada com a cômoda de carvalho. Acontece que Emília estava engraçada pelo primo de João, o Paulinho Chuster. Esse Paulinho, na época, desse entrevero todo, teve que ir para os Estados Unidos, fazer um tal de doutorado. Completamente apaixonados, um dia, na varanda da casa, prometeram-se, um ao outro. Combinaram de, durante o tempo que ficassem separados, trocariam correspondência com pseudônimos, - ele seria Melão e ela Xuxu. Aquela noite foi cheia de regalos, trocaram promessas e beijos molhados, repletos de ardor. Despediram-se chorando e se eu não esticasse bem, esses meus olhos de velha esperta, não saberia reconhecer, a sombra do João, espiando os dois amantes. Joãozinho, ciscava de raiva e, consumido pelo ódio, arquitetou um plano para acabar com aquele romance.

Nem bem tinha passado um mês e a carta do Melão chegou trazida pelo carteiro. Acontece que o seu João, muito larápio, é quem escreveu a carta pra dona Xuxu. Ela me mostrou a carta em prantos. Disse-me que o Paulinho tinha se apaixonado por uma gringa e iam se casar. Que se esquecesse dele e fizesse o mesmo. Pedia desculpas pelo desconforto, patati-patatá e fim. Aquilo caiu como um melão podre na cabeça da coitada que ficou sem comer por uma semana. O seu Joãozinho muito esperto, foi se aproveitando da menina. Cada dia aparecia com um regalinho. Aos poucos, ela foi se deixando envolver com aquela conversa toda e depois de seis meses estavam com casamento marcado. O Joãozinho, que não é burro nem nada, também tinha armado a arapuca pra o seu Paulinho. Mandou para ele uma outra carta contando a mesma conversa besta de casório. E assim, sem mais nada a fazer e acrescentar, findou-se aquele romance que tinha tudo pra dar certo.

Casaram-se, o João e a Emília, em meio aos gritos de desconjuro de dona Eleonora, que dizia, que deserdaria o filho ingrato.

Deserdou foi nada, morreu em uma semana a desalmada.

Quando o seu João se viu, na posse da Emília, descambou pra judiaria. Começou que a chamava de Xuxu, zombando da coitada. Depois ela era obrigada a bater nele com as tais bolinhas de aço. E se não batia, apanhava. Ele foi se acostumando a dar bordoadas na coitada e ela foi ficando triste de dar dó. Um dia eu tive que desamarrá-la de uma árvore do pomar. Estava toda lanhada por vara de marmelo. Sangrava muito e eu fiquei com medo que ela não agüentasse, mas como das outras vezes, ela sarou. O pior de tudo, foi quando o seu Paulinho voltou. Um dia, ele passou lá em casa pra uma visita e dar os pêsames por conta da velha Eleonora que tinha batido as botas e, pasmo, recebeu a notícia das cartas forjadas. A Emília dizia que não tinha escrito carta nenhuma sobre casamento e ele confirmava a mesma coisa: que jamais mandou tal missiva e nem tampouco se casara. E pra completar a confusão, eles tremiam só de estarem juntos. Ainda se amavam e não sabiam o que fazer.

Acontece que eu não agüentava mais ver o sofrimento da bichinha, apanhando todo santo dia. Contei pra seu Paulinho o que acontecia naquela casa de doidos. Contei tudo, desde o dia que a menininha tinha sido deixada naquela vida de pancadas. O seu Paulinho, que tinha faro de detetive, foi atrás da família da Emília. Procurou, fuçou e achou. Não era a toa que a menina era branca e os pais negros. Ela nunca tinha sido filha deles. Era na verdade, filha ilegítima do seu Jacó. Ele, combinado com o pai preto da menina, arranjaram de trazê-la para aquela casa, sem que a velha Eleonora desconfiasse de nada. Eu acho que, na verdade, a velha sabia de tudo, por isso dava tantas pancadas na menina.

Quando a Emília soube da desgraça, ao invés de ficar triste, foi que ficou muito contente. Falou pro seu Paulinho: “Ainda bem que eu não fiquei grávida desse peste do João”

Acabou-se o casamento em três tempos. Ela e o seu Paulinho foram morar juntos sem ao menos dar satisfação pro Joãozinho. E não é que ele caiu de cama com pneumonia e bateu com a caçoleta. Cada uma que acontece nessa vida, contando ninguém acredita. Outro dia, eu a vi no cemitério chutando o vaso de flores do túmulo do seu Joãozinho. Também, aquele peste, bem que mereceu.

sexta-feira, 7 de março de 2008

Flores Fora de Lugar

Tela de Enrique Medina


Dentro do peito, a dor aperta, as lembranças pesam. Os passos trôpegos seguem aos solavancos. Os lábios tremem, captando um choro miúdo que aos poucos se faz bem alto, desconexo e urgente. Segue recordando um tempo arcaico que era abafado com o peso incômodo de um corpo imundo. Tropeça no piso irregular do caminho. Vacila por entre as pedras das lápides silenciosas que a rodeiam. É impossível não prever o molhado de seus olhos. As lágrimas vêm, em camadas quentes, pipocando fagulhas de dor. O cérebro se agarra às lembranças como os ganchos de açougue que prende um coração. Foram tantos anos de gritos, de dor contida, sendo crivada de tormentos e amordaçada em silêncio que, agora, sentia somente essa vontade imperiosa de desforra. Foi rasgada em carne viva e ainda sente o gosto do sangue quente alimentando sua dor feroz. Que ninguém saiba desse mal horrendo que mutila e queima seu corpo febril. Não é mais vago seu querer vingança, é real, como a dor dos dias em que viveu sem ser. Ali, no âmago do gelo da morte, enterrado, em sepulcro raso, jaz a carniça maldita de um mal querer. Segue, ancorada, dentro do que lhe resta de angustia. Desviando-se, aos poucos, da escuridão dos seus dias. Renasce de seu túmulo em vida. Sobe cada vez mais para além do fundo. Nesta exata caixa, tumba maldita, onde seu algoz treme e grita arrependimentos, ela, remói sua despedida. Lágrimas ácidas chegam a cegá-la. Dentro da garganta, vem um gosto amargo que se alastra num frenesi preciso. Sem pensar perdão, chuta para o alto o vaso de flores que, como um projétil, se debate ao léu. Ri de si, livre de remorsos. Alisa os cabelos e, apesar do tremor das mãos, é invadida por um gozo pleno, de estabelecer em vida, sua paz vindoura.