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quarta-feira, 25 de novembro de 2009

As Amigas

Tela de Marla Olmstead



Já era a oitava vez que o maldito telefone tocava. Como se eu não tivesse nada a fazer num dia como hoje.

- Alô!

- Alô, alô, é você? Graças a Deus!

- Recebeu minha encomenda?

- Sim, sim, não está ouvindo o estardalhaço do coitado?

- Ainda bem que chegou! Estava preocupada se ia dar tempo de você prepará-lo.

- O quê? Você está brincando que eu vou ter mesmo que “preparar” esse desequilibrado! Ele está totalmente descontrolado.

- Fique calma! É assim mesmo da primeira vez, depois você se acostuma.

- Nunca vou me acostumar com um troço desses! – Ai!

- O que foi agora?

- Ora, quem podia ser? É ele dando voltas na cozinha.

- Vocês estão na cozinha?

- É claro, onde mais eu poderia fazer isso!

- Meu deus, faça logo, antes que ele comece a ficar nervoso!

- Ta, ta, ta, que horror, eu não consigo!

- Já deu bebida pra ele?

- Claro! Ele secou uma garrafa da melhor cachaça que eu tinha, mas o desgraçado não se entrega.

- Pelo jeito é dos durões! Nesse pé, isso vai levar a tarde inteira, querida!

- Não agüento mais! Estou apavorada. Você bem que podia vir aqui.

- Nem pensar! Tenho muitas coisas aqui para aprontar. – Alô! Não estou ouvindo nada, Fale mais auto!

- Sinceramente, não sei se vou conseguir dar conta desse infeliz. Você não faz idéia de quantas voltas eu já dei nessa cozinha.

- Pegue a faca!

- Já pensei nisso, mas não consigo. Estou horrorizada!

- Você é uma piada, mesmo! Primeiro se mete em fazer uma coisa dessas e justo na véspera do Natal. – Alô! Você ainda está ai?

- E para onde você queria que eu fosse. Será que vai doer?

- Do jeito que ele está chumbado de pinga, minha amiga! Não vai sentir nadica. Fique fria e mete logo essa faca! – Alô! Qual o problema?

- Ele está olhando pra mim! Parece que está implorando. Ah, meu Deus!

- Esqueça isso, senão você não vai conseguir terminar essa merda pra hoje.

- Sim, sim, sim!

- Pare de berrar e corte logo o pescoço dele! Vá, corte agora!

- Desisto! Ele está murmurando algo. Parece que quer falar comigo.

- Eu não acredito que essa maldita ligação vai me tirar do sério. Você não sabe que não é a única a ter problemas na véspera do Natal. Não sabe, não!

- Espere um minuto, escute! Por favor, me escute. Depois que eu arrancar a cabeça, o que eu faço com o corpo? E todo o sangue? Você já imaginou a quantidade de sangue que ele deve ter?

- Eu já te expliquei todo esse procedimento. Não vai amarelar agora, vai?

- Eu sabia que você era doida, mas fria desse jeito, não.

- Pare com isso sua fracote e corte logo esse maldito pescoço, porra!

- Fique na linha que eu te mostro quem é a fracote. (Ai, desgraçado, morra infeliz! Pare de espernear, filho da puta!). – Alô!

- Viu como não foi um bicho de sete cabeças. Você é uma comédia!

- Fiquei com pena dele! Fez até xixi nas calças de medo.

- Calças, que calças?

-As dele! E você acha que ele viria sem as calças?

-Ele quem, infeliz?

- O Alberto, pô!

- Que Alberto? O peru chamava Alberto?

- Peru, que peru, desgraçada?

- Com quem eu estou falando?

- Andréa! E você, quem é?

- Cristina. – Alô, alô...desligou.

A Cilada

Desenho de André Toma



Era véspera de Natal, Andréa esperava pelo homem que teria de matar. Tinha sido preparada para aquele momento por Arlete, chefe da Homicídios. Ela ficaria em sua casa esperando pelo ’serial killer’ que já tinha matado, por estrangulamento, dezessete moças. Todas com o mesmo perfil e Andréa se encaixava nele. Uma mulher bonita e ferida no rosto.


Arlete sabia o que fazia quando a escolheu para aquela cilada. Todo o Departamento contava com o sucesso dessa emboscada. Era através de um anuncio de jornal que ele vinha. O anuncio mostrava a foto de Andréa e dizia que gostava de rapazes carinhosos e bonitos. Ela estava linda e mostrava muito bem a cicatriz que marcava o seu rosto do lado direito. Trabalho de mestre, feito por um maquiador de teatro, conhecido de Arlete.


Andréa olhava pela janela perscrutando o tempo, e tudo o que teria de fazer quando chegasse a hora de enfrentar o que vinha pela frente.


Uma longa tarde parecia ter começado. A sombra da árvore do jardim balançava inquieta refletindo-se na parede da sala. Não podia recuar agora. Tudo flutuava em seus pensamentos como uma mancha vermelha. Teria que buscar forças no desespero das moças que apodreciam em seus caixões.


Andréa queria ter um lugar de destaque na Homicídios e não poupou esforços para conseguir ser notada por Arlete, a loira durona do Departamento.


Uma sombra de homem foi projetada na parede da sala. Era ele. Tremula, se preparou para abrir a porta. O teto da sala balançava desigual. Ela mergulhou nas profundezas de seu medo deixando-se desfalecer. Respirou fundo segurando-se na estante do corredor que dava para a porta de entrada. Sua mão bateu no anjo de porcelana que voou longe, indo se espatifar contra a porta.


Quando a porta se abriu, o jovem ali parado, olhou desconfiado por causa do barulho. Os cacos de louça no chão, ela se segurando na maçaneta com tanta força. Perguntou se estava tudo bem e deu uma boa olhada para dentro da casa. Ela se desculpou pelo estardalhaço da louça e pediu que ele entrasse. Estenderam as mãos e ele disse o seu nome:

- Muito prazer, Alberto! Vim para o encontro a mando de Arlete.


Andréa sabia das artimanhas que ele provavelmente usaria para entrar e ficar a vontade com ela, só não entendeu porque ele falou em Arlete. Ele recolheu os cacos do chão e colocou-os cuidadosamente sob o console do corredor. Andréa agradeceu e disse que estava fazendo café e foram para a cozinha. Andaram juntos e seus passos faziam ranger o assoalho.


Enquanto tomavam o café, ali na cozinha, ela viu a ponta de uma cordinha saindo do bolso de trás da calça dele. Fingiu não ter visto nada e lhe ofereceu uma cachaça. Ele adorou a idéia e quis experimentar. Foram conversando sobre banalidades, sobre boas cachaças e ele foi tomando uma dose atrás de outra. Depois do terceiro copo, já tinha perdido a noção das coisas. Andréa olhava aquele corpo cambaleante, tão bonito e que teria que matar a qualquer momento.


Não sentia mais o calor do café, e sim um frio gelado percorrendo seu corpo. Pensava como tinha se metido numa coisa tão pavorosa como esta. O que faria, agora que estava frente a frente com esse matador desgraçado. Tinha que ligar para Arlete antes de executar o plano. Ela buscava com esperança que fosse um engano, que tivessem mudado de idéia. Precisava achar coragem, pois provar sua competência para trabalhar com Arlete era o ponto mais importante naquele momento.


O telefone tocava, tocava e ninguém atendia, até que uma voz feminina respondeu. Andréa estava totalmente descontrolada, e falou aliviada:

- Alô, alô, é você? Graças a Deus!

Na outra linha a mulher perguntou:

- Recebeu minha encomenda?

- Está aqui na cozinha comigo.


Dali em diante foi uma conversa doida sobre encorajamento. A outra dizia para ela não vacilar e cortar o pescoço dele, que seria fácil, que tinha que ter coragem e coisas assim. Cortar e pronto. Tudo ficaria resolvido.


Andréa enlouquecia de pavor, mas dizia que nunca seria uma fracote, que era confiável e que a Arlete poderia contar com ela, sempre.


Não foi um trabalho silencioso. Ele enfrentou aquela faca como pode. Era um pesadelo se formando em sua retina. Estaria fora dali, depois que acordasse voltaria para o Departamento e diria que a ‘serial killer’ era a dona Andréa. Via os olhos da moça ceifando sua vida com a faca de cozinha e podia ouvir ela falando alto com alguém no telefone. Era um zumbido horrível em seu ouvido. Estava apavorado. Caia na obscuridade de seu próprio sangue.

Andréa gritava com a mulher ao telefone uma conversa difusa sobre faca e um peru de Natal. Dizia a ela, que ele havia feito xixi nas calças de medo. A outra parecia uma doida querendo saber o nome de Andréa e que negócio era esse de um peru com calças.


Agora percebia que era sobre coisas diferentes que falavam. Não era para cortar a cabeça de Alberto e sim de um peru que tinha que ser preparado para a ceia do Natal. Mas afinal quem era a mulher no telefone? Perguntou a nome dela quase gritando e ela disse:

- Cristina.


Andréa se levantou daquela espiral de enganos com os olhos cerrados por varias camadas de escuridão. Foi quando ouviu a campainha tocando.

domingo, 15 de novembro de 2009

O Sequestro

Tela de Cézanne



Eu costumava brincar com dois amigos, Federico e Giovanni. Tínhamos a mesma idade, e íamos à escola todos os dias juntos. Conhecíamos as redondezas como ninguém. Guerras, esconde-esconde, queimada, eram nossas brincadeiras preferidas.

Naquele dia ensolarado, eu tinha acabado de almoçar, quando ouvi alguém me chamando lá fora.

-Toni... Toni... vamos!

Eram eles. Olhei para a minha mãe com aqueles olhos de “posso ir?” e ela me fez um sinal de consentimento com a cabeça, sem antes dizer para que eu tomasse cuidado e não voltasse estropiado como da última vez.

Saí correndo como um passarinho doido que acaba de ver a porta da gaiola se abrindo. Não deu nem meia hora, e já estávamos brigando. Éramos assim mesmo, um queria ter mais razão do que o outro. Logo no primeiro confronto, pá, começava a discussão.

Federico queria ir até a vila, pois tinha ouvido falar sobre dois sujeitos mal-encarados que aportaram na rua principal, num carro preto. O Giovanni, como sempre muito valentão, foi logo dizendo:

-Nem pensar! Não vou despencar até a vila para ver dois marmanjos.
E chamou o Federico de “viado” na lata.

Foi daí que começou a briga. Engalfinharam-se na grama, e lá se foi a brincadeira. Tínhamos a tarde toda pela, e por causa dos chiliques dos dois xaropes, eu pagava o pato. Voltaram correndo, cada um para um lado da estrada, direto para suas casas.

Fiquei sozinho. Como não queria voltar para casa, subi a colina que levava a uma igrejinha abandonada com um campanário muito antigo. Lá de cima dava para ver a vila toda.

Acionei meu olho de lince pelo vale todo, e vi quando um carro preto subiu a rua em direção às casinhas que ficavam na subida da colina. Desci correndo as escadas do campanário. Queria saber quem eram os tais carinhas suspeitos. Girei o calcanhar para pegar o impulso da corrida mas, nesse exato momento, ouvi um gemido. 

Parei e procurei saber de onde vinha o barulho. Reparei numa tampa de ferro, logo abaixo da escada. Pensei com meus botões: abro, não abro. Era uma daquelas tampas que nem o meu pai conseguiria levantar sozinho de tão pesada. Tive que usar uma alavanca para abri-la.

Olhei para dentro daquele buraco escuro e com cheiro de mofo, sentindo um calafrio na espinha. Fiquei parado, sem respirar direito, querendo saber porque aquela tampa estava ali. Foi quando alguma coisa começou a se arrastar lá dentro. Ouvi nitidamente um gemido. Apurei meus ouvidos e aí gemeu novamente.

Fiquei apavorado e corri como um coelho em direção a saída, mas parei, e voltei novamente ao pé da escada. Um vulto bem pequeno movia-se lentamente para a boca do buraco escuro. Minha curiosidade era maior que meu medo. Criei coragem e indaguei quem era e por que estava ali. Uma voz fanhosa e muito fraca me perguntou. 

-Você não sabe?
-Claro que não!
-Sou Danny Donatelle! Dois homens me sequestraram, ajude-me a sair daqui, por favor.

Aquilo foi o maximo. Eu ajudando um sequestrado e aqueles dois bestas, que deveriam estar participando dessa aventura, não estavam comigo. Com certeza estavam vendo TV, cada um em sua casa.

Com dificuldades saímos dali. Abraçados, seguimos direto para a casa do padre Benedeto. Quando nos viu ficou super assustado, porque já sabia do sequestro e reconheceu o menino que aparecia nas fotos de todos os jornais. Abraçou o menino que estava pele e osso e mandou que deitasse em sua cama coberta com uma pele de carneiro. Olhando para mim, disse: Fique aqui junto dele que vou preparar uma sopinha. Ele deve estar morrendo de fome. Está desaparecido há dois meses. Sabe-se lá o que deve ter sofrido, coitadinho!

O padre pediu-me segredo.

-Não diga nada a ninguém, Toni. Vou avisar a polícia.

Fiquei com muito medo daquilo tudo. Olhei aquele menino, tão magrinho, mas que deveria ter a minha idade. Ele tinha traços bem bonitos, apesar de estar pele e osso. Depois que o padre deu a sopa ao menino e me fez jurar pela Virgem Maria dos Aflitos, corri para casa engolindo o segredo.

Nunca dormi tão mal em toda a minha vida.Tive um pesadelo horrível e acordei assustado. Ouvi vozes e cheiro de cigarro que vinha lá da sala.

Levantei-me para beber água e vi dois homens mal-encarados conversando com o meu pai na sala. Riam e faziam planos para quando recebessem o dinheiro do sequestro. Minha mãe apareceu com um pão e algumas fatias de queijo, e meu pai servia do vinho que estava guardado para o meu aniversário.

Olhei pela fresta da veneziana e vi o carro preto estacionado em frente de casa. Meu coração quis sair pela boca, mas me contive. Pulei a janela e fui correndo até a capela do Padre Benedeto. Os guardas estavam saindo e um deles carregava o menino no colo. Quando o padre me viu, senti que ele ficou sem jeito. Um leve mal estar se estampou em seu rosto. Puxou-me para dentro da capela e, me encarando nos olhos, disse: O que foi que ouve, Toni? Parecia que já sabia da resposta. Comecei a chorar e o abracei. Ele me consolou e me deu água fresca, dizendo: Acalme-se, filho, tudo isso vai passar. Eu, entre lágrimas, lhe disse: Não vai não, padre, agora eu é que serei o menino perdido. Depois disso fui dormir na cama do padre, a mesma cama onde o pequeno, Danny Donatelli, estivera até pouco tempo atrás. Na manhã seguinte, soube que não podia mais voltar para casa. Todos tinham sido presos e estavam na cadeia da cidade. Fui sequestrado pela vida e perdi, o que eu tinha de melhor daquele lugar da infância.