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quinta-feira, 14 de agosto de 2008

A Perna

Tela de Gregory Crewdson




Passava das 00:00 horas e aquele era o último trem da noite. O vagão estava vazio. Dei graças por tê-lo pego ainda a tempo, depois só mesmo de manhãzinha. Entrei e sentei-me de chofre no primeiro banco a minha frente. Estava cansado, mas aliviado por estar a caminho de casa. O trem se pôs em movimento. Eu olhava as estações passarem, distraído, com meu olhar fora da existência. Continuei assim, absorto em pensamentos vagos, quando o trem parou numa das estações. Virei o rosto para ver quem entraria para me fazer companhia, e não acreditei no que vi. Uma perna entrou pulando, meio desequilibrada, no vagão.


Era uma perna de mulher. A pele era delicada, muito clara, sem nenhum pêlo. Provavelmente tinha sido depilada naquele dia. Usava uma sandália vermelha de salto alto. Eu olhei tudo aquilo, meio tonto, quando o vagão deu um solavanco e o trem entrou em movimento. Distraído com a estranha visão, fui arrancado da poltrona e quase perco o equilíbrio, pois o poste de alumínio ficou longe da minha mão. A perna nem tinha como se manter firme, no ímpeto da composição, para tentar um assento. De repente, dobrou-se e deu um salto indo se alojar numa das poltronas a minha frente.


Senti um mal estar indescritível. Aquela era uma situação completamente maluca e eu não estava conseguindo administrá-la. Olhei para os lados procurando alguma coisa que me indicasse que aquilo era obra de alguma “pegadinha televisiva”, mas não, não vi absolutamente nada que pudesse me explicar tamanho absurdo.


A perna começou a bater o pé ritmicamente no compasso da música que tocava no vagão. Eu me sentia num programa de auditório fingindo que tudo estava normal. Eu sabia que a perna estava me observando. No momento em que me virei olhando para a janela, ela deu um pulo, um salto acrobático eu diria, e sentou-se ao meu lado. Gelei, literalmente. Pensei que aquilo era com certeza fruto de um sonho e que logo acordaria na minha cama.


Que nada! A perna encostou-se à minha perna. Fui dominado por uma confusão de sentimentos inconciliáveis. A primeira coisa que me passou pela cabeça foi sair dali e saltar na primeira parada. Mas, quando o trem parou novamente, ouvi um suspiro. Naquele momento congelei de vez. A perna esperava a minha reação e eu esperava a dela.


Naquela hora, o elemento preponderante era, sem dúvida, a perna. Pensei firmemente, ser aquilo objeto de minha imaginação. Então, lentamente, levei minha mão à perna de pele fina e delicada sentada ali ao meu lado e senti um leve tremor ao meu toque. A atmosfera começou a ficar densa. Minha respiração falhava e eu comecei a me desconectar do real.


Foi quando a claridade da plataforma invadiu o vagão e as portas se abriram para outra parada. Nesse instante, a perna deu outro daqueles pulos apoteóticos reforçando minha convicção de que aquilo não podia ser real. Eu estava tão desconsertado que só pensava em deixar aquele trem claustrofóbico.


Enfim o trem parou. A perna virou-se para mim, bateu com o pezinho no chão e deu outro longo suspiro. No instante seguinte, ela pulou para a plataforma de embarque-desembarque. Quando a porta se fechava e o trem começava a se movimentar novamente, eu a vi parada numa das pilastras da estação, parecia nervosa querendo que eu a acompanhasse. Já em casa, no calor das cobertas, em vez de deslizar-me para o interior dos meus sonhos, abracei aquela perna imaginando-a minha amante. Sentia-me tão impregnado pela vida dessa perna imaginária, que para mim o tempo não mais existia.


Passei a ter uma vida secreta num trem, em busca de uma perna perdida. Acho que muitos de nós entramos na existência, como eu entro nesse trem, sem saber distinguir o real e o sonho.

quarta-feira, 6 de agosto de 2008

O Padre e a Menina

Tela de Gerson Wojciech



O que vou contar aqui é a mais pura verdade, apesar de não parecer. É sobre um padre que conheci quando visitava um desses vilarejos vendendo velas, que fica na serra São José dos Ausentes, lá pras bandas do Rio Grande do Sul. Vez ou outra eu passava pela paróquia de padre Serafim, que rezava missas e cuidava de seu rebanho com mão de ferro. Era considerado por muitos um padre severo e exigente. Tinha pelos fiéis de sua paróquia um amor incondicional e por conta disso, se achava no direito de invadir suas vidas com reclamações e ordens de todo tipo. No confessionário se achava um terapeuta de Deus. A sua capela era limpa e adornada de flores e candelabros imitando querubins. Todas as colunas eram forradas com folhas de parreira – de gesso, é claro, mas pintadas com uma tinta dourada que imitava ouro. As toalhas do altar eram de linho puro, brancas e bordadas com ponto sombra e com barrados de renda de bilro, passadas a ferro, a cada missa. Eu há muito, já tinha percebido que padre Serafim era um perfecsionista dos grandes. Às vezes ele chegava a me irritar com suas toalhinhas enfileiradinhas no lavabo, livros separados por cor e tamanho. O capacho era mais limpo que a fralda de Jesus Cristo. Chegava a ponto de interferir no vestuário dos fiéis. Como no alto da serra fazia um frio rigoroso, os fiéis se enchiam de roupas e cachecóis, não se importando muito com a estética do conjunto. Ele não se conformava com tamanha displicência e sem rodeios saia dizendo a eles o que lhes ficava bem ou mal. Portanto, o que realmente importava para padre Serafim eram as aparências.


Tinha pelo catecismo uma predileção especial. Gostava de ver aqueles pequenos alunos recitando a Ave-Maria com suas carinhas inocentes. Ficava extasiado em saber como eram bonitos e perfeitos, que combinavam com sua primorosa decoração kitsch. Um dia apareceu na capela uma menina meio mequetrefe querendo participar das aulas de catecismo. Ela não era nem bonita e nem tão feia que não se pudesse olhá-la. Não tinha uma cor definida, ficava entre o vermelho e o marrom. Os cabelos eram como corda de navio velho, escuros e oleosos. Vestia sempre uma jardineira preta e uma blusa verde escuro com um surrado sobretudo de lã de carneiro encardida. Não era, por assim dizer, uma princesa, mas tudo bem, o padre Serafim teve que aceitar a nova aluna como ela era. Claro que aceitou a contra gosto, aquela coisinha meio sujinha, cheirando a... Não conseguia definir o cheiro daquela menina. O que o incomodava mesmo era o seu olhar e o jeito de sorrir para ele procurando intimidade. Era daqueles olhares estranhos e perturbadores, desses que levanta o tapete para olhar a sujeira escondida. Quando sorria, era um som fininho e estridente que saia de sua garganta fazendo gelar as entranhas do padre inquieto. Ele, remoendo-se por dentro, chegou a cogitar dispensá-la das aulas, mas como faria isso, se ela era uma aluna exemplar? Sabia rezar a Ave-Maria melhor que qualquer dos alunos mais antigos. Rezava olhando para o padre com aqueles olhinhos zombeteiros. Ele, usando de seus conhecimentos estéticos chegou a dar-lhe indiretas quanto ao vestuário e como cuidar dos cabelos. Ela só olhava.

Um dia tomou coragem e foi falar com o bispo. Explicou-lhe sua aflição quando aos olhares e risadinhas perturbadoras, mas a resposta foi categórica: Não! Não deveria dispensar a criança mediante conjecturas de tal monta. E de repente, aquelas aulas que lhe faziam tão bem ao espírito, transformaram-se num tormento. Por mais de duas vezes dispensou os alunos, alegando alguma coisa qualquer, só para se ver livre daquele olharzinho. E quando isso acontecia, a menina esticava a cara olhando-o de cima a baixo e soltava seu rizinho de sabedora das coisas ocultas que o padre trazia.


Eu tomei coragem um dia e chamei o padre para uma conversinha amigável sendo bem claro com ele, fui logo dizendo: Padre Serafim, o senhor tem que parar com essa sua mania de querer que tudo e todos a sua volta seja perfeito. Nem tudo é como a gente quer. Já pensou em começar a aceitar as diferenças? Será que não existe ninguém que o faça mudar? Ele mais do que depressa me respondeu. – “Não, nem o diabo!”. Percebi que ele estava embrulhado em sentimentos pequenos, tão enraizado e que o cegavam de tal forma não permitindo enxergar mais nada que não fosse ele próprio. Considerava-se o centro em torno do qual gravitavam seus fiéis.


Um dia, quando ele já fechava a igreja para se recolher aos seus aposentos, sentiu atrás de si uma presença. Virou-se de pronto e viu a menina, seu desafeto parada entre os bancos. Recuou alguns passos, assustado e já começando a temer o pior. Engoliu em seco e perguntou a ela se tinha esquecido alguma coisa. A pequena, muito displicente, balançando o corpo num gingado nervoso, foi chegando perto da porta e lhe disse:


- Sim, sim, sim, padre Serafim!


Falou e ao mesmo tempo fechou a porta com o pé. O padre, completamente desconcertado, se afastou, mas ela foi se aproximando lentamente, sorvendo um cuspinho de satisfação. O padre, paralisado, não soube como disfarçar seu mal estar. Curvado sobre seu medo, pingava suor. Sua respiração ofegante lembrava um chiado agonizante. Era de estranhar esse espetáculo. O padre com os cabelos arrepiados e a menina firme nos passos de raposa, ganindo sons estranhos. Padre Serafim, num ato de desespero, aspergiu de água benta o corpo da menina, traçando com o próprio aspersório a forma de um crucifixo. Ela, encarando-o com aqueles olhinhos negros, cheios de expressão e mistério, firme na intenção que veio, disse-lhe com voz pausada e melodiosa: “Padreco metido a besta, de agora em diante você vai se sentir perante as pessoas como eu me sinto quando olham para mim. Vai aprender a dar importância a coisas de mais valia que as aparências”.


Você vai dizer: Uma menina virgem? Que poderia fazer! Ah, pois sim!...Eu teria reconhecido direitinho, se fosse uma menina. Pois, ela era um demônio, estou lhe dizendo; a gente sente pelo jeito dela. Ela fixa os olhos estranhos, malvados... Parecendo que está encarando. E, frente a esse olhar perscrutador, baixamos o nosso. Foi o que aconteceu com o padre Serafim. Daquele dia em diante mudou completamente. Obedecendo a uma lógica secreta que só ele e a menina conheciam, acabou que o próprio diabo foi quem lhe deu uma lição.

Depois de um tempo, o seu nariz foi se modificando. Começou a crescer descomunalmente, engrossar e ficar com a ponta avermelhada. Se o olhássemos bem, veríamos um enorme pinto a balançar no meio da cara desconcertada do padre. Até então, tudo bem. O caso piorou quando, um dia, durante a missa, ele começou a ter crises de espirros.

segunda-feira, 4 de agosto de 2008

Relâmpago

Tela de Magritte




Estou só num mundo indiferente. Preferi este estado de isolamento, para compor meus dias de ansiedade com a serenidade necessária. Desliguei-me dos amigos definitivamente. Fiquei sendo uma nota descompassada e dissonante no contexto dos meus dias. Impus-me uma disciplina precisa e exaustiva. Fechei as janelas, tranquei as portas, coloquei grades a minha volta. Busquei o ponto final dessa angústia cotidiana. Não concebi mais nada de meu. Escrevo o último capítulo de um tempo sombrio. Estou aberto para esse novo instante que virá como um relâmpago. Apaguei o passado. Foi minha maneira de criar coragem. Caminho em círculos buscando o som primordial de minha respiração humana. Atravessarei todas as portas num clarão mágico. Não escreverei para ninguém, serei breve e incógnito. Os amigos ficarão pasmos, os parentes sem fala, preocupados talvez, com a qualidade do sangue a correr-lhes nas veias. As luzes piscam reflexos terminais antevendo um céu aberto. Não haverá ritos esotéricos, nem trombetas de anjos para a grande festa de minha vida. Lentamente olharei no espelho para recompor meu olhar de neófito dos umbrais desconhecidos. Não jurarei por nenhum deus e não retornarei para revelar fatos em relação aos espíritos. Serei um corpo indecifrável. Estarei deitado junto aos meus livros. Olharei pela última vez para o retrato de minha desesperança e com a precisão de um mestre desligarei meus sentidos do estampido que se instalará em minha fronte. Estarei pronto apenas, para conhecer o incrédulo rosto da morte.