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quarta-feira, 31 de outubro de 2007

Os Pássaros

Ilustração de Françoise Deberdt


Quando fui secretária num colégio na cidade de Guarapari, no Espírito Santo, conheci um professor de português chamado Sílvio Gomes da Silva. Ele era uma dessas pessoas que, quando se conhece, queremos logo levar para nossa casa. Tinha sido Pastor Protestante na igreja Batista por trinta anos. Agora vivia somente para os seus alunos.

Um dia no colégio, estávamos fazendo juramento à bandeira, quando o mastro se partiu em dois, indo cair na cabeça de dona Valdivina Luz Divina, professora de matemática. Foi um baque seco e oco e ela passou dessa para melhor, como gostamos de acreditar. Conhecemos, naquele momento, os meandros da morte ceifeira, que vem num rompante de susto e indeciframento, deixando todos suspensos no ar. Nós sabíamos que dona Valdivina, tinha por direito, conquistado a vida, concluída naquele momento, apesar de nossa constatação. Ela regressava ao desconhecido. E ficamos assim, sem nossa professora de matemática e com um nó na garganta perante a presença da morte.

Logo depois do funeral, o diretor ligou para um amigo, para saber se conhecia algum professor que pudesse substituir a falecida. Não obteve nenhum resultado a sua procura, ninguém estava disponível para aquele cargo. O diretor já estava ficando sem credito perante os pais dos alunos. O diretor começava a se desesperar, quando apareceu no colégio um homem se dizendo professor de matemática, ofereceu-se ao cargo.

Cornélius Adolphus Müller Pirassununga, esse era o nome do sujeito mais estranho que tinha aparecido por aquelas bandas. Filho de mãe alemã e pai mineiro, tinha uma aparência deveras diferente. Pequenos olhos azuis, quase nipônicos, cabelos cor de palha seca, rosto anguloso e queixo quadrado, em cima de um corpo magro, comprido, com pele morena, queimada de sol. Não olhava nos olhos de ninguém e evitava qualquer intimidade.

Foi o começo de um tempo diferente naquele colégio. O professor Sílvio até que tentou se aproximar do Cornélius, mas aquele olhar azul, vago e frio, cortava o ar e punha uma barreira invisível entre eles. Nenhuma alma vivente atravessaria aquela porta sem se sentir num deserto. O professor Sílvio mal sabia, mas o destino estava tramando uma macabra estória.

Fazia seis meses que o professor Cornélius estava na função e apesar de muitos alunos se sentirem apavorados com a possibilidade de serem chamados para uma sabatina no quadro negro, o aprendizado da matéria estava sendo assimilado.

Um dia todos os funcionários do colégio foram convocados para uma reunião de emergência.Estávamos apreensivos naquela sala que só era usada para organizarmos festas e fazer boletins. O diretor olhou-nos, um a um, tão profundamente, tão misteriosamente – como se o próprio sofrimento estivesse ali a olhar-nos. As palavras que iam saindo da boca do diretor cortavam o ar. Reconheci nelas um tempo de desaparecimentos e desespero.

Duas crianças do primeiro grau haviam sumido numa nuvem de mistério. Era um menino e uma menina. Tinham acabado de completar sete anos. Desapareceram quando voltavam para a casa depois das aulas.

Saímos dessa reunião como insones atordoados pela privação do sono. Caminhamos para as nossas casas, feito autômatos. Só muito mais tarde, choramos um pranto imposto pelo desconhecido. Perdíamos um tempo de paz.

Naturalmente que aquela semana foi atípica. Os agentes policiais nos investigaram como se fossemos os culpados. Estavam doidos por uma pista. Refizeram varias vezes os passos das crianças tentando descobrir um fio condutor, mas sem sucesso.

Foi nessa época que me aproximei do professor Sílvio. Nós estávamos desesperados com a possibilidade das crianças estarem sofrendo. A polícia tinha parado as investigações por absoluta falta de pistas. Fizeram um estardalhaço nos três primeiros dias, mas como o caso não se aclarava, ficara na pilha dos não esclarecidos e caminhava para o esquecimento.

Um dia o professor Sílvio me contou, ter sonhado com bando de pássaros estranhos que falavam com ele, mas ele não conseguia entender o que exatamente eles lhe pediam. Na manhã seguinte, quando já se preparava para ir trabalhar, passando pelo portão, verificou como sempre a caixa do correio. Apanhou um envelope endereçado a ele. Virou o envelope para ver quem o tinha enviado, mas não tinha remetente. Quando abriu a carta, encontrou colada no meio da folha, uma pena branca ensangüentada. Aquilo foi um tremendo choque. Sabia que o sonho tinha sido um presságio.

Qual não foi nossa surpresa naquela manhã, quando soubemos que haveria outra reunião. Fomos avisados que mais duas crianças do colégio tinham desaparecido. A reunião já tinha começado, quando o professor Cornélius chegou. Quando ficou a par dos acontecimentos não teve reação nenhuma. Seu rosto impassível não moveu um músculo sequer. Olhei para o professor Sílvio e vi quando duas lágrimas caíram dos seus olhos, e ao saímos da reunião, ele sufocava um choro.

Depois das aulas, combinamos um passeio. Estávamos em comunhão frente aqueles fatos e decidimos fazer alguma coisa para descobrir o que quer que fosse para ajudar aqueles pais desesperados.

Em Guarapari não venta muito, o ar é seco e o calor sufoca, mas naquela tarde ventou como nunca. As copas das árvores balançavam fazendo um som sinistro como um grito de socorro. Arrepiei-me quando o professor Cornélius surgiu não sei de onde, andando a passos largos e cabeça empinada. Seguiu seu caminho sem ao menos nos olhar para cumprimentar. Parecia um lunático, andando como um fantasma, estranhamente hipnótico, como se estivesse drogado por algum narcótico. Seus cabelos dançavam em desalinho como um campo de trigo maduro. Vimos quando uma pena saiu de seu corpo e ficou voando em redemoinho indo cair bem no peito do professor Sílvio.
Ele pegou a pena e comparou-a com a da carta que tinha recebido de manhã. Eram iguais.

Ele perguntou-me o que eu achava de tudo aquilo? E eu respondi que só mesmo fazendo uma visita surpresa ao Cornélio.
Não queríamos avisar a polícia sem ter absoluta certeza do que se passava em nossas cabeças, mas tínhamos que ter um plano.

Combinamos que ele iria até a casa do Cornélius sozinho, sondaria o terreno e me chamaria depois. Eu ficaria no mercadinho do Tadeu Tadado aguardando o sinal. Como o mercadinho ficava logo atrás da casa do Cornélius, daria perfeitamente para enxergar qualquer movimento que o professor Sílvio fizesse. O professor me disse que se ele não voltasse em trinta minutos eu acionasse a polícia. E se foi.

Entrei no mercadinho e fiquei por ali como quem fosse comprar alguma coisa. O senhor Tadeu só me olhando, esperando o pedido. Vi que ele tinha colocado uma máquina de assar frangos e perguntei:

Quer dizer que o senhor agora tem frango assado? Ele mais que depressa foi respondendo:
Tenho sim, dona! E eles são abatidos aqui mesmo. Assim eu tenho certeza que chegam bem fresquinhos para a minha freguesia.
Fiquei pensando naquelas duas penas brancas que tanto tinham nos assustado e falei:
Ah é! Que interessante! E as penas? Devem sobrar um bocado e penas então, não é? E ele falou: sobravam, mas agora eu vendo todas elas para um galego, professor de um colégio.
Fiquei olhando para a cara do senhor Tadeu que não estava entendendo nada do meu interesse pelas penas. Perguntou-me se também precisava de penas e eu mais que depressa respondi que não. E ele meio sem graça perguntou: e a senhora vai querer um franguinho assado? O que lhe falei de sopetão, ainda com as penas na cabeça: dois, embrulhe dois, por favor.

Sai de lá trançando as pernas e fui direto para o lugar onde o professor Sílvio me fazia sinal. Nesta vida, querendo ou não, há as horas medonhas, aquelas que temos que enfrentar enquanto acordados, e essa foi uma daquelas horas. O professor Sílvio estava lívido, seus olhos estampavam um terror de visões irreais. Sentamos a meio fio da calçada, pois ele não podia mais andar. Aos poucos, entre uma palavra e outra fui entrando num mundo deformado e ilusório que assombraria qualquer mortal.

Ele me contou que, chegando à casa de Cornélius, foi logo entrando pelos fundos. Havia um quintal rodeado de arbustos e teve que forçar sua entrada por entre eles. A casa estava toda fechada, e as janelas tinham grades. Tudo estava em silêncio. Ele ficou pensando como entraria ali para tentar descobrir alguma coisa. Sabia que o que estava fazendo não era correto, aquilo era um caso de polícia, mas não iria chamá-la sem ter certeza. Estava pensando como forçaria a porta quando ouviu o Cornélio saindo. Esperou que ele desaparecesse e foi até a porta da frente, mas ele a havia trancado. Voltou para o quintal e começou a forçar a porta dos fundos, mas ela também estava fechada. Portas fechadas, janelas com grades, assim não conseguiria entrar na casa, além do mais, não era um doido para tentar arrebentar a fechadura, com certeza acabaria na cadeia por arrombamento. E se o Cornélius não tivesse nada com essa estória. Ia já desistindo quando tropeçou no capacho. Foi aí que descobriu a chave. Foi uma sorte tremenda. Abriu a porta dos fundos sem problemas e foi entrando na cozinha com muito receio. Foi para a sala e não viu nada. Estava subindo as escadas quando ouviu um som de pássaros cantando. Era uma música e estava tocando em algum lugar da casa. Desceu as escadas e apurou os ouvidos. O som vinha debaixo da escada. Viu que ali não tinha nada, além de um tapete grosso e um enorme baú. Ficou parado, olhando tudo aquilo sem entender nada. Foi quando teve a idéia de arrastar o baú. Forçou-o para movê-lo de todos os lados, mas ele estava muito bem colado no chão. Quis abrir a tampa, mas ela estava bem trancada com um enorme cadeado. Procurou pela sala algo que pudesse arrebentar o cadeado e encontrou uma vara de ferro de pegar brasa na lareira. Arremessou-a com toda força sob o cadeado que se rompeu e assim ele pode abrir o baú. O baú não só estava vazio, como não era um baú, e sim, uma escada camuflada.

Nessa hora ele me disse que tremeu. Não sabia se voltava para me avisar, ou se seguia a diante, para ver mais. Viu que ainda tinha treze minutos do nosso tempo combinado para que eu chamasse os policiais então decidiu ir em frente. Tinha que ter certeza do que estava acontecendo, antes de começar um escarcéu. Até aquele momento ele só tinha suposições, mais nada. O que ele procurava eram evidências que comprovassem nossas duvidas. Descer aquela escadinha foi à prova de fogo. Foi descendo, descendo, fantasmagourando um pavor eminente.

Viu ali, um mundo desconhecido, um mundo que não podemos conceber. Não podia mais voltar depois de vê-los. Dentro de uma gaiola, havia cinco casais de pássaros, recobertos de penas brancas. Tinham longos bicos coloridos e longas penas na cabeça. Por baixo do bico, provavelmente arrancado de algum pássaro, havia fita adesiva fechando a boca. Seus braços estavam amarrados nas costas, escondidos sob as penas. Estavam todos juntos, um mais apavorado que o outro. Os pássaros que o professor havia encontrado eram as crianças desaparecidas. Elas, quando perceberam a presença do professor, começaram a gemer um pedido de socorro. Ele acalmou-as dizendo que imediatamente telefonaria para a polícia e chamaria os seus pais. E assim o fez. Dali mesmo, ligou para o delegado que nem esperou o final do relato e já estava com toda a tropa nas ruas.

Vimos quando eles chegaram e nos pediram silêncio. Enquanto os policiais estavam lá dentro da casa, o professor me perguntou sobre os dois pacotes que eu carregava. Disse-lhe que era frango assado. Ele olhou-me sem nada entender e falou: onde você arrumou isso? E eu lhe disse que tinha sido no fornecedor de penas do Cornélius. Dei um frango para ele que mereceu como premio pela coragem de enfrentar tudo aquilo.

Assim foi que o professor Sílvio descobriu as quatro crianças que tinham desaparecido do colégio e mais seis outras, de outras cidades. O Cornélius foi pego em flagrante quando entrava no baú. Os policiais ficaram de campana na casa só esperando que ele chegasse e se denunciasse. Foi preso sem ter tempo de pensar em fugir. Depois de processo todo, acabou sendo internado num manicômio. Depois ficamos sabendo que ele era um maníaco exilado numa doença rara que o fazia delirar num mundo irreal de pequenos pássaros crianças. Se ficasse solto acabaria tendo sua floresta tropical particular.

O professor Silvio foi recebido no colégio com festa. Diziam que ele era o salvador das crianças. Ele me disse que o que gostaria de salvar mesmo eram alguns homens, mas que não há homens salvadores. O maximo que um homem pode ser é um despertador, alguém que mostra um caminho. Somente se salvará quem o quiser. Para homens com Cornélius não haveria salvação jamais.

Aquelas crianças ficaram bem e se recuperaram fazendo terapia. Nós todos aprendemos a dar valor aos pequenos sinais. A carta que o professor recebeu ainda é um mistério, talvez
tivesse sido um desses sinais que nos chega não se sabe de onde, mas sabemos por quê.

Fim

sexta-feira, 19 de outubro de 2007

Açucena


Como uma açucena branca,
Abri-me dentro de um jarro.
Inconsolável eu estava,
Porque tu não me olhavas.

Balancei-me com tal força,
Que perfumes espalhei.
Desprenderam-se mil pétalas
Colando-se em ti por querer.

Enrolei-me molemente
Com meu vestido diáfano.
Mordi-lhe a pele toda
Esfregando-me em ti.

E num suspirar de louco,
Rasgou minha carne branca,
Arrancou os meus cabelos,
Mão de lança me mostrou.

Tornei-me uma coisa inerte,
Indefinida e sem norte,
Cortou-me com uma faca
Para me ferir de morte.

quarta-feira, 17 de outubro de 2007

A Caixinha de Jóia

http://www.jornalorebate.com/90/ZHOUXIAOYUN.jpg
Ilustração de Zhou Xiaoyun


No tempo do imperador Hsuan Tsung da Dinastia T´ang na velha China, havia um mosteiro muito antigo de monges Xintoistas. O mosteiro ficava no alto de um penhasco, rodeado por chorões e bambuzais. Logo abaixo do penhasco havia um cemitério. Todos os moradores da aldeia próxima eram enterrados ali. Aconteceu que um dia uma menina da aldeia perdeu toda a sua família em um incêndio. Naturalmente todos foram enterrados no Cemitério da Colina, assim ele era chamado. Foi um fato muito triste para todos da aldeia. Ninguém soube dizer porque toda a família tinha padecido daquela maneira, e o mais estranho foi pensarem que todos tivessem sido mortos; se esqueceram da menina. Seu nome era Peônia, linda como uma peônia rosada. Ela ficou desesperada por não ter mais onde morar e teve uma idéia. Como sabia tocar p´i-p´a (alaúde) pensou em se apresentar no mosteiro, mas tinha um porém, era uma menina e meninas são proibidas em mosteiros. Pensou seriamente e tomou uma decisão. Iria se vestir de menino e pronto: fosse o que Buda quisesse.

Ela se vestiu de menino, penteou-se como menino e foi apresentar-se ao monge mais velho do mosteiro. O monge até que ficou desconfiado da beleza do menino, mas quando viu o alaúde em seu ombro, se alegrou, pois os Xintoístas davam muita importância à música. Eles acreditavam que a música encerrava em seus tons, elementos da ordem celestial que governava o universo inteiro. Para os chineses, o Som Fundamental era inaudível e se achava presente em toda a parte como vibração divina. Peônia foi aceita no mosteiro como ajudante e tocador de alaúde nas horas de meditação. Passou a usar o nome de Han.

Ela era muito discreta e silenciosa, pois achava que assim sendo, ninguém desconfiaria de seu segredo. Como ela era muito bonita, o monge mais velho, querendo preservar o mosteiro de comentários maldosos, pediu para que o ajudante usasse uma máscara, assim ele não poderia ver e nem seria visto pelas pessoas. Peônia era cordata com tudo e assim fez. Passou a usar a máscara. Primeiro quando tinha visitas, e depois durante o dia para se esconder dos jovens monges que estavam ficando perturbados com sua rara beleza. O mosteiro ficava praticamente vazio à noite, quando os monges saíam para fazer visitas aos aldeões do vilarejo. Peônia então, ia até o penhasco que ficava bem em frente ao cemitério e com seu alaúde, fazia o que sabia melhor fazer: Tocava.

Sua música era divinamente bem tocada, até os chorões se curvavam para ouvi-la melhor, o vento suspendia seu suspirar, a lua parava hipnotizada quando ela dedilhava as canções que contavam as estórias dos Imperadores que já tinham morrido.

Numa noite de lua clara, ela foi até o penhasco tocar seu alaúde e começou uma canção que falava do Imperador Tim Tsung pai do Imperador Hsun Tsung. Era a canção do Crisântemo Dourado, a mais linda canção já tocada na China. Ela era muito precavida e mesmo quando estava sozinha usava sua máscara de menino. Sendo assim não viu quando um soldado se aproximou para ouvi-la. Ele ficou tão comovido que começou a chorar. Peônia se assustou e ele pediu desculpas por estar chorando e disse que há muito não ouvia aquela velha canção. Ela se comoveu com o soldado e até pensou em retirar a máscara, mas, ficou ali parada tocando o seu alaúde. O soldado então pediu a ela, se poderia tocar para o Imperador e sua corte. Peônia ficou encantada, mas ao mesmo tempo apreensiva com o pedido do soldado que nem ao menos podia ver.

Como o soldado era insistente, ela aceitou o convite e marcou para a noite seguinte.

E assim ela se preparou em seu espírito para aquela noite na corte.

No mesmo lugar e hora combinados ela esperou o soldado. Como estava de máscara nem percebeu que ele já estava ali esperando. Conduzida pelas mãos do soldado, foi caminhando

cuidadosamente por um caminho que descia morro abaixo. O soldado então a levou até a salão principal. Ali ela ficou sentada em um tatami de penas de ganso. Pegou o seu alaúde e começou a tocar o Crisântemo Dourado. Foi uma noite suprema. Nunca tinha sido tão elogiada e admirada. Serviram-lhe chá de folhas de bétulas e doces caramelados. No fim da noite o soldado levou-a de volta ao mosteiro.

No dia seguinte Peônia estava prostrada, sem forças para fazer suas atividades cotidianas.

O velho monge passou a observar seu pupilo Han com mais cuidado.

Muitos dias se passaram e Peônia foi definhando de cansaço, pois todas as noites ela era levada pelo soldado até a corte para tocar para o Imperador e sua família. Uma noite, o monge que já estava muito preocupado, pediu para um ajudante do mosteiro que ficasse escondido e descobrisse o que acontecia nas noites de Han. E assim, numa noite de lua cheia, o ajudante Kin ficou como se fosse a sombra de Han. Quando os monges saíram para a coleta que faziam todas as noites, Peônia se arrumou, colocou sua máscara, pegou seu alaúde e foi até o penhasco. Kin silenciosamente, espiava tudo o que se passava ao redor de Han. Quando o espectro de um soldado apareceu surgindo de não sei onde, ele quase deu um grito de pavor. Seguiu os dois de longe e, sem entender nada, viu quando chegaram ao cemitério.

Han sentou-se no meio de uma densa neblina e, de repente, luzes diáfanas começaram a pipocar aqui e ali, vindas de lanternas chinesas.

Um palácio começou a se definir aos olhos de Kin. Todos ficaram em silêncio quando Peônia começou a tocar seu alaúde. Kin tremia como um bambu verde e nem ouviu o fim da apresentação, ficando terrificado quando percebeu que todos ali eram fantasmas.

Voltou ao mosteiro correndo como uma lebre fugitiva, nem esperando por Han. Viu o que tinha que ser visto e foi ter com o velho monge assim que ele voltou da aldeia. Como tremia muito e seus dentes batiam sem parar, teve que ser submerso numa tina de água fria. Assim, todo molhado, mas muito mais calmo, começou uma estória de palácios, soldados, corte de imperadores, crisântemos dourados que o monge já estava ficando tonto. Kin só se acalmou quando lhe deram chá de camomila do campo. E assim, mais calmo, disse alto e em bom tom: Han está enfeitiçado por fantasmas do Cemitério da Colina. O monge ficou petrificado. Como isso poderia estar acontecendo com o seu lindo pupilo tocador de alaúde? Tinha que fazer algo imediatamente. Chamou o monge rezador de sortilégios e encantamentos e colocou-o a par da situação. Ele então disse tudo o que tinham que fazer para salvar Han. O falso menino foi chamado e investigado. A princípio Han quis inventar uma estória, mas foi logo desmentido pelo velho monge que disse saber de toda a verdade.

Acontece que nem mesmo Peônia sabia que estava sendo enganada por fantasmas do cemitério. Por causa da máscara, nada via, somente sentia. O monge rezador então disse: Para que você não seja levado definitivamente para aquele palácio fantasma, tem que permitir que eu escreva uma reza em forma de mantra em toda a superfície de sua pele. Isso deixou Peônia deveras preocupada, pois sabia que ele descobriria sua verdadeira situação. Então teve uma idéia. Deixaria se escrever com mantras sagrados por toda a sua pele, menos no santuário da virilha. Sua caixinha de jóias ficaria salva de curiosos.

Foi então, inteiramente envolvida em letras sagradas que a protegeriam do chamado do soldado fantasma. Quando caiu a noite, ela se preparou como o monge havia explicado: sentou-se silenciosamente em estado de meditação, nua e com o alaúde a sua frente, pousado no chão. O soldado veio na hora de todos os dias. Chamou pelo menino e não obteve resposta. Olhava, olhava e nada via, somente enxergava o alaúde recostado e uma espécie de borboleta muito branca. O mantra deixava invisível quem o tivesse escrito na pele. O soldado ficou sem saber o que fazer. Como voltaria para o seu imperador sem o menino tocador de alaúde? E para provar que tinha vindo realmente buscar o menino, apanhou o alaúde e a borboleta.

Peônia, não podendo gritar sem se denunciar, chorando de dor deixou que lhe arrancasse sua caixinha de jóias.

Quando o fantasma foi embora o mosteiro inteiro ficou numa revolta total. Peônia não teve como esconder o seu segredo. Chorando de dor e vergonha pediu ao monge que a ajudasse. Ele então ordenou que todos rezassem para a paz dos fantasmas e que o soldado devolvesse a caixinha sagrada e o alaúde à pobre menina. Ficaram toda a noite rezando mantras sagrados e na manhã seguinte encontraram a caixinha e o alaúde exatamente no mesmo lugar em que tinham desaparecido. Desse dia em diante Peônia começou a receber visitas de nobres da província que queriam conhecer a menina que sabia tocar o Crisântemo Dourado. O mosteiro enriqueceu com as oferendas doadas pelos nobres e a menina Peônia, feliz com sua arte e sua caixa de jóias de volta, pode viver no mosteiro usando máscara de menino até o dia em que recebeu um pedido de casamento do filho do imperador.

O Retorno

O desaparecimento de Otto no Departamento de Homicídios tinha sido uma estocada no estômago para muita gente. De repente vinha à tona o abandono em que o deixaram depois daquele fatídico acidente que lhe rendeu um eterno se arrastar. Ficou por ali no departamento, indo e vindo, naquele mar de processos, até se tornar invisível.

Otto era meu amigo desde a escola fundamental. Conheci sua fibra de investigador quando ele desbaratou uma quadrilha de mafiosos que roubavam calcinhas. Era sagaz e inteligente e sempre pronto para acobertar minhas investidas nas bonecas do pedaço.

Agora se podia ver em seus olhos uma insegurança desolada. Fragmentava-se num nada, naquele vai e vem, arrastando atrás de si a solidão.

Eu tive um estalo quando dei um encontrão em Otto, fazendo voar uma pilha de seu tedioso trabalho. Juntos, em silêncio, juntamos folha por folha. Senti que tinha que resgatar aquele brilho em seu olhar novamente.

Planejei tudo enquanto esperava o sono relutante. Tinha uma suspeita martelando na cachola. Oferecia resistência por ser maluca, mas lá no fundo de meu cérebro resguardado, eu iria colocar Otto novamente na ativa com pompas e glória.

Desconfiei de uma dona muito gostosa que apareceu na delegacia para pegar um alvará para o seu estabelecimento. Ela estava abrindo um Pet shop cheio das milongas. Embromei a dona dizendo que o alvará seria entregue no local. Dei uma de incerto quanto ao dia e despenquei no recinto da madame de surpresa.

Tudo muito limpo e bem montado. Dona Circe, assim se chamava e tinha vindo pra ficar. Ela surgiu por detrás de uma dessas portinhas vai-e-vem com um vestidinho de malha e um decote que me deixou com o nível de testosterona batendo pino. Meu gatilho disparou na hora. Bati o joelho numa cadeira de mogno maciço quando disfarçava aquele transtorno que me surgia entre as pernas.

Foi quando ela abriu a gaveta para pegar uns curativos, que vi uns pacotinhos de pó branco. Disfarcei e a partir daí, comecei minhas investigações.

Ela era da Colômbia e tinha contato direto com o cartel de Medelim. Sua loja era uma fachada para um inusitado tráfego de cocaína. Era a tinhosa em pessoa, comandando uma arapuca do cão, era bacharel em maconha e tinha doutorado em cocaína.

Promovia competições e concursos de beleza para os cobiçados cãezinhos. Mandava-os para todos os cantos do mundo, mas com as pancinhas atoladas de cápsulas de cocaína, abastecendo assim vários pontos da Europa e das Américas.

Pensei em Otto quando escrevia meu relatório de aparências inevitáveis. Já que ele estava encostado no departamento sentindo-se um peso morto, resolvi quebrar aquele círculo vicioso. Deixei em sua mesa, pistas montadas para que desvendasse o "Caso Circe". Ele caiu que nem um patinho.

Vi quando entrou naquela geringonça azul calcinha, que chamava de "possante". Era o xodó dele. Aquele carro era tão velho que nem marca tinha, acho que um dia foi um Corcel.

Como eu imaginava, Otto estava mais do que lúcido para um investigador. Foi batata! Ele descobriu tudo sem muitos rodeios e a dona Circe começava a ser mais uma estatística.

Quando ele voltava para pedir escolta, segui-o à distância. Queria ver a cara do pessoal do departamento quando soubessem que o Otto estava vivo, manco, mas na ativa novamente.

Otto não desapareceu, Otto era "o cara"!

FIM