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quarta-feira, 28 de novembro de 2007

A Poeira

Tela James Louis Steg



Logo que cheguei ao campo, quis conhecer o lugar. Fui com o meu cãozinho vira-lata passear pelas redondezas. O esplendor verdejante das árvores ofuscava-me. Subimos e descemos por todos os lugares que não tinham cercas, até que topamos com uma encruzilhada. A terra era batida e vermelha e só de olhar o lugar em volta, quieto, um arrepio percorreu o meu corpo. De repente meu cãozinho assombrou-se com alguma coisa. Um vento levantou uma poeira fina e densa e partículas de pó dançaram rodopiando, levantando folhas secas, arrancadas das encostas de arbustos, que estalavam um som musical de assobio. A poeira fina entrava nos cantos todos. Colava na pele, entranhava nos cabelos que se emaranhavam entrelaçando os fios num trançado louco de carrapicho. Meus olhos se fecharam num desespero de dor, pois tinha sido invadido pela poeira. Era só um cisco, mas valia por mil. Por entre as pálpebras semi-serradas, eu vi, ali de sentinela, no meio da poeirada toda, uma figura desassossegada a medir-me e a rir de meu medo. Eu estava ali, como uma criança apavorada, por não entender de sombras e daquele risinho fino e constante que se mesclava com o vento. A poeira chicoteava o ar, riscava minha pele já toda lanhada. Por medo e precaução sussurrei engasgada: Valei-me meu Deus, abra esse vento e espalha o pó no tempo!

E no meio daquele reboliço, vi com a certeza que carrego comigo, ali no meio de tudo, ele, lindo, rindo para mim, descruzando os braços, que pareciam dar muitas voltas em seu dorso. Foi estendendo lentamente suas mãos de homem. Encolhi-me de pronto e fechei mais ainda os meus olhos que enxergavam mesmo fechados. Quando criei coragem, abri os olhos ainda doloridos pela invasão de poeira e vi naquela desordem de ventos, ele, pinoteando e rastejando no meio de uma labareda de fogo, gritando o meu nome. Colei no chão, paralisada, sem forças nem para respirar. Abri meus olhos que definitivamente se livraram do cisco pelo bafejar daquela coisa estranha que agora era uma nuvem de poeira a se diluir no vento. Foi sendo levado, dançando um balé macabro e no instante exato de seu sumiço, vi o seu pé girando em círculos. Era um casco de bode.

quinta-feira, 22 de novembro de 2007

Lola

Foto de Gregory Crewdson


O senhor e a senhora Ginett estavam beirando os setenta anos. Eram apaixonados desde seus dezesseis anos, quando tudo era doce e a alegria exalava de seus poros.
Constance Dragon Ginett pediu a mão de Marie Louise Laure Isabelle de Saint Paul aos dezoito anos, recebendo um sonoro não do barão Ambroise Saint Paul, dono da maior fábrica de geléia de groselhas de Bar-le-Duc, cidadezinha francesa, localizada a 254 km de Paris.

Sua plantação de groselhas era famosa pela qualidade das frutas. Ficava na fantástica região da Alcásia-Lorena.
Diziam que seu coração era vermelho unicamente por causa das groselhas, de resto era frio e branco como o gelo.
Constance e Marie Louise fugiram para se casar em Paris na clandestinidade. Quando o barão Ambroise soube, não havia mais nada a fazer. Já era fato consumado. Ambroise durou pouco tempo, depois de ter sentido o desgosto de ver sua única filha, casada com “um selvagem”, era assim que ele denominava Constance.

Marie Louise herdou todas as terras e a mansão de arquitetura renascentista. Ela e Constance passaram a cuidar da herdade com a visão administrativa de Ambroise. Mantiveram todos os gerentes e mestres que o pai de Marie Louise confiava, fazendo com que os negócios não sofressem com a morte do fundador.

Não tiveram filhos para legar a imensa fortuna que acumularam, iam vivendo da melhor maneira que sabiam. Ele era mestre da Confraria da Geléia de Groselha, entidade secretíssima, acessível somente aos diletos membros convidados, sempre produtores de geléias, com seus segredos guardados a sete chaves. Constance tinha um hobby que compartilhava com Marie Louise e somente ela e mais ninguém sabia.

Constance estava sempre contratando mocinhas estrangeiras para aprenderem a arte de tirar sementes de groselha. Com uma pena de ganso de ponta bem dura, acuidade visual e destreza manual a moça era contratada para a função. Eram todas muito jovens e vinham dos confins da Europa; muitas eram portuguesas, espanholas ou polonesas.

Vinham em busca de independência financeira, pelo maravilhoso lugar e naturalmente por casa e comida. Entravam pelo negro portão de ferro e perdiam-se sob os ramos das groselheiras.

Numa manhã fria de janeiro, Lola, uma espanhola exuberante, bate naquele portão de ferro, respondendo a um anúncio de governanta. É contratada para ajudar Marie Louise na administração da mansão. São dois salões, dez quartos, duas saletas, cozinha, dispensa, lavanderia, mais a correspondência. Tudo estava por conta dela agora.


Lola não era somente uma linda mulher que vinda de Barcelona para ser governanta, Lola era um pouco mais. Ela era detetive particular, contratada por Marek Molinovsk, um pai polonês, desesperado a procura de sua filha Mila. A menina queria estudar artes plásticas em Paris, contra a vontade de Marek, que havia pensado em algo muito mais lucrativo para ela. Pensou que Mila poderia administrar sua fábrica de lingüiças, o que fazia a mocinha, só de se imaginar na função, sentir náuseas.

Mila fugiu sem deixar rastro. Marek só sabia que ela queria ir para Paris estudar artes.

Lola tinha um pequeno escritório em Paris, era considerada, “a melhor detetive”, em casos de desaparecimento. Sua fama já havia se espalhado boca-boca. Seu lema era:
“Olho vivo e Faro fino”. Fazia sempre, um serviço rápido e limpo, não extrapolando nos orçamentos, o que passava muita confiança para o contratante.

Foi até a Polônia, precisamente na cidade de Poznan. Uma cidade antiga muito bonita que ficava há alguns km de Varsóvia. Conversou por um tempo com o senhor Marek para tentar desvendar o mistério, mas foi no quarto de Mila que Lola descobriu uma pista. Era um jornal faltando um anúncio que tinha sido recortado. Comprou o jornal já vencido, através de um jornaleiro que tinha um depósito para guardar jornais velhos, comprados pelos mercadores do local, para serem usados nas peixarias e açougues. Com o jornal nas mãos, foi fácil achar o anúncio da cidade de Bar-le-Duc e chegar à mansão de Constance e Marie Louise. Sorte grande, foi ficar sabendo na estação de trem, que a mansão estava precisando de uma governanta.

Fazia uma semana que estava na mansão e nada de ver a senhorita Mila. A casa, praticamente, fora toda vasculhada, o telefone estava grampeado, a agenda de Constance só continha negócios sobre a plantação de groselha e não tinha nada que a levasse, suspeitar dele por ali. Sentiu que estava perdendo aquela investigação.

No dia onze de janeiro, a cidade Bar-le-Duc ficou em festa, comemorando o dia de Saint Paulin. Constance iria a uma reunião na Casa da Confraria da Geléia de Groselha e depois se encontraria com Marie Louise que estava com umas amigas no Clube da Groselha, portanto, demorariam pelo menos umas três horas, tempo suficiente para ela dar uma última rastreada na mansão, sem medo de ser pega. Ela disse a Marie Louise que passaria na festa só depois de deixar sua correspondência particular em dia.

Com os sentidos aguçados, começou uma minuciosa investigação. Detalhou cada canto da casa, mas nada ali era suspeito, talvez tivesse que sair pelos arredores da mansão. Lembrou que o único lugar que nunca tinha conseguido entrar era o escritório de Constance, pois ele não saia dele por nada. Era dali que comandava o seu império.

Foi um passeio infrutífero por aquela sala, viu cada canto, cada livro, cada gaveta e nada. Quando estava saindo, um leve som oco lhe chamou a atenção. Era uma batida repetida como um código Morse.

Parou de respirar. Sim, ouvia perfeitamente uma batida insistente e desesperada. Procurou uma brecha nas estantes, buscando uma passagem secreta, e nada! Quando estava quase desistindo, o fax tocou, enviando uma mensagem. Lola assustada com o sinal eletrônico, derrubou um cinzeiro azul de Murano, que rolou para debaixo da mesa de Constance.
Quando se abaixa para pegá-lo, vê uma nesga de luz no assoalho. Prendeu novamente a respiração e, cuidadosamente, afastou a pesada mesa de cedro esculpida com dragões. Essa mesa tinha sido um presente de Marie Louise em alusão ao segundo nome de Constance. Dragon era o nome que ela o chamava na intimidade.

Delineou-se no chão a porta de um alçapão. Procurou pela sala uma lanterna que pudesse iluminar a escada, achou-a na gaveta das listas telefônicas. Sentiu um frio no estômago enquanto descia pé-ante-pé, aquela escava mal iluminada. De repente, o código Morse recomeça batendo freneticamente em algo de metal. No pé da escada viu um fio com uma lâmpada dependurada e apagada. Dessas que tem um interruptor na base, onde se gira uma lingüeta de liga-desliga.
Tremendo como nunca, gira a lingüeta e a lâmpada se acende trazendo a sala uma luz amarela e fantasmagórica.

Foi uma visão dantesca. No centro da sala, havia uma mesa de açougueiro, feita de madeira maciça e ao redor dela, uma canaleta, coberta por uma grade de metal. Provavelmente para coletar sangue. Logo acima da mesa havia um trilho com vários instrumentos de corte: serrotes, facões e marretas. Bem a sua frente havia uma grande geladeira-freezer de aço inoxidável.

Andando em direção ao som, Lola pára, estarrecida, quando vê uma jaula toda almofadada. Amarrada num canto, uma mocinha ruiva, com grandes olhos azuis apavorados, a olha. O medo estava estampado em seu rosto e de sua boca não se ouvia nenhum som, apenas apontava a geladeira com seu dedo em riste.

Lola estava tão assustada, que abrir aquela geladeira foi igual a uma das missões de James Bond. Parecia que se abrisse a geladeira, um demônio pularia direto em seu pescoço, prendendo-a na jaula também.

Com todo o cuidado, abaixou a maçaneta do freezer, que tinha uma trava de segurança. Teve que colocar as duas mãos para forçá-la para baixo. O medo é a pior coisa que alguém pode sentir, ele trava todos os sentidos, fazendo coisas simples tornarem-se inexpugnáveis.

A porta abriu-se e naquele momento, o quadro visto por Lola, fez com que seus sentidos fossem desaparecendo. O chão foi se afastando e a luz foi sumindo.

Foi quando a mocinha gritou, destravando um medo atávico, fazendo com que Lola, voltasse daquele torpor. Correu para junto da jaula e viu o cadeado trancado. Imediatamente seu sangue volta a irrigar seu cérebro, fazendo sua reação contra o perigo ficar ativada. Pegou a marreta pendurada no trilho sob a mesa e bastou duas boas pancadas para que quebrasse o cadeado.

Abraçaram-se. Era Mila Molinovsk em pessoa, querendo voltar à Polônia para seu velho e antiquado pai.

Lola terminou de fotografar aquele antro maldito e saíram dali em seu carro, diretamente para Paris. Não tinha confiança no delegado de Bar-le-Duc, com Constance sendo o bam-bam-bam da cidade.

Em Paris o comissário de polícia ficou apatetado, vendo as fotos tiradas por Lola: eram sinistros pacotes de carne de seres humanos, devidamente mutilados, esquartejados e embalados para consumo do casal de velhinhos, os mais ricos da cidade. Mila seria a próxima vitima; só esperavam seu tempo de engorda.

No tribunal, descobriu-se o verdadeiro hobby secreto do casal sinistro. Eles disseram em confissão, que não existia no mundo, iguaria mais requintada que a carne humana ainda jovem. Constance achava celestial a carne cosida no molho de groselhas.
Ele contratava mocinhas estrangeiras, que depois de um tempo, eram despedidas e assim na volta para suas casas, tomavam o atalho do porão, onde eram enjauladas e só depois de passarem pela fase de engorda, eram esquartejadas e embaladas para consumo.

Lola voltou com Mila para a Polônia, pois tinha que receber seu pagamento. Enquanto se despedia da família, seu celular toca. Era sobre um menino de seis anos, filho de um banqueiro inglês. Estava desaparecido.

FIM


terça-feira, 13 de novembro de 2007

Frio na Espinha

Ilustração de Alan Lee


Eu e umas amigas fazemos, uma vez por mês, uma reuniãozinha para segurar a amizade pelo estômago. Somos em cinco e cada uma traz um prato cheio de delícias para passar a tarde contando casos, bordando, pintando ou o que dá na telha. Eu faço refrescos de frutas e sorvetes, assim passamos uma tarde que sempre se alonga até a noite bater na varanda.

Esse é um daqueles casos verídicos que ficou impresso na minha memória.

A família Nunes, mui rica, chegada numa dinheirama de lascar e metida na política até os fundilhos tinha, por patriarca, o seu Nune - Durval Nunes – tido pela mulherada como um pedaço de mau caminho. Donana – Ana Nunes – dançava um xaxado com o seu Nune por conta das escapadas dele. Tinham um hotel na cidade que era freqüentado pela nata politiqueira e pelos maçons, que vira e mexe estavam fazendo reuniões no salão do hotel.

Ana Maria, uma de nossas amigas de reunião, era neta do seu Nune e Donana. Quando tinha dez anos o pai Osvaldo bate com a caçoleta e parte dessa para melhor por conta de uma nefrite “maledeta”. Fica o seu Nune, de bom gosto, no encargo de sua educação. Deusdeth, mãe de Ana, de bom grado deixa que ela seja mimada por seu pai. Ela vivia no cangote do Nune enrodilhada por uma manta, indo por tudo que era canto, para cima e para baixo, era o chodó dos Nunes.

A bichinha tinha tanto amor por ele que mesmo depois de mocinha ia visitá-lo sempre que podia. Vai daí que numa dessas vezes, quando já entrara na idade das malicias, os peitinhos despontavam, pois que ela, toda faceira, se mete sozinha no trem que levava a casa dos avós. Era dessas viagens de tempo esticado. Saiu com sol e chegou com a lua. O trem já apontava na estação e Ana seguia tranqüila, pois o avô estaria a sua espera.

Acontece que não sei por que cargas d´água o trem parou para baldear uns crentes que cantavam rezas e uma confusão de gentes que não queriam pagar os bilhetes, entraram fazendo o maior pampeiro. O trem se atrasou mais de uma hora nesse entra e sai descompassado.

Quando já estavam entrando na estação as pessoas começaram a se levantar, ajeitando os fardos e os sacolões. De repente um sujeito grandalhão de cara avermelhada, resolveu se entalar bem no vão entre os bancos onde estava a Ana Maria e assim, sem mais nem menos, lhe mostrou o pinto. Como esse tal de pinto era um negócio muito grande, Ana não atinou coisa com coisa, mas quando ele estendeu aquela mãozona para encostar-se nela, ai sim, foi um deus nos acuda. Ela passou por baixo daqueles braços peludos, estendidos como estacas e se “pirulitou” do trem. Acontece que o avô, de tanto esperar, desistiu e voltou para casa, achando que ela tivesse mudado de idéia. Sabe como são essas meninas...

Já era noite e Ana Maria teve que amassar um barro, andando até o seu destino. Uma distância de quinhentos metros separava a estação da casa dos avós dela. Caminhou que nem barata tonta, indo de um lado a outro da rua, para despistar os passos que percebeu logo atrás de si. Enquanto andava ia vendo a pobreza do lugar, das casinhas, os gritos, a choradeira das crianças. Jurou que estudaria e faria tudo para não ser arrastada naquele turbilhão de miséria. A casa do seu Nune era a melhor do bairro, depois da do prefeito, é claro!

Ana Maria sentiu que não daria tempo de chegar à casa sem que aquele sujeito cascudo topasse com ela. Então se preparou para o pior. Tinha sempre um spray de pimenta malagueta, preparado pela mãe que instruía a filha a não pensar duas vezes antes de usá-lo. Ela dizia: use antes e pense depois, senão poderá ser tarde demais. Foi o que Ana Maria fez, assim que viu aquele pintão balançando em sua direção. Para completar o serviço, ela ainda teve o espírito de espirrar um jato bem generoso de pimenta no dito cujo, que já se podia considerar acanhado.

Ele ficou rolando de dor que nem um bicho acuado. Ana Maria correu com quantas pernas Deus havia lhe dado, chegando à casa dos avós bufando que nem cavalinho bravo. Nem bateu palmas, foi logo pulando o muro, que nem um ladrão da noite.

O avô levou um tremendo susto quando ela apareceu na porta da cozinha de olhos arregalados, estava quase caindo de tanto medo. Donana foi logo acudindo com uma tigela de água, fazendo-a se sentar num banquinho de taquara, benzendo um sem fim de preces ao seu padrinho Cícero.

Ana Maria descreveu o ocorrido - tim tim por tim tim - e o seu Nune matou a charada na hora dizendo:
Esse filho da peste é o Raimundinho! É filho do prefeito e se acoberta de tudo que é safadeza por estar nas asas do pai, mas há de chegar aqui um cabra desses com cabelo nas ventas e por fim nessas indecências que ele, vira e mexe, apronta com as moças donzelas daqui. Não tem semana que esse famigerado num apronta das suas.

Naquela noite Ana Maria sonhou que fazia parte da turma do Lampião e que ele lhe ensinava como pegar o manhoso, afilhado do cão, filho de ordenança. Conversa vai e tais e tais, riscou na mão de Ana uma figura.

Quando de manhãzinha ela se apruma para sentar-se à mesa com os avós e começa a atacar uma tigela de açaí, vê o desenho na palma da mão. Lembrou-se do sonho e contou ao avô, que olhou o desenho na mão da neta. Ele chama Donana para olhar também e ela diz:
-Isso tá me lembrando aquela sua fantasia de gorila que o seu avô comprou em Salvador, para você pular o carnaval.
E não é que parecia mesmo! Que estranho!
Estranho nada, Ana Maria se lembrou que apagou uma vela antes de dormir e que com certeza foi esta que deixou uma sujeira de fuligem em sua mão. Só faltava o Lampião aprontando das suas.

E assim foram conversando durante toda a manhã sobre o ocorrido e Ana Maria ficou sabendo da infância de Raimundinho.

Ele nunca foi flor que se cheirasse. Era briguento e mandão. Queria ser o primeiro em tudo e tomava na marra se não lhe fizessem as vontades. Numa dessas, uma vez apareceu um circo na cidade e as crianças ficaram encantadas. O circo tinha uma porção de jaulas com vários animais. Raimundo para se gabar com as meninas, disse que entraria sozinho na jaula dos macacos. E entrou – saindo em seguida com dois quentes e três fervendo -. Quando o macaco macho se viu frente a frente com o Raimundinho, foi se aproximando devagar até ficar focinho com nariz, quase colado. Disseram que o Raimundinho molhou as calças nessa hora. O chimpanzé deu um berro tão alto que o tratador apareceu na hora, retirando o coitado do menino sem fala e duro de pavor.

Aquilo foi o fim do Raimundinho que não quis, por nadica desse mundo, voltar à escola, isso por causa das gozações que teve que aturar. Acabou que o prefeito colocou o menino para estudar em outra escola, bem longe da cidade. Quando voltou, já era mocinho, ai começou essa lambança desavergonhada com as meninas.

Ana Maria teve um estalo depois de saber tantas coisas da vida do jaguncinho. Foi à caixa de tralhas que ficava no quartinho de guardados da avó e pescou de lá de dentro sua fantasia de gorila.

Aquela noite prometia...

E prometeu mesmo. Ana se vestiu de gorila e, para completar a fantasia, pegou um chouriço da despensa. Escolheu o maior e mais gorducho, amarrando-o no meio das pernas. Se tudo desse certo ela estaria vingada do barba azul naquela noite.

Enquanto os avós estavam sossegados ouvindo a Rádio Nacional, ela, sorrateiramente, se esgueirou pela calçada até a casa do Raimundo. Subiu pelo muro que era feito de tijolos como uma escadinha e pulou no jardim. Contornou o quintal, olhando com cuidado onde ficava a janela do infeliz.

Por um bom acaso a janela dele estava aberta e Ana Maria pode vê-lo sentado na cama. Ele lia um livro bem em frente ao guarda-roupa. Era um desses guarda-roupas com um grande espelho na porta. Ela subiu no beiral da janela e ficou esperando ele se virar. Estava ali, estatelada, esperando o melhor momento para dar o bote quando um vento forte bateu em suas costas. Na mesma hora ela sentiu um frio na espinha e, o mais incrível, é que pareceu que o Raimundinho também sentiu alguma coisa parecida, pois se estrebuchou todo, tremelicando que nem passarinho quando vê gavião.

Levantou a cabeça e quando viu o gorila com aquele pintão preto em posição de ataque, gritou tão alto, que na vizinhança inteira não se soube qual o grito foi maior, se o de Ana, ou o de Raimundinho, pois os dois berraram para valer, um com medo do outro.

Aquela história correu na cidade como rastilho de pólvora. De manhã não havia
viv´alma que não soubesse que o Raimundinho tinha sido violentado por um macaco. Ana Maria, mais do que depressa, voltou para a sua casa, nem queria conversar sobre o novo caso da cidade.

Voltou por aquelas bandas muitas outras vezes e sempre ouvia a mesma lenga-lenga de como o Raimundinho tinha sido comido por um macaco. Ele nunca mais saiu de casa. Tinha ficado com tanto medo de ser atacado pelo macaco que se isolou do mundo. Dizem que até hoje, é só bater um ventinho, que ele se tranca e nem com reza brava aparece na janela.

FIM

quinta-feira, 8 de novembro de 2007

A Porta Fechada

Tela de Jamie Wieth


Quando o pai de Rose morreu, ela iria completar nove anos. Por muitos dias, sua mãe e ela falaram entre monossílabos, como se estivessem em um santuário. Inconscientemente, elas se deixaram levar para um lugar no tempo onde as coisas ficavam mais fáceis quando faladas entre sussurros. A mãe, cheia de carinhos e atenção, fazia com que a filha não sentisse tanto a falta que o pai fazia.

Este estado durou até o dia em que sua mãe rompeu aquela cortina mágica e apareceu com a novidade. Iria se casar novamente.
Quando começou a lhe contar sobre o homem maravilhoso que havia conhecido, Rose viu as palavras saírem da boca da mãe e se tornarem pássaros negros. Esses pássaros palavras gritavam de forma tão estridente que Rose, não aguentando mais, correu para bem longe, para não os ouvir mais. Fechou-se em seu quarto, adivinhando um tempo escuro e difícil que teria de suportar.

A mãe de Rose já não era a mesma. Vivia num mundo paralelo ao da filha. A casa toda passou a ser palco de sorrisos e conversas abafadas entre o casal. Rose flutuava, sem saber o que fazer para ter a atenção da mãe novamente, ela tentava trazer a mãe àquele lugar de aconchego do passado, mas a mãe estava entorpecida pelo intruso.

Rose não entendia o que poderia haver de tão especial no novo marido de sua mãe. Achava-o exagerado em tudo. Por baixo dos panos, Rose sentia aqueles abraços cheios de malícia, os beijos úmidos que ele lhe dava quando não havia ninguém por perto. Todo aquele carinho lhe fazia sentir asco, mas não podia fazer nada, pois sua mãe parecia não perceber nada. Ele se movia de lá para cá, fingindo sempre ter que partir, mas voltando lascivo e rouco para ela, encarando-a com uma intimidade irritante e insistente. Aquilo tudo era o martírio de Rose.

Esse intruso sabia manipular as pessoas, fazendo com que não soubessem o que exatamente se passava por baixo daquela capa de bom pai. Rose criara a sua volta uma maneira de fazer com que ele ficasse afastado. Era fria e distante, mas, por mais que fizesse para que ele entendesse que não queria sua presença, ele continuava rondando perto abanando sua calda de lobo.

Sua mãe se mantinha imperturbável quando os via a sós. Sentia-se inundada por tal estado de amor, que parecia deixá-la cega para entender o que se passava nas entrelinhas daquele carinho paternal. Pequenos incidentes insignificantes entre Rose e seu novo pai passavam despercebidos ao olhar apaixonado da mãe. Quando ela entrava no quarto de Rose e ele estava lá para o seu “boa noite carinhoso”, não percebia o olhar destilado e filtrado, que escondia uma estranha forma de querer. Não via nos olhos de Rose aquele chamado urgente de socorro, aquela mão que abanava freneticamente pedindo atenção. A mãe saia do quarto, dizendo que só ele sabia contar histórias e acalmar sua menininha.

Aquele homem estranho e infantil precipitava-se em carinhos, mesmo sabendo da barreira levantada pelo medo de Rose. Trazia para perto dela um desejo pegajoso e impregnante que transparecia no suor de seu rosto, transfigurado em puro deleite.

No fundo de sua alma, ele dizia: “Chega! Basta!”, mas no outro dia, esquecia essa voz interior e continuava.

Para Rose, as doces palavras dele pareciam cair num fosso de águas negras. Elas iam formando desenhos que se entrelaçavam, mostrando o seu próprio rosto tentando gritar um pedido de socorro.

Não suportava aquela cara imensa, todas as noites, colada em seu rosto. Podia sentir o respingar de saliva, os pelos duros da barba, suas mãos enormes dentro de sua camisola, descendo e subindo em suas pernas nuas num carinho dispensável. Nesta hora, Rose parava de respirar, tamanho o terror que a invadia. E ele, quase histericamente, a abraçava, tremendo e gemendo, se imaginando já dentro dela. Depois a soltava, pegava o travesseiro e, como se quisesse sufocá-la, apertava em seu rosto. E de repente, num ímpeto, saía do quarto, deixando a porta fechada.

A cada dia, Rose ficava mais calada. Sua mãe estava tão feliz que não percebia e nem entendia o por quê de sua filha estar tão impenetrável. Não via a escuridão do quarto nem a espessura do silêncio, que sutilmente começava a vazar pelas frinchas da porta.

Rose começou a apresentar uma dor e uma febre que mudaria o seu corpo. Sutil penugem surgia em seu sexo. Gotas orvalhadas brotavam de seus poros e o sangue manchando o lençol diziam que tinha se tornado mulherzinha. Nada disse a sua mãe, apenas chorou, se culpando. Imaginava ser esse maldito intruso o real motivo de tal desgraça.

Aquele acontecimento, que passou a ocultar de si mesma, se estreitava dentro do peito, como um anel de ferro, sufocando-a. Percorria sozinha a extensão da sala ao seu quarto, sempre correndo. Ia tão compenetrada e assustada, querendo fugir de um encontro com esse “pai”, que jamais percebeu a sombra que a espreitava, escondida embaixo da escada.

Durante muitos dias, ela queimou num inferno silencioso e mortal, por pressentir que o seu quarto seria palco do seu mais profundo pavor. O intruso, no entanto, sabia que não poderia mais suportar aquela pele elástica e fina entre os seus dedos sem tentar, ao menos uma vez, invadi-la, como um ladrão.

O verão tinha chegado quente e preguiçoso, e a mãe de Rose propôs irem para a praia por uns dias. Combinaram alugar um chalé no litoral ainda no dia seguinte. O marido lhe disse que teria de trabalhar mais um dia, e que ela poderia ir na frente para acertar os detalhes do aluguel e dos mantimentos. Ele pegaria Rose na escola e seguiriam juntos no dia seguinte, logo de manhã cedo.

Rose estremeceu sentindo a pesada mão em seu ombro, descendo lentamente por suas costas, longe do olhar de sua mãe. A noite se aproximava. Rose sabia que algo iria lhe acontecer. Algo mais secreto do que tudo o que vivera até aquele dia. Pensava em como poderia desaparecer, em como fazer para se dissolver, deixando de ter a forma humana.

Riscou, com um giz branco, um círculo a sua volta no chão do quarto e começou a pedir, a suplicar, que alguém a arrancasse dali, que se tornasse invisível. Queria se transformar num pássaro e voar dali para sempre, ganhando o céu e a liberdade. Pediu que sua mãe tivesse um poder de visão e a salvasse para sempre daquele destino amordaçado.

Seu coração batia, no mesmo compasso dos passos que ouvia, vindos da escada. A porta se abriu, e um vulto poderoso e sinistro a fechou  com um pontapé. O intruso avançou para ela com o sorriso de um animal no cio. Logo a seguir, a porta se abriu como se uma lufada de vento tivesse se formado. O estrondo da porta contra a parede fez com que o predador parasse. Rose abriu os braços a sua mãe, que no mesmo instante a resgatou daquele círculo de medo.
 
Anos mais tarde, Rose soube o que tinha acontecido com elas. Sua mãe descobriu o véu espesso que encobria a verdade, numa noite em que achou um frasco de soníferos numa gaveta de fundo falso, que ele mantinha secretamente. Descobriu o por quê daquele estado sonolento que a deixava tonta quase todas as noites. No dia seguinte da descoberta, marcou a falsa viagem à praia. Ela esperou que a noite chegasse e, no momento certo, buscou um poder que jamais pensou ter, e seguiu o homem que amava. Ele, nu, sem saber que era seguido, subia as escadas.

Rose foi resgatada no tempo do desespero, mas foi acolhida por braços que a cingiram para sempre, protegendo-a do maior relâmpago que viria em sua vida.