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sexta-feira, 24 de outubro de 2008

O Arco

Tela de Frank Dicksee


Vem e solta meu coração de tuas mãos.

Gota a gota perco lágrimas de rubi.

Orienta-me nessa desordem de dor.


Deixa que me disparem
De todos os pontos do arco do flecheiro

E voe na cadência dos ventos.

Quero ser a primeira a chegar

Onde o sol levanta.

Erguer teu estandarte

No dorso da terra úmida e verdejante.

Dá-me teu sonho

Para eu encher as jarras de prata

E me acalmar em minha aflição.

Ordena-me um lugar
Sem mistério,

Que caiba sua luz.
Fale-me suas palavras devoradoras.

Dobra-me em teus joelhos de ferro.

Meu coração há de parar

Quando tu parares

Tua flecha de seta cintilante no ar.

Meus pés criarão raízes ao teu redor,

Porque já faço parte da pele que te cobre.


Agora te envolvo com um manto de sono

E sopro uma leve brisa

Para que te aconchegues a mim

Penetrando o meu tecido.

segunda-feira, 20 de outubro de 2008

O Sono

(Desconheço o autor)




Eu já não agüentava mais de tanto sono. Estava sem dormir fazia três dias, uma pane se instalava em meu cérebro zonzo e desacelerado. Minha cabeça bambeava entre o banco de meu carro e o volante. Parei no ponto de táxi onde faço ponto para tirar um cochilo. Senti meu corpo entorpecido, lasso, como se tivesse bebido vinho a manhã inteira. Entrava em estado alfa e meus sentidos reais se misturavam a irrealidade. Flashs de cenas que nunca tinha visto começaram a se formar como numa tela de cinema. Pessoas estranhas iam e vinham numa onda e eu era arrastado àquele centro de sonhos. Pensamentos abstratos suscitavam figuras insólitas. Estava nesse espaço povoado de imaginações visionárias quando escutei o toque de um tambor. Aquele estado de torpor foi sacudido e as visões angustiadas foram substituídas pelo tecido das imagens cotidianas. Vi um braço feminino surgir no espelho retrovisor. Fazia-me sinal que iria entrar. Sentou-se no banco traseiro me olhando de soslaio. Era uma linda mulher ruiva. Sua pele branca e macia transpirava um ar de dissolução. A voz era de urgência. Denunciava algo que eu pretendia impedir. Aquele corpo de mulher sentou-se no banco de trás procurando meus olhos através do espelho. Era uma visão fantástica que se misturava em definições contrapostas. Eu estava perdido em algum lugar entre o sono e a realidade. Essa arbitrariedade me fez acordar e definir o que se passava naquele momento.


Pedi desculpas pelo sono fora de hora e vi sua expressão de desconforto. Ela estava inquieta e apressada. Deu-me o roteiro olhando para todos os lados. Parecia fugir de algo. Era para o metrô o destino e acelerei como ela queria. Corria abrindo estrada, não respeitando nem os faróis fechados. Olhava para ela querendo sua aprovação... e a tinha com certeza, pois o brilho que seus olhos irradiavam não eram de medo ou desaprovação. Percebi algo estranho quando entramos num viaduto. Estávamos quase chegando ao destino e a vi se contorcer de aflição quando viu em outro carro um sujeito que gesticulava pedindo que parássemos. Ela, aflitíssima, pediu, quase chorando, que seguíssemos mais rápido. Vi naquela hora que estávamos fugindo. Acelerei como nunca tinha feito na cidade. O metrô já estava perto e minha angústia era de nunca mais poder vê-la.


Quando estávamos a uns cinqüenta metros da parada, olhei pelo espelho para ainda uma vez vê-la tão linda e desconcertada. O que aconteceu naquele momento ficou fora de minha razão. Ela pegou um vidro com um líquido esverdeado e, apertando o botão de spray, foi passando pelo corpo todo. O carro que nos perseguia estava quase encostando. Ela, desesperada, jogou o dinheiro da corrida no banco da frente e disse entre soluços:


- Ainda voltamos a nos ver!


E assim sem mais nem menos, deixando-me pasmo, com o coração descompassado, a vi se tornar impalpável, uma mera emanação fantasmagórica, completamente invisível. Evaporou-se no ar para o meu espanto. Eu não estava mais acreditando se realmente tinha feito aquela corrida maluca ou se acabara de acordar de um sono onde temos a impressão que rodamos em volta de um parafuso. Foi quando a porta de trás de meu carro se abriu. Senti um perfume resvalando o meu rosto e vi quando uma perna de mulher, sim, uma perna, linda, com sandália vermelha, saltou de meu carro entrando rapidamente no metrô. Foi tudo tão rápido que nem eu, nem seu perseguidor pudemos entender o que tinha acontecido.