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terça-feira, 12 de abril de 2011

O Fugitivo


 Fotografia de Gerhard Richter


Havia um grande alvoroço no circo Wanikow. Depois da última apresentação, quando todos já estavam em seus trailers, descansando ou consertando suas roupas para o espetáculo do dia seguinte, ouviu-se um alarido desproporcional. Um grito ecoara no ar e eles perceberam ser a voz do tratador de chimpanzés. Todos correram, girando desnorteados para o centro do acampamento. A novidade era que Ivan o Terrível, o chimpanzé mais atrevido e valente, havia desaparecido entre um piscar de olhos e uma porta aberta esquecida. O tratador estava todo descabelado, e queria ir, assim como estava, no imediato momento daquela hora, à delegacia da cidade, para que começassem as buscas. Ivan era o macaco mais inteligente que eles tinham. Nunca houvera um outro igual a ele. Precisavam de sua presença magnífica nos shows. Ele levava a platéia à loucura, a um verdadeiro delírio, com seu jeito humano de ser. Tinham que procurá-lo a qualquer custo.


Nesse lugar morava uma linda moça de nome Kalima, que era professora de Literatura. Ela gostava de reunir em sua casa amigos e alunos, para ler contos que escrevia. Eram tardes muito agradáveis, e sempre concorridas, pois ali, além das histórias fascinantes e cheias de suspense, era servido um delicioso lanche. Naquele dia, assim que a porta se abriu, Kalima viu que suas visitas já estavam esperando. Foram entrando cheios de alegria, pois sabiam que seria mais uma daquelas tardes repletas de surpresas. Sentaram-se nos sofás e almofadas espalhados pela aconchegante sala. Ela sempre deixava as cortinas fechadas e acendia o abajur. Assim, no silêncio e na penumbra, Kalima lia com toda a sua paixão as histórias.

“Havia, numa cidade pacata, um policial extremamente durão. Ele tinha um prazer mórbido em humilhar a todos que por acaso passassem por ele. Espezinhava cada coisa viva que achasse que estivesse em desacordo com suas normas de conduta. Cuspia de nojo quando via uma mulher vestida com uma roupa mais ousada. Ele era um homem intolerante, irascível e preconceituoso. Não tinha compaixão e não perdoava nenhum deslize, por menor que fosse. Já em sua casa, sofria retaliações e humilhações por parte de sua mulher, que o via como um fraco e incapaz de almejar um posto melhor. Reclamada do salário minguado que ele recebia no final do mês, não proporcionando a ela o conforto que achava que merecia. Ela era a beldade da cidade. Uma loira estonteante, que fazia dele gato e sapato. Era linda, fútil, inútil e insuportável, mas ele a adorava. Um dia antes do aniversário dela, ele perguntou o que ela gostaria de ganhar de presente. Ela olhou para ele sem a mínima consideração por esse gesto, chegou bem perto de seu rosto e passando a mão em seus cabelos, disse zombeteiramente:
- “Eu quero um macaco!”.
Ele deu dois passos pra trás e mordeu o lábio inferior, quase até sair sangue. Fechou as mãos com tanta força, que suas unhas afundaram na carne. Precisou de uma boa dose de coragem para não lhe dar um safanão, mas ao contrário, perguntou:
- “Um macaco?”.
- “Sim, um macaco! Um bem jovem e carinhoso, que me faça gozar como você nunca fez”.

Aquilo foi a gota d`água. Ele, que se imaginava o amante perfeito, não acreditava no que estava ouvindo. Saiu batendo a porta, entrou em sua viatura, e acelerou desembestado pelas ruas da cidade, não respeitando os sinais, e deixando uma nuvem de poeira atrás de si. Pensava com o coração cheio de raiva e amargura, como faria para achar um maldito macaco e esfregar na cara dela. Ia pela estrada com o pé detonando o acelerador, quando de repente, topou com nada mais nada menos que um circo. Parou o carro, desceu, e saiu procurando a entrada do local. Com certeza eles teriam um bom macaco macho para contentar a desgraçada de sua mulher. Chegou justamente quando uma porção de pessoas saíam correndo dos trailers, perguntando o que tinha acontecido e porque de toda a gritaria. Um troglodita, mais parecendo um domador de leões, berrava, sem controle, que o seu melhor macaco sumira. Reboliço geral. Todos corriam em círculos e não sabiam o que fazer. Olharam para o guarda que estava ali, parado, sem saber para quem se dirigir primeiro, e imediatamente quiseram dar queixa do desaparecimento do animal. Ele anotou os detalhes do fugitivo, prometendo procurá-lo sem falta, e saiu andando de costas, mesmo assim, dando uma boa olhada para ver se via o tal do macaco fujão escondido entre as tralhas do circo. Voltou para a viatura e acelerou, pensando que foi muito azar ter chegado quando o melhor macaco tinha tomado chá de sumiço. Estava rodando de volta para a sua casa, e de repente, sentiu uma mão tocando em seu ombro. Deu um salto de susto e, olhando pelo espelho retrovisor, viu um macaco vestido de gente. Quase teve um treco. O macaco, com toda a cara de pau, ainda tirou o boné fazendo vênia, cumprimentando-o. Acabou por achar graça da ousadia do animal e, como quem tinha entendido tudo, respondeu ao cumprimento.
- “Boa tarde, senhor! Para onde quer que o leve?”.
O macaco olhou para ele e apontou com o dedo em riste, que seguisse em frente. Não foi possível não cair na risada. Aquele macaco parecia gente e tinha personalidade.

O que o macaco não sabia era que havia um plano, e o guarda só esperava que ele desse conta do recado. Foram direto para a sua casa. Lá chegando, olhou bem para a cara do bicho e disse:
- “Quero que você entre nesta casa e coma tudo o que encontrar pela frente, inclusive a mulher”. Deu uma piscadela para ele, no que foi prontamente correspondido. Abriu a porta da frente, soltou o macaco dentro da casa e fechou a porta.


Os amigos e alunos da professora Kalima estavam nervosos com a história daquela tarde. Nem piscavam de tanta atenção que prestavam nesse ponto do conto instigante. Foi quando ouviram um barulho estranho na porta da frente. Kalima se levantou prestativa, achando que talvez fosse um retardatário. Foi para o encontro do visitante dizendo:
- “Chegou atrasado, meu bem, o conto está quase no fim!” – Parou estarrecida com o que viu. Ali, bem na sua frente, um macaco olhava para ela com um jeito muito estranho. Deu um grito de pavor, assustando-o também. Os convidados vieram aos atropelos, verificar o que estava acontecendo e gritaram apavorados com o que viram. Isso assustou ainda mais o macaco, que deu um tremendo pulo, emitindo um som gutural animalesco. O que causou  uma debandada geral. Não sobrou ninguém para terminar a história. A sala ficou vazia. Somente ela e o macaco. Um olhando para a cara do outro. Ela voltou, pé ante pé, para a sala. O macaco a imitou, indo, pé ante pé, em sua direção. Ela, muito nervosa, mostrou-lhe as guloseimas sobre a mesa, e ele entendeu perfeitamente que era para se servir. Comeu tudo, até os guardanapos de papel. Depois olhou para ela, que estava de pé, recostada na parede, completamente enrijecida.

O macaco sabia que era o dono da situação. Ajeitou umas almofadas no tapete, e com toda a classe, foi ao encontro da professora Kalima. Delicadamente beijou a ponta dos seus dedos e depois a conduziu até as almofadas, fazendo um gesto para que se deitasse ali. Ela ficou tão impressionada com a sua maneira elegante de se portar, que acabou cedendo ao estranho pedido. Recostada às almofadas, viu quando ele se aproximou andando com aquele gingado característico dos símios. Ele retirou um lírio do vaso e colocou entre os dentes. Sentou-se ao seu lado, e num impulso, pulou em cima dela arrancando-lhe toda a roupa. Deu-lhe mordidas leves no pescoço e  apertou-lhe os seios com a boca, como se quisesse mamá-los. Depois, virou o seu corpo e fez-lhe uma massagem dessas de cinema. Deixou-a tonta, sem ar, procurando algo para se agarrar. Em nenhum momento ela conseguiu gritar, mas gemeu até o fim do ato.

segunda-feira, 4 de abril de 2011

O Cego






 Tela de Odd Nerdrum


Conheci Lew Joe quando servíamos no exercito e fomos convocados para irmos para o Iraque. Apesar de toda a sua família ser protestante, ele não seguia nenhuma religião. Tinha lá suas convicções a respeito dos crentes. Dizia que a religião era apenas uma maneira de tornar tolerável o que era intolerável na condição humana, que era uma forma de falsa consciência e só demonstrava o quanto o ser humano é imaturo e dependente dos deuses. Ele não gostava das palavras flácidas, que não conseguiam exprimir os sentimentos. Tinha uma imagem para isso que era a de que o homem vai amarrado num balão, voa perdido no vazio, desesperado, e sem rumo. Se, por ventura, for içado, dependendo do momento de sua vida, já não importa mais, tanto faz em ir ou ficar.


Depois que voltamos daquela maldita guerra inútil, fantasmas passeavam ao nosso lado. Sei que com ele acontece a mesma coisa. O sangue, a areia, a água e a exaustão dos caminhos de todos os dias cobria-nos de desespero. Lá, tínhamos o inverno todos os dias em nossas almas. Ele costumava me dizer com os olhos alucinados: “Não posso mais ficar, e não posso partir”. Lembro-me do dia em que Lew Joe jogou os seus óculos longe, no deserto. Estávamos numa trincheira, atirando pra tudo que era lado, as balas riscavam o ar e as explosões nos ensurdeciam. Gritei a ele: Ficou louco? Quer se matar, é isso? E vi seu rosto sorrir como há muito não via. Ele encostou a metralhadora no chão e se deitou na areia. Disse calmamente: Não gasto mais nem um grama de pólvora nessa causa perdida. Eu não nasci pra matar ninguém. Depois de uns quinze dias voltamos para casa.

Encontrei Lew Joe no Central Park, numa tarde ensolarada. Nos abraçamos como dois camaradas que se admiram, e pude reparar que ele não usava mais os óculos. Perguntei:
- Agora você usa lentes de contato?
- Que nada, não preciso mais disso.
- Como assim, ficou curado da miopia?
- Não, apenas resolvi ficar cego.
- Que brincadeira é essa?
- Não é brincadeira, apenas a minha maneira de encarar a vida.
- O que é isso, amigo? Quem não enxerga, praticamente, está morto. Como você pode ver a natureza, as pessoas? O mundo está cheio de coisas maravilhosas para se olhar.
- Pois eu, agora, prefiro imaginá-las. Não vou buscar mais nada, nenhum lugar ou momento. Estou completamente dentro de mim, no lugar certo, no centro de minha comunhão com a vida. Respiro o mesmo ar que é de todos, nesse ir e vir do respirar, mas ver, não quero mais. Descobri que a dor acaba fazendo parte da felicidade. Sei que estou só dentro de mim, mas preciso desse silêncio. Aquelas imagens da guerra se evaporaram dos meus pensamentos. Antes eu passeava por todos os recantos sombrios e me via num emaranhado de gritos e escuridão. Quando me livrei dos óculos, cheguei a uma luz inexorável, hipnótica e irresistível. Sei que estou andando sozinho pelos jardins da Terra. Os caminhos muitas vezes se bifurcam e vou encontrando de tudo um pouco. As marés de minha alma estão cheias agora. Amigo, eu te digo que todos os dias busco uma vara para tentar um salto mortal. Miro no inesperado, precipito-me, acreditando que lá em cima poderá haver algo além de ar, mas sei que isso é apenas uma ilusão que o homem criou pra suportar os seus dias.
- Parece-me irreal tudo isso que me diz!
- Muitas vezes tentei te dizer, lá naquelas areias do deserto, que o amor não é doce, nunca foi, ele é amargo e indigesto, só vem com sacrifícios, e isso eu te digo, ninguém pode mudar.
- Não sei não, Lew Joe! O que eu sei é que a noite ofegante dos amantes, a excitação desvairada, a busca de um crepúsculo ardente, ninguém pode nos tirar. O amor é uma coisa milagrosa, que se expande no oculto de nós. Quando o encontramos, gravamos nossos nomes em laca e só pensamos em borboletas e flores. Queimamos de febre.
- Esperei demais por esse milagre e quando achei que podia recebê-lo, vi o que a guerra faz com os homens. Desisti, estou vazio de significações e sentimentos pessoais. A voz da consciência passa por mim, única, num chão invisível. A gente nunca consegue dominar o sofrimento que viu, fica na gente. Agora eu creio em que não posso ver.

Eu, parado no meio do parque, vejo-o imóvel, olhando-me com seus olhos vazios – parece um grande pássaro em forma de menino, que não tem mais perguntas, apenas vê o que quer, e o que vê é cheio de esplendor próprio. Acabo percebendo que de nos dois, o mais cego sou eu e minha vontade de ver claro, sem reparar no oculto das coisas. Não posso deixar de lhe perguntar sobre quanto de anestesia devemos tomar, ou de quantos óculos temos que jogar, para que o sofrimento se acalme.