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sábado, 31 de janeiro de 2009

Sozinho

Tela de Caspar David Friedrich


O princípio da incerteza aflora

Quando acordo

Na superfície do mundo e

Olho a obscuridade dos seres

Em sua solidão.


Avalio o que não se quer mostrar.

Escondido dentro de si

O homem está só.


Segue na densidade das coisas

E não consegue atuar

Na generosidade.


Estou aqui pairando sobre tudo,

A refletir nessa angustia de ser.

O homem nasceu para ser sozinho.


A condição humana

Atravessa sua alma

Fazendo um ser triste e só

A medir caminhos e fugir de si.


sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

Cabala

Desenho de Iman Maleki


Naquela manhã cinzenta de inverno Naava não queria sair debaixo das cobertas. Sentia-se só e angustiada. Por mais que se cobrisse, um frio gelado percorria o seu corpo. Estava num torpor entre o sono e o despertar, perdida em algum lugar sombrio. Fazia força para abrir os olhos e acordar, mas flashes de visões que o estado alfa proporcionava aguçava sua curiosidade. Entre silhuetas delgadas, seu pequeno filho Yan, de dois anos e três meses, surgia entre miríade de pontos luminosos. Ali, naquele recôndito lugar de sonho, ele lhe acenava um pedido de urgência.


De repente, o foco dessa visão se desvanecia, deixando o coração de Naava bater descompassadamente e uma sombra violácea se formava antes dela abrir novamente os olhos e saber que tudo não passara de uma visão. Ela assimilava até a última partícula de luz que formava o rosto de seu filho roubado, para assim poder fixar melhor aquele rostinho na memória.


Yan tinha desaparecido há uma semana quando brincava sozinho no jardim de sua casa. Após uma desvairada busca aos arredores da casa, do bairro, da cidade, sem encontrá-lo, Naava foi definhando naquela angustia de imaginá-lo sozinho, sem sua proteção. Agora esperava que a polícia resolvesse o seqüestro. Além da polícia, Naava me contratou quando viu a lentidão das buscas. Todos sabem que eu, Lola, sou “a melhor detetive” especialista em seqüestro de crianças.


Naava estudava hebraico quando conheceu Zohar na Faculdade de Letras. Eles estudavam essa língua por causa do grande interesse que tinham pela Cabala. O melhor professor de Cabala que conheciam era o senhor Lipman - homem severo e muito inteligente, respeitado em toda a Faculdade. Ele era um típico judeu ortodoxo, vestia-se sempre de preto, tinha uma barba negra cerrada e bem aparada que lhe dava um ar de Rabi, mas, na verdade, era somente aparência, pois ele não era assim tão religioso. Ele aparentava ter uns quarenta anos, mas devia ter bem menos. O que ele sabia fazer muito bem e dominava era a Cabala.


Naava não sabia por quê, mas não se sentia bem em sua presença. Sempre que Zohar se aproximava dela para conversar, Lipman se contorcia todo e fazia de tudo para separá-los de alguma forma. Ela não tinha certeza se ele estava se interessando por ela, em todo caso, ela não estava nem um pouco. Apesar dessa intolerância do professor em aula, ela e Zohar começaram a sair quase todas as noites. Não demorou para aquele namorico se transformar em paixão avassaladora.

Foi num desses momentos de amor ansioso que Yan foi concebido.


No dia em que Naava descobriu a gravidez, Zohar chegou com a notícia de uma bolsa para estudar Cabala em Jerusalém. Era o sonho para qualquer estudante de Cabala. Também Naava tinha requerido essa bolsa, mas foi somente Zohar que a obteve. Ela, então, por receio de magoá-lo, não lhe contou nada sobre a gravidez. Sabia que se contasse a ele, com certeza estaria acabando com seu sonho de estudar na melhor escola de Cabala do mundo. Fizeram juras de amor e prometeram manter correspondência até quando terminasse os estudos em Israel. Três anos passariam rápido.

Zohar foi para Israel estudar em Jerusalém sem saber desse filho que estava sendo preparado na sua ausência. Também não soube daquela intolerância de Lipman quando via Naava se aproximando dele. Tudo começara com um enorme desejo. Um desejo que Lipman ansiava ser correspondido. Ele até quis negar essa vontade que nascia desnorteando-o, mas foi ficando cada vez mais forte, até que não suportou mais e começou a enlouquecer.


Acontece que Naava e Zohar eram os eleitos. Viviam o crepitar elétrico de uma energia cósmica. Esse amor se ampliava, apesar da distancia. Pertenciam-se e Lipman não se conformava. Ele foi ficando obscuro e quieto, pediu um afastamento da Faculdade de Letras, logo que Yan nasceu. Às vezes, telefonava a Naava e disfarçava perguntando de Zohar: quando voltaria, se estava bem, se escrevia, o que dizia, essas coisas. Naava era atenciosa, mas reservada, pois tinha medo que ele contasse a Zohar sobre Yan. Ela sabia que quando Zohar soubesse desse filho ficaria feliz, mas não iria gostar dela ter escondido esse fato, voltando sem mesmo ter concluído o curso. Naava estava contando com o grande amor que tinham um pelo outro e esperava ansiosamente à volta dele.

Uma semana antes de Zohar voltar, Yan desapareceu. Depois disso você já sabe, foi esse tormento todo que acabo de te contar. Agora ele já está a par de toda a situação. Recebeu a notícia com alegria e tristeza ao mesmo tempo. Nunca poderia imaginar ser pai e perder o filho no mesmo dia. Assim que chegou a cidade passou pela Faculdade de Letras, soube que a cadeira de Mestre em Cabala estava vaga. Foi só falar com o Reitor e já estava contratado. Ia dar aulas na mesma sala em que estudara com Naava.

No dia seguinte à volta de Zohar, Naava recebeu um telefonema de Lipman. Eu estava presente e pude ouvir toda a conversa. Ele estava muito nervoso perguntando por Zohar.


Naava estranhou o tom e me pediu para ouvir na extensão. Naava disse que não sabia de Zohar, pois pensou que ele estava ligando para tirar satisfações por ter perdido definitivamente sua cadeira na Faculdade de Letras. Quando Naava disse a ele que não sabia de Zohar, senti um ar de triunfo em sua voz que se tornara cínica. Ele disse desdenhosamente: “Ele ainda vai me procurar, por bem ou por mal”!


Nessa noite Naava e Zohar combinaram de morar juntos. Naava, depois me contou que foi uma noite de deslumbramento, mesmo sabendo que Yan estava em algum lugar desconhecido, eles se sentiam seguros um dando apoio ao outro. Ser enlaçada com tanta ternura deixou-a num estado de beatitude, tinha naqueles braços um porto seguro. Seus corpos ansiavam por esse momento. Estavam tão fortemente abraçados que eram como um manto de renda entrelaçado. O mundo se estreitara ao redor dos dois. Foi nesse estado de prazer e dor que ela ouviu a voz de Zohar sussurrando, pedindo a Deus pelo filho perdido.

Ele dizia: “Que se abra o véu e me mostre o nome!” Era como um mantra que ele repetia sem cessar. Ele dizia as palavras ao mesmo tempo em que penetrava Naava dando-lhe amor. Todo o ambiente foi se modificando, ela também começou a repetir o mantra seguindo as batidos de seu coração e o pulsar de seu sexo. O quarto girava deixando-os sem chão. Tudo ficara envolto numa tênue luz rosada. Suas respirações eram agora uma só. Quando abriram os olhos viram o inimaginável. Grandes letras feitas de luz giravam ao redor numa dança suave. Flutuavam à volta deles até juntarem-se formando um nome, e esse nome era: LIPMAN.


Lipman estava perdido, pois Zohar agora sabia seu segredo. Quando eu cheguei com meu relatório naquela manhã, quem abriu a porta da casa de Naava foi Zohar. No mesmo

instante em que ele me disse que já sabia quem era o sequestrador eu lhe disse o nome de Lipman. Falamos ao mesmo tempo: Descobrimos!


Descobri também que não era Naava quem ele queria e sim, Zohar. Quando se diz que devemos escolher bem o nome de um filho temos que prestar atenção a isso. Descobri que Lipman em hebraico significa – Amante do Homem. Fiquei com essa idéia na cabeça a noite inteira. Juntei toda a história de Naava e como um relâmpago minha suspeita se confirmou.


Chamamos a polícia e fomos à casa de Lipman. Zohar quis bater primeiro, sem que a polícia entrasse de uma vez. Ficamos escondidos no corredor do prédio esperando. Lipman quando viu Zohar ali parado, começou a tremer. Disse: “Você veio!” – Zohar empurrou-o para dentro do apartamento e ele caiu no chão da sala. Levantou-se rapidamente e saiu atrás de Zohar que vasculhava os cômodos, já desesperado. Yan estava deitado dentro da banheira no meio de uns cobertores. Estava drogado. O maldito Lipman tinha dado ao menino pequenas doses de sonífero, para que se mantivesse quieto, sem chorar. Quando entramos no apartamento, Naava começou a chorar. Pegou Yan nos braços e disse que ele estava muito magro, depois soube que tinha perdido quatro quilos.


Lipman se ajoelhou aos pés de Zohar. Seu rosto estava submerso na escuridão. Seus olhos negros pareciam arder em febre e de sua boca saiam sons guturais que pediam a Zohar que lhe amasse somente uma vez. Com os olhos vidrados de pavor, implorava seu perdão. Vi quando Zohar juntou dentro de si toda luz possível e, olhando para Lipman, disse: - “Eu te perdôo!” Os olhos de Lipman se encheram de lágrimas e quando saia, algemado, com os policiais, sua sombra deixou um rastro escuro.


Zohar enlaçou Naava pela cintura e desceram a rua que se enchia da luz da manhã. Ela levava, junto ao peito, um tesouro.


terça-feira, 13 de janeiro de 2009

Muro das Lamentações

Ilustração de Ben Heine


Ando sozinho nesta linha de fuga. O tempo se esvai apressado levantando uma fina poeira que reflete espectros na paisagem. Deixo para trás um caminho salpicado de tormentas. Cada dia um novo ardil explode no front triunfando entre a fumaça e o sangue de soldados e civis, que vêem seu cotidiano pelo avesso. Adivinho, a duras penas, o contorno do objeto rutilante que ofusca meus olhos cansados. Flutuo no céu esfumaçado que trás revelações escondidas. Nunca terá fim esse escaldar de sangue, esse inferno onde Deus é o aclamado e o mais ausente? Matadouros de inocentes foram instalados em pontos estratégicos e não podemos fazer nada. Sobre esta hora de agonia que antecede o clarão esperado, todos os outros ruídos ficam em suspenso. Um labirinto se forma entre a realidade e o sonho. Dentro dele, armadilhas estão quietas, esperando. Transpasso essa linha de fogo, querendo não ter visto tudo o que vi. Desejando tanto. Um céu noturno encobre o destino da cidade. Ao longe, nuvens cavalgam como loucas encobrindo o que ficou para trás. A lua, como um farol, mostra-me o novo caminho que se abre, e não fizemos nada por merecê-lo. Também, não tenho culpa, eu? Meu sangue se mistura ao do lobo, quando não interpreto a mensagem sublimar escondida nas lágrimas. A prata lunar se molda a minha cara incrédula. Atravesso um lago de sombras. Com meu coração cheio de vontade, avanço reconhecendo o quanto sou solitário e quase perdido ante essas nuvens irisadas de fogo. A noite se enche de meu cheiro de medo. Sou como um cipreste balançando ao vento, espalhando minha densa resina, marcando o caminho, agora ungido por minha vontade de semear momentos de paz. Vou buscar os novos dias que nos prometeram e deixar de ser um náufrago em minha própria terra. Vou nessa vaga luz que começa a manchar a claridade deste muro de lamentações que separa irmãos desde sempre.

segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

Natureza

Fotografia de Nils Udo


Que o inimigo não saiba de minha volta,

Que os deuses despertem,
Porque vim para conquistar.

Arrancarei os olhos

Daqueles que se oporem a minha força.

Desenharei minha passagem

E a terra se abrirá em flancos

Para dar lugar as rochas soltas.


Empurrarei para o cimo dos cumes
A horda dos que tombaram as florestas.

Suas carnes serão sacudidas dos ossos,
Até se desprenderem e se tornarem pó.


Seguirei pelo despenhadeiro e
Encobrirei àqueles que moram

Nas sombras do abismo.


Uma poeira apocalíptica arrastará os grãos

Cobrindo todos os descampados.

Nascerei de novo e forjarei minha espada

No flanco da terra ressequida.


Arrancarei o fogo das entranhas da Terra

Para preparar as sementeiras renovadas.

Sugarei o néctar do orvalho e revestirei

O chão de delícias quando os grãos germinarem.


A possibilidade de vitória se formará
Num horizonte embriagado de êxtase.

Plantarei uma árvore da vida

Em cada canto fértil

E um sangue verde se espalhará

Como um mar transbordante.


Uma canção de jubilo entoará à minha passagem,
Quando deixar meu rastro de amante

No cio do leito da Terra.

Minha força gloriosa rasgará a escuridão do tempo

E recobrirei a Terra de destinos.


A lógica ardente que me impulsiona

Para as entranhas dessa terra verdejante

É uma vontade e um ardor de amante.

Ouvirei de novo a trombeta ressoando,

Que a Terra tornará de novo um Paraíso.