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quinta-feira, 8 de março de 2012

O Filho


 Tela de Oleg Duryagen



Ia a galope, trincando de frio e impaciência. Tinha recebido a missão do próprio General Tibério - atocaiar o bando de Claudionor e pôr fim nas atrocidades causadas pelos facínoras, que estavam pondo de ponta cabeça a província de Castro Cascudo. O recado do general era bem claro: acabar com o bando, mas principalmente, com um tal guri marmoteiro, que valia mais de trezentos diabos. Eu dava graças a Deus por meu filho estar protegido, estudando com os padres. Ele era o meu xodó. Menino valente que só se vendo. Teimava em ser soldado, mas não deixei não. Soldado bastava eu na família. Internei-o a contra gosto no colégio dos padres. Pelo menos, ali, ele estaria estudando e seria, quem sabe, um doutor.


Eu já era um caso perdido. Entrei para o exército porque meu pai fazia gosto. Eu mesmo detestei cada dia passado com aqueles brutamontes.
Nunca necessitei mostrar valentia. Gostava de ficar no acampamento, longe das pelejas. Que se esfolassem sem mim, pensava. Bravura é para quem quer se mostrar, e tem que garantir exemplo para os que tremem dentro das calças. Digo aos meus camaradas que a morte é uma sujeitinha desgraçada, e que te ronda o tempo inteiro. Principalmente, quando tua espada te resguarda dos desafios dos outros.

Eles, os soldados da minha guarda, foram advertidos para tomar tenência a menor poeira levantada pelos encapetados do Claudionor.
Não passou muito tempo, o olheiro, que eu tinha escalado pra ficar de vigia no descampado em que se mocozava o inimigo, desembestou pelo acampamento aos berros.  O Claudionor levantava acampamento rumo à província. Sob a proteção de Padre Cícero juntei minha gente e  rumamos para a tocaia desse desafeto do governo.

Matar é algo que transcende a nossa vontade. Tu te tornas Deus, e nada mais pesa em tuas mãos, a não ser o júbilo. A espada brilha enquanto cabeças são atiradas ao vento, como pássaros do inferno. A vida no campo de batalha é fugaz. Os deuses estão sentados, vigiando os cadáveres que seguem em fila, fatigados e transpassados de medo, buscando a porta para o desfecho do juízo final.

No meio da gritaria e bater de espadas, a sangueira derramava. Eu procurava o tal guri endiabrado, que fazia questão de deixar bem claro  que era mau, azedo e esfolador. Todos se pareciam no meio daquele tropel desgovernado. Porém, no meio dos gritos de fúria da gentalha que se engalfinhava comendo pó e gravetos, vi, através de um clarão entre o véu de poeira, um rosto de menino, sujo e lambuzado de sangue quente.  Eu estava atiçado de ódio e vaidades de homem bruto. Imaginava que, só pelo fato de matar aquele menino destemperado, me tornaria o manda chuva do General Tebério, talvez, quem sabe, divinizado como valentão e como premio receberia uma gorda aposentadoria.

No meio da correria e dos solavancos que vinham por todos os lados, eu vi o meu futuro, como uma revelação. O que veio pela frente me transformou para sempre, em alguém cheio de horror e impotência, mostrando que minha maneira de ser - modesto, comedido, sempre me esquivando das guerrilhas - nada mais era, do que um jeito de esconder meu lado mau de lobo sanguinário.

O bando de Claudionor era conhecido por abarcar homens destemidos e valentes. Lutavam por justiça e uma vida digna para o povo. Eu estava do outro lado, apoiando a causa do governo, mas sabia que, mais dia, menos dia, eu teria que medir com mais apuro as minhas ideias sobre o que era certo e errado naquela província escravizada pelos coronéis, donos das terras.

Eu te digo que aquele último homem que matei escureceu a minha existência. Vi, em seus olhos de menino, o sonho das conquistas, e, em mim, a derradeira recordação de um ato sem tradução. Seu sorriso sereno e calmo me alcançou antes que minha espada lhe arrancasse a cabeça do corpo. Ele veio ao meu encontro expressando confiança, e antes de articular a palavra pai, a eternidade o havia alcançado.