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sábado, 26 de março de 2011

O Golpe


 Tela de Gregory Crewdson



Estavam na cozinha, sentados à mesa, tomando o café da manhã. O ritmo de suas vidas começara a endurecer-se depois de vinte e cinco anos, ninguém mais estava conseguindo fazer milagres. Não se olhavam. Cada um pensava nas tantas tarefas que teriam que fazer durante o dia. Ela daria aquela aula que havia preparado e tentava se lembrar das frases de impacto escritas no rodapé da pauta. O almoço da família teria que ser feito pela empregada. Os filhos estavam em seus quartos, num mundo à parte, e ele estava bem a sua frente, remexendo a colherinha na xícara de café. Acontece, que naquela casa, muitas vezes as figuras dos seus mortos ocorriam entre eles, e algumas palavras eram ditas sem que eles se dessem conta de que não as haviam pronunciado por livre e espontânea vontade. Muita ignorância acumulada por gerações, às vezes, despertava no meio das conversas, tudo tão incrivelmente sufocante.

Ele derrubara açúcar no pires, e nessa hora, como que antevendo um olhar reprovador, necessitou tocá-la. Delicadamente passou os dedos em seu rosto bronzeado. Ela não era mais tão bonita como quando a conhecera, os olhos tinham linhas, os cabelos estavam tingidos e os seios haviam caído consideravelmente. Sentiu que o ombro dela deu uma leve esquivada pelo contato de seus dedos. Ela lembrara da noite anterior em que teve que ceder aos seus carinhos exagerados mais uma vez, como se ele forçasse um sexo normal para obter o que realmente queria. Depois de lhe fazer sentir um orgasmo que exigiam falsos gemidos, ele a virava e procurava aquele sexo anal afoito e desesperado que sempre a machucava. Ele deveria aprender a ouvir música com ela, escutá-la à noite, na obscuridade. Aprender a amá-la com carícias leves e depois nervosas. Todavia, o mecanismo do ato era sempre o mesmo, a pressa.

Levantaram os olhos, um para o outro na esperança de ver naquele instante, algo mais que a insignificante rotina. Ela tentava entender por que aceitava aquela espécie de carinho repetitivo há tantos anos. Moldavam-se perfeitamente um ao outro no quesito dissimulação. Fingia não saber de suas investidas aventureiras, mas estava ficando cansada daquilo tudo. Também ela queria mais do que a vida estava lhe dando, tinha consciência de que não era nenhuma santa, mas tinha que se manter mãe e esposa exemplar, encoberta por ele no deserto dos seus dias. Ele era um homem que precisava se saber no comando. Gentil com os filhos, provedor do conforto que ela queria, vizinho impecável, amigo ilibado. E que ninguém saiba: comedor compulsivo.

Ele passou a mão pelos cabelos dela, afastando uma mecha por trás da orelha. Ela aceitou o gesto com os olhos, inclinando levemente a cabeça, apoiando delicadamente o rosto em sua mão. Permaneceram se olhando por alguns segundos até se soltarem dentro de um abismo. Estremeceram no fulgor de um vórtice, cada um com o pressentimento de que aquela simples carícia trazia, por um instante, a idéia de um golpe.

sexta-feira, 11 de março de 2011

Santa Gosia





Numa noite terrível de tempestade, o vento açoitava as falésias reverberando um eco de desespero na cidade de Beberibe. A praia estava vazia e todo o aguaceiro caia implacável do céu. Rui Queiroz corria tentando se abrigar daquele vendaval repentino. Vinha desembestado, quase sem fôlego, para a varanda de sua casa que ficava à beira da praia. De longe, toda ela brilhava com os candeeiros dependurados nas laterais da porta e uma umidade morna de mormaço invadia todo o ar. Ele não quis entrar em casa, molhado como estava, e também não gostaria de cruzar novamente com Laura, sua filha. O bate-boca que tiveram no começo da tarde já tinha sido o suficiente para tirá-lo do sério. Ela tinha lhe dito, muito nervosa: “Eu estou sufocando nesta casa. Por favor, deixe-me ir estudar em Fortaleza!” – O que ouviu dele foi um sonoro não. Insistia com ela, dizendo que conhecesse o filho de seu grande amigo Andrzej Kominski. “Você sabe o quanto é importante para mim que nossas famílias se unam”.

Laura, muito aflita e completamente fora de si, gritava: “Não vou me entregar a esse seu capricho, papai – case-se o senhor com ele, eu já tenho a quem gostar e o senhor sabe disso”. Sim, Laura estava perdidamente apaixonada por Francisco, filho do Coronel Castro, e batia o pé no assoalho dizendo que preferiria se jogar no mar a se casar com quem não amasse. Por fim, ela já cansada, vendo chegar o fim da tarde e o seu pai irredutível, foi para o quarto aos prantos e ele saiu batendo a porta indo esvaziar sua raiva andando pela praia.

Ele, chutando conchas na areia, recordava sua infância sofrida ao lado de sua mãe tão fechada dentro de um mundo invisível e de seu pai sempre viajando. Sua vida só se abriu para a felicidade quando conheceu o amigo Andrzej. Um dia estavam correndo e se esbarraram ali mesmo naquela praia. Ele vinha de férias para Beberibe todos os anos. Morava na Suíça com uma tia, a única que havia sobrado depois da guerra. Andrzej, a principio, ficava numa pousada na cidade, mas com o tempo foi ficando na casa de Rui pra dormir um fim de semana e outro, até que foi convidado pela mãe dele a se instalar no quartinho dos fundos. Deram uma arrumação na bagunça, jogaram a tralha sem serventia, e aquilo virou um hotel três estrelas. Andrzej sabia falar o francês, e para se adaptar ao português foi um pulo. Foram férias de aventuras inesquecíveis para os dois amigos que não se largavam para nada. Iam aos bailes, tocavam violão, namoravam, pescavam, eram camaradas em tudo. Até o dia em que aconteceu aquele incidente.

Andrzej tinha ido a Fortaleza comprar uns livros que queria ler quando estivesse na Suiça, mas estava demorando muito para retornar. Tinham marcado um encontro com umas moças e Rui não queria se atrasar. Ansioso, foi até o quarto do amigo e ficou por lá, deitou na rede, andou pelo quarto, até que pegou um dos livros que estava na cabeceira da cama e começou a folheá-lo. Foi quando de dentro do livro caiu uma foto. Era de um oficial da SS. Rui segurava a foto com um enorme ponto de interrogação na testa, e nesse exato momento entrou o amigo no quarto. Muito constrangido, Rui recolocou a foto dentro do livro e pediu desculpas ao amigo, e fez menção de sair. Andrzej gritou: “Espere, eu gostaria de lhe falar sobre a foto!”. Rui, envergonhado, lhe diz que não precisava lhe explicar nada, que ele não deveria ter mexido em suas coisas sem pedir licença, e que não era de sua conta o que viu. Andrzej, por sua vez, disse quase gritando: “É o meu pai! Esse nazista é o meu pai!”.

Rui ficou calado, somente olhava o amigo que estava quase chorando. Andrzej sentou-se à beira da cama e começou a relatar uma parte negra de sua vida.

“ O meu pai era da SS, fazia parte do grupo Einsatzgruppen, que tinha por objetivo exterminar grupos étnicos minoritários, e os judeus estavam nesse rolo. Acontece que minha mãe era uma judia polonesa. Eles se conheciam antes de Hitler afundar a Alemanha  num abismo de ódio. Eu era um bebê quando ele tomou sua pior decisão de vida. Havia um grupo radical entre os SS que souberam que alguns nazistas eram casados com mulheres judias. A decisão era que eles as entregassem para os campos de concentração. Meu pai via, a cada dia, colegas se desfazendo das esposas e filhos em nome do  Führer Adolf Hitler. Ele se desesperou, pois o cerco desse grupo fanático estava chegando muito perto dele. Uma noite ele decidiu: mandou-me para a casa de sua irmã que morava na Suíça. Fiquei com ela até os meus quinze anos – foi nessa época que vim para Beberibe pela primeira vez. Ela resolveu me contar toda a história dos meus pais, depois de se atormentar com minhas frequentes perguntas. O meu pai não teve dó nem piedade de minha mãe, entregou-a a Gestapo sem pestanejar. Disse que não tinham filhos e assim me salvei. Nunca mais falei com ele, depois de saber toda a história. Quis viajar, e minha tia tem me financiado até então. Sinto muita tristeza pensando no desespero que minha mãe deve ter sentido dentro de uma câmera de gás imaginando como estaria o seu bebezinho, porque com certeza, ela me imaginava com o mesmo destino. Ela era linda e pelo que “tante” Hanelore dizia, me adorava. Passei a usar somente o nome dela  que é Kominski, e sepultei para sempre Schilen, o de meu pai. Depois dessa confissão, a tristeza se abateu entre os dois amigos.


Rui, depois que terminou os estudos, abriu uma livraria na cidade e se casou com Jeruza. Logo depois, nasceu a filha Laura. Andrzej se tornou escultor e foi morar na Polônia, lá se casou com Katarzyna e tiveram um filho de nome Krzysztof. A correspondência já não era tão frequente, pois agora tinham que se preocupar cada um com sua família. Os amigos faziam gosto em unir os filhos em casamento. Rui mandou fotos de Laura e Krzysztof se encantou pela moça. Laura também havia achado o rapaz muito bonito, mas pra casar...nem pensar, dizia ela à mãe: “Como posso me casar com alguém que nem consigo pronunciar o nome? Além do mais, eu amo o Castrinho e é com ele que quero me casar”.

Francisco de Castro era filho do coronel Nonato de Castro, dono de muitas casas na região. Todos sabiam que aqueles dois tinham nascido um para o outro, mas o seu Rui batia o pé, não queria saber que um era o destino do outro. Numa manhã, chegou uma grande caixa do correio para o Rui. Era uma enorme caixa de madeira toda cintada com fitas metálicas. Rui gritou para Jeruza que lhe trouxesse um alicate e um martelo. Quando a caixa foi aberta, uma surpresa. Era uma estátua entalhada de madeira, uma obra de mestre de extrema beleza. Os cabelos ondulados caiam pelos ombros estreitos. Os olhos eram de pedras semipreciosas, engastados na face alva e suave. O vestido de um azul claro com um barrado em rendas, todo entalhado com filigramas dourados, esculpidos em delicada trama. Nas mãos ela levava um ramalhete de rosas de um vermelho pálido. Nos pés descalços, uma fita verde pálido com o nome dela em alto relevo “Malgorzata”.

Mas é a mãe do Andrzej, Rui dizia todo entusiasmado. É a Gosia, como ele carinhosamente a chamava. Tamanha beleza fez Rui se transformar. De repente ele se ajoelhou em frente à imagem muito solene, e prometeu a ela uma capelinha. Jeruza e Laura entreolharam-se boquiabertas. Rui ainda, em transe, ia descrevendo como seria a capelinha branca, incrustada entre as falésias. Ali era seria venerada como uma santinha. Santa Gosia!
Que nome lindo, dizia, e com os olhos pedia a mulher e a filha aprovação para o seu sonho repentino. Dizia todo alegre: Vocês sabem o que quer dizer Gosia? Não, claro que não sabem – quer dizer Margaridinha. Malgorzata é Margarida, a jovem mãe do meu melhor amigo que foi queimada vida. Vou mandar erguer a capelinha e chamar a família de Andrzej para a inauguração. Eles não vão acreditar nesse presente dos céus. Laura olhou para o pai espantada e disse: “Mas, pelo amor de Deus, pai! Essa Gosia não era uma judia? E desde quando uma judia pode virar santa, e pior, só porque o senhor assim o quer?”. O pai a olhou com os olhos esbugalhados e disse: “Desde hoje! E para sua informação, menina, existe sim, uma santa judia, e canonizada pelo Santo Papa, se chama Edith Stein, mas isso já é outra história.

Rui estava completamente alucinado com a idéia, e não esperou resposta das duas. O que fazer quando um homem tem tudo planejado na cabeça e sai desembestado pela sala falando sozinho? No dia seguinte, Rui foi falar com Jurismar Cavalcante, um arquiteto, amigo de infância. Em uma semana tudo acertado e o projeto aprovado. Para capelinha ficar pronta, foram três meses de trabalho intenso. De manhã até o fim da tarde, lampejavam treliças e robustas armações de dormentes cruzados, ladrilhos com estrelas incrustadas forravam todo o chão da capela. Trepados sob invisíveis andaimes, os mestres montavam a abóbada, toda celestial em vitrais de tonalidades azuis e lilases. Estrelas salpicavam, brilhando um encantamento na curva delicada do ventre da capela. Toras de madeira de lei foram esculpidas em formatos de anjos adornados em vestes diáfanas, e entre as mãos, seguravam um suporte para velas que seriam acesas durante as cerimônias ecumênicas. Escultores vindo das Minas Gerais terminavam os últimos detalhes dessas maravilhas.

Santa Gosia, assim estava sendo chamada pelo povo todo das redondezas. Ardiam-se para participar da inauguração. O altar foi o último a ser concluído, pois Rui não queria trazer a santinha sem que tudo estivesse a sua altura. Um nicho, mas parecido com um relicário, todo arredondado, foi pintado de azul celeste e forrado de estrelas douradas. Ali ficaria a santinha. Anjos e querubins seguravam um festão de rosas e folhas espetadas de ciprestes e pinhas e rodeavam toda a capelinha. Toda essa magnífica pintura näif fora executada pela prestigiada artista Helena Coelho, vinda especialmente do Rio de Janeiro. A porta de entrada em madeira nobre de carvalho era esculpida com São Miguel Arcanjo vencendo o dragão. Rui dizia ser esse o símbolo que representava a vitória de Andrzej sob o pai. Atrás do altar, uma pequena salinha camuflada foi instalada para guardar os paramentos do cerimonial litúrgico. Ali havia uma pequena porta secreta onde somente o padre e os que ajudavam na capela sabiam de sua existência.

Tudo pronto e brilhando, Rui mandou chamar Andrzej e sua pequena família. Seria a maior surpresa de sua vida cheia de amarguras. Mostraria ao amigo que a dor acaba fazendo parte da felicidade. Laura sabia que o seu pai não abandonaria facilmente sua intenção de a casar com o polonês. À noite, quando todos estavam dormindo, ela foi até capela. Entrou pela portinha lateral e foi ter com a santinha. Acendeu uma vela e ajoelhada diante dela rezou pedindo sua benção e proteção para sua vida e a de Francisco de Castro. Podia ver o sorriso de Santa Gosia inundar o altarzinho. Ela parecia estar viva e entender sua aflição de moça apaixonada. Laura, de mãos postas, lhe implorava: “Oh santinha, sem ele sou uma senda, uma sombra sem fim. Um fogo a queimar em mim”.

Deixou a capela e voltou para sua casa para terminar de chorar em seu quarto. Pensava que estava ficando doida como o pai, pois rezara a uma santa que nem santa era ainda. No dia seguinte era a inauguração da capela. A família de Andrzej havia chegado. Laura foi apresentada a Krzysztof, mas como imaginava, não sentiu absolutamente nada por ele. Era bonito, alto, loiro e com lindos olhos azuis como água marinha, mas como mandar no coração que amava perdidamente  Francisco, um baixinho, moreno, com olhos negros como as asas de uma graúna? Às seis horas da tarde começaria a missa em intenção à Malgorzata. A capela fora aberta com pompa e circunstância para o grande dia. As duas famílias iriam ficar na primeira fila. O padre era um jovem recém ordenado, e recebeu a capelinha com o coração cheio de júbilo e esperança em formar um rebanho cheio de fé, ali naquele lugar. Ele ainda não estava inteirado de todos os cantos da capela, pois tinha recém chegado a Beberibe para essa inauguração, e tudo já tinha sido arrumado por dona Jeruza e o senhor Rui. Ele e todos da comunidade que ali estavam, desconheciam a salinha secreta, todos, menos Laura e Francisco, que quiseram ficar num lugar onde ninguém os achasse durante toda à tarde e se esconderam na saleta aconchegante, do tamanho exato e ideal para suas juras de amor.

A hora da missa foi anunciada pelo repicar do sino. Dona Jeruza olhava para os lados procurando por Laura, mas acabou desistindo diante do esplendor dos anjos segurando as velas acesas. A capelinha brilhava em esplendor. O Rui tinha as mãos úmidas de nervosismo e dizia a Jeruza entre dentes:
“Mas essa menina resolve me aprontar justo hoje!”. A família de Andrzej, toda arrumada  para a missa, estampavam  felicidade. Ele tinha os olhos marejados de lágrimas. As mocinhas da comunidade se espremiam, esticando os pescoços, para ver o jovem polonês, lindo de olhos azuis. Os amantes na salinha secreta se entregavam em caricias e beijos, nem imaginavam que a missa já corria solta no altar de Santa Gosia. O padre tinha uma linda prece que falava sobre a amizade e abençoava a todos fazendo o sinal da cruz. Toda a capela respirava a incenso. Malgorzata era abençoada pelo padre e a capela inteira pedia  milagres a ela.

Todo aquele ritual de mistério e emoção de repente foi interrompido por um pequeno gemido. Todos se entreolharam com espanto. Não teve uma pessoa sequer que não se ajoelhasse de mãos postas rezando com todo o fervor a santinha. Uma luz tênue envolvia a imagem que sorria suavemente. Outros gemidos foram ouvidos, até que um grito estridente percorreu toda a capela, enchendo de assombro, todas as fileiras de fiéis que começaram a rezar a Ave Maria. O padre estupefato com o acontecido se prostrou em frente à imagem de Malgorzata, agradecendo pelos milagres concedidos. Muitos se levantavam jogando muletas, óculos e davam graças.

Na salinha secreta, Francisco dava a Laura o seu amor de homem e ela o recebia feliz por se entregar com tanto ardor. Enquanto na capela, todos rezavam fervorosamente, eles saiam da salinha sorrateiramente, esquivando-se por trás da cortina de veludo bordada de querubins. Saíram da capela felizes. Nesse momento começou a chover e eles correram pela areia, e iam encobertos pelo véu da chuva. E assim como o vento leva uma folha de papel, levou para longe, aqueles dois amantes. Santa Gosia ficou famosa em Beberibe. Ainda não foi canonizada, mas faz milagres e dizem que é protetora dos amantes.